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Livros da guerra colonial

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segunda-feira, 11 de novembro de 2024

ENFERMEIRAS - ANJOS NA GUERRA

 


A SOLIDÃO DE MUEDA

    "A guerra não é só a troca de tiros, as minas , os feridos ... Tudo é guerra. A violência, o isolamento, a monotonia alimentar, os ataques de dia e de noite à unidade em que estamos. Mas, sobretudo, o isolamento! Tive noção disto quando fui para Mueda" Rosa Serra faz parte do pequeno grupo de enfermeiras que viveu no aeródromo de Mueda, no Norte de Moçambique. A área de um quilómetro de comprimento e 500 metros de largura - "a terra da guerra", como lhe chamavam os militares - não tinha espaços para famílias nem para outros civis. Rosa Serra não tem dúvidas: "Muitos colegasminhas falava da Guiné como o pior sítio onde estiveram. Para mim, Mueda era bem pior".

MUEDA

Rosa Serra foi das enfermeiras que mais tempo passou em unidades paraquedistas. Ainda na recruta, acabou por ficar mais tempo em Tancos, enquanto recuperava de uma fractura. Depois de estar em Luanda, voltou a Tancos, onde deu um curso de primeiros socorros aos soldados paraquedistas e, ainda no Ribatejo, fez o curso de instrutores e monitores - que, das enfermeiras, só ela e Manuela Flores França fizeram - e ainda teve uma missão nos Açores. Chegou a Mueda, outra base aérea, em Fevereiro de 1973, para substituir a enfermeira Cristina Justino da Silva, que tinha sido atingida com um tiro na cabeça. "Não a fui substituir porque ela levou o tiro. Já estava assim programado porque ela ia sair da Força Aérea. Foi ferida na véspera de vir embora", esclarece  Rosa Serra,

"Foi o sítio pior onde estive. Nem na Guiné era assim!" desabafa a enfermeira. O tipo de conflito era o mesmo, mas na Guiné, como estavam cinco enfermeiras em Bissau, não tinham de estar todas no"ar" constantemente.  "Além disso, Bissau não era atacada; ouvíamos rebentamentos como se fosse em Almada e estivéssemos em Lisboa. Mas era uma cidade segura,onde erapossível ir tomar café, conviver comas famílias e os miúdos das famílias, com a população local, ir ao restaurante se não queríamos ir à messe,,, " explica Rosa.

Em Mueda, no norte de Moçambique, o cenário era totalmente diferente. "Nem as famílias podiam estar presentes! A base, que nem era uma base, era um aeródromo, era atacada - passávamos muitas noites dentro de abrigos", explica. Além do mais, estavam ali colocadas apenas três enfermeiras, uma das quais acabava por estar frequentemente em Nampula ou a voar para Lisboa, a acompanhar feridos..

A Enfermeira paraquedista Alferes Rosa Serra

Recorda Rosa Serra: "Nós estávamos num hospital da frente, os feridos vinham directamente para ali. Ao fim de 48 horas, dependendo do estado, passavam para Nampula e de Nampula para Lisboa". Em Mueda, as enfermeiras e os médicos não ficavam dentro do quartel, mas numa casa a 300 metros, onde havia um quarto oara as três enfermeiras. De acordo com as memórias de Rosa Serra, era tudo muito pequeno e, inicialmente, o abrigo ficava no quartel. "Depois aquilo começou a ser de tal maneira atacado - com bombas, bazucas, morteiros - que, em 73, fizeram-nos um abrigo mesmo à saída da casa. Se houvesse ataque, nós e os médicos tínhamos ordem de ir imediatamente para ali, " recorda.

Mueda, A enfermaria do BCAÇ 15. 

Mais do que nunca, Rosa precisava de manter uma certa normalidade para suportar aquela comissão. "Não podíamos fazer evacuações nocturnas. E eu era a única das enfermeiras que, mal terminavam as evacuações e chegava a casa, tirava o camuflado, tomava um banho e vestia-me de gente", revela Rosa. Vestir-se "de gente", à civil, era o equivalente a vestir uma mini saia. Consciente do sítio onde estava, Rosa abstinha-se de ir até ao quartel, mas passava os serões em casa, vestida da mesma forma que a encontrariam em Lisboa ou em Vila Nova de Famalicão. As duas colegas, Maria Ana e a Aurelina, preferiam manter o camuflado até à hora de tomar banho e dormir. "Nas fotografias vê-se: elas estavam de camuflado e eu estava sempre vestido à civil. Eu precisava de manter uma certa normalidade ... Não me  lembro de alguma vez jantar de camuflado, ", conta.

Com o agudizar do conflito, os ataques ao aeródromo militar de Mueda passaram a ser uma constante. "Por  vezes até íamos de camisa de noite para o abrigo. Em certas alturas, ainda dava tempo para enfiar umas calças de camuflado ... era para sair pela porta e entrar no abrigo! A gente metia-se até lá até a "fogachada" terminar, saíamos e íamos para a cama para no outro dia voar outra vez. Nunca emagreci tanto como quando estive em Mueda", assegura a enfermeira.

Foi exactamente a partir de 1973 que os ataques no Norte de Moçambique se tornaram mais intensos. A zona de Tete precisava de um grupo de enfermeiras paraquedistas para dar apoio aos militares que estavam naquela região "Mas na altura não havia enfermeiras quando me mandaram para lá", conta Rosa Serra. "A confirmação de que os militares morriam mais em Tete do que em Mueda foi-me dada por um médico, o Drº Alemão, que quando chegou a Mueda, vindo de lá, me dizia passado algum tempo: "Agora é que vejo a diferença ... Safa-se muito mais gente do que eu salvei em Tete, porque aqui eu consigo anestesiá-los, porque vêm em condições estáveis." Em Tete, chegavam de tal forma descompensados que não aguentavam a anestesia e morriam", recorda. Ainda hoje Rosa Serra garante que foi esta a época que mais feridos atingidos por minas socorreu.

Mueda,  Resultado do ataque da FRELIMO 20 de Janeiro de 1974.

Nestas circunstâncias, qualquer possibilidade de convívio com as famílias dos militares era bem-vinda, Rosa sempre manteve uma boa relação com as mulheres dos militares, o que nem sempre acontecia. "Havia mulheres ainda muito novas, mais inseguras, e recorda com um sorriso. Uma das mulheres com quem Rosa Serra se cruzou em Moçambique foi a escritora Lídia Jorge de        A Costa dos Murmúrio, cuja acção se desenrola em Moçambique durante a guerra, chegou mesmo a acolher Rosa num dia em que esta chegou à Beira e  não tinha lugar na messe. "Desta vez, saí de Mueda e entreguei doentes no hospital da retaguarda em Nampula. No dia seguinte, apanhei doentes que levei até à Beira para depois seguir para Lisboa com outros tantos. As viagens eram muito desgastantes e as piores eram as de Moçambique ... Cheguei à messe e não havia lugar para mim, estava tudo cheio. A Lídia Jorge esta por ali e ofereceu-se para me acolher em casa naquela noite", conta Rosa."Nunca tive problemas por ser mulher: nem ciúmes das mulheres, nem assédio dos homens, só uma ou outra declaração de amor, mas nada de relevante. Talvez pela naturalidade com que lidava com todos ... ou então não tinha interesse nenhum!", brinca.

 CONVIVER COM A MEMÓRIA

"As memórias que tenho não constituem fantasmas São coisas que nos ficam gravadas e que, por muito que que não as transformemos em obstáculos para a nossa vida, continuam a cá estar", assumiu Rosa Serra com simplicidade.

Mais que a violência das cenas que assistiu, são os sentimentos que lhe provocaram na época que deixaram marcas até hoje. "Na altura, o que me espantava é que muitos não ficavam revoltados!", revela a enfermeira, que dá como exemplo a história de um homem que trouxe da Guiné para Lisboa. "Era alentejano, já não me lembro de que cidade. Tinha perdido um dos membros e, salvo erra, apresentava um problema ocular. Se não estava cego, para lá  caminhava. E o optimismo dele era comovente: dizia que já tinha contado à família e que estava ansioso por chegar à terra, onde os pais lhe tinham conseguido um emprego na câmara municipal . Ele dizia: "Vou começar a minha vida toda de novo! Chego lá, e  vou-me empenhar em ser um bom funcionário". Quando Rosa lhe lembrou que também tinha sido um bom militar,  a resposta foi lacónica: "Ah...fiz o que pude!"

Em Mueda, foi um animal um pouco maior a deixara sua marca num militar português. "Fui fazer uma evacuação zero horas - que não podia esperar - a  uma zona de mato, logo às seis da manhã.. Como sempre, nem sabia o que ia buscar. Chego e vejo um rapaz jovem, que se aproximava a coxear.  Pensei que tivesse levado um tiro de raspão na perna. O rapaz entrou no helicóptero pelo pé dele e eu não vi nada. "Fui mordido por um leãozinho, disse-me ele" conta Rosa.

Quando os militares dormiam no mato, colocavam-se em círculo, ficando alguns alerta, de armas na mão, enquanto o resto do grupo descansava no interior do círculo. Quem precisasse de abandonar o local por algum motivo, deveria avisar os sentinelas no máximo silêncio. "Ele precisou de ir ao mato e avisou que ia abandonar  o círculo. Mal arriou as calças, o rabinho deve ter ficado branquinho,despertou a atenção de um leão bebé, e ele só sentiu uma nádega abocanhada!", continuou a enfermeira. No início,Rosa ainda pensou que o militar estivesse a gozar com ela. Até que lhe mostrou a nádega, onde eram visíveis as marcas de uma dentada: "E lá veio o evacuado zero horas! Foi das evacuações mais engraçadas".

 REGRESSO À VIDA CIVIL

Assistir à destruição de vidas tão jovens tornava a missão as enfermeiras altamente desgastante. Rosa garante que, hoje, algumas das suas antigas colegas confessavam que, por esse mototivo não teriam continuado como enfermeiras paraquedistas muito mais  

No seu caso, não foi esse o motivo que a conduziu de novo à vida civil, "Saí em Março de 1974. Nessa altura namorava um militar que estava a fazer uma comissão em Angola. Nunca estivemos juntos em zonas de guerra, conheci-o em Lisboa", explica. Depois de um namoro feito à distância ou em breves encontros, quando ela aterrava em Luanda e ele a ia ver ao aeroporto - "Fazíamos continência, eu não lhe dava um beijo porque  estava fardada, e estávamos um bocado a conversar" - tinham decidido casar em Fevereiro de 1974, Rosa, que já tinha estado em angola e na Guiné, e regressava de Moçambique, pediu para ficar em Angola até ao mês de Outubro, altura em que terminava a comissão do marido."Eu tencionava ficar n Força Aérea. Depois seguiria para onde me mandassem, independentemente de ficarmos ou não juntos", afirma. A autorização foi-me recusada e Rosa acabou por pedir demissão. Ainda teve de regressar a Moçambique, onde descobriu que iria ser promovida a tenente, mas recusou. Saiu a 1 de Março de 1974, com o mesmo posto que tinha entrado: alferes.

Mal os recém-casados chegaram a Luanda, o marido de Rosa foi enviado numa operação para o mato. "Nem lua de mel tivemos!", recorda. Poco depois, deu-se o 25 de Abril, mas Rosa optou por não pedir a reintegração nos quadros da Força Aérea. Ficou em Luanda, a trabalhar num clínica, até Outubro desse ano e regressou depois, já gravida, a Lisboa.

O projecto inicial era ficar em casa uns tempos, esperar que a bebé nascesse e crescesse um pouco. Mas, entretanto, surgiu o convite para trabalhar na clínica de  uma seguradora, onde Rosa Serra trabalharia nos 20 anos seguintes,

Rosa Serra e Celeste Costa, num festival aéreo no Lobito
                                       
Ao longo desse tempo, teve sempre como preocupação manter-se actualizada. Assim,  no ano em que se reformou, concluiu a licenciatura em Enfermagem. "Tinha 58 anos e era a mais velha do curso. Quando cheguei e comecei a fazer a ouvir a apresentação, pensei, pela primeira vez na vida: vou desistir, que não sou capaz!". A decisão foi sendo adiada e, por fim, terminou a licenciatura.  "Foi o que mais me custou na via!", desabafa. Licenciou-se em 2003 e passou à reforma em 2004.

Quanto ao seu passado militar, resume-o rapidamente:
"Não fomos grandes heroínas. Fomos mulheres normalíssimas, que apenas fizeram o seu trabalho num contexto diferente. Medos, com certeza que tivemos. Mas cada uma deu o que  melhor  que pôde e soube"










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