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Livros da guerra colonial

Miandica terra do outro mundo


segunda-feira, 31 de outubro de 2022

A BREDA, O 342 E O CABO MILICIANO ESPANHOL – CISMI - TAVIRA – FEVEREIRO DE 1972 - História triste vivida

  16 - A BREDA, O 342 E O CABO MILICIANO ESPANHOL – CISMI - TAVIRA – FEVEREIRO DE 1972 - História triste vivida

Ao Silva, nunca lhe assentou bem a tropa. Sentia-se desenquadrado naquele meio, sentia-se um erro de casting naquela película. Ali andava a contra gosto, a marcar passo. Tinha a certeza que iria malhar na guerra numa das províncias ultramarinas portuguesas como atirador de G3. Apenas queria que o tempo passasse e depressa.
Assentou praça nas Caldas da Rainha, onde pela primeira vez, brincou aos jogos de guerra, Tinha como comandante de companhia o já bastante sénior Capitão Luís, o Luisinho, militar de carreira do Norte de Portugal que nos dizia depois da instrucção: - «Ponham as “iarmas” nos “iarmeiros”» ,fazendo uso do seu sotaque nortenho.
No seu pelotão comandava o Alferes miliciano Oliveira, rapaz da Freixianda (Ourém), que amaciava a dureza daquela vida e com quem o Silva se identificaria de imediato. Para aquele graduado aquilo não era para levar a sério.
A secção do Silva era comandada pelo seu ex colega na Escola Industrial de Leiria, o Virgílio Santana que nessa escola tinha ganho a alcunha de “O Truca” Aqui no Quartel manifestava uma atitude “achicalhada”,um comportamento de grande dureza para com os instruendos.Tinham-lhe subido â cabeça as divisas de Cabo Miliciano, sentia-se alguém. Fazia difícil a vida difícil aos soldados instruendos milicianos.
Depois houve testes escritos sobre variados temas a que os instruendos teriam de responder.
Um desses testes era de Electricidade, área onde o Silva se sentia à vontade. Correu bem a prova, o Silva respondeu acertadamente a tudo. Dias depois o Truca informou-o que tinha obtido a 2ª melhor nota de todo o Batalhão.
Quando isto soube, o Silva descomprimiu, pensou que um 2º lugar naquela prova de Electricidade entre cerca de 400 homens, dar-lhe-ia uma especialidade de Rádio Montador, que o livraria de vir a ser atirador. Ficou sossegado e agradecido ao Truca por aquela informação
Passaram dias, passaram semanas e a recruta chegou ao fim. O capitão Luisinho frente ao grupo formado, foi citando nomes e números de cada um, informando da especialidade atribuída e do quartel onde iria ser tirada.
Antes de ser citado o nome Silva, Já havia atribuídas duas especialidades de Rádio Montadores, Porém quando ouviu da boca do Capitão:
- «Manuel Silva, especialidade de Armas Pesadas vai para o CISMI, Tavira»
Ficou sem jeito o Silva, ficou revoltado, percebeu o esquema das cunhas. alguém tinha mexido nas fichas e na ordem de classificação e a partir daí o Silva foi-se marimbando ainda mais e mais para o serviço militar
Já em Tavira no CISMI (Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria), apanhou outro militarista Cabo Miliciano alentejano, o Cabo Miliciano Espanhol que fazia ainda mais dura, a dura vida de todos os instruendos de Armas Pesadas. E ganhou uma fixação mais especial pelo Silva por se ter apercebido que ele se desenfiava tanto quanto podia àqueles afazeres militares. Tomou o Silva de ponta. e até lhe decorou o Número, o 342. O Silva estava fod####. Na tropa não se deve dar muito nas vistas, deve passar – se despercebido, quanto mais melhor.
Um dia, uma 2ª feira de manhã, o Espanhol, levou a rapaziada para uma sala com carteiras onde todos se sentaram para estudar a metralhadora BREDA.
Colocou a pesada arma sobre um pano e pôs-se a desmonta-la, peça por peça enquanto ia atribuindo nomes a todas elas. O Silva vindo de um esgotante fim-de-semana em Leiria estava bastante ensonado e pensando que ficaria despercebido o acto, encostou-se à parede, tapando a cabeça com os cortinados da janela, qual avestruz, isolando-se assim de toda a actividade envolvente
Já passava pelas brasas, quando foi energicamente acordado pelo Cabo:
-Sôr 342, vá imediatamente p`rali acabar de montar a arma e quero que me diga o nome de todas as peças.
E lá foi o Silva obedecendo àquela ordem. E foi montando a arma, mas falhavam-lhe os nomes das partes. Quando montava a última peça, não disse o seu nome e o Espanhol interpelou-o - «Como se chama isso» - ao que o Silva contestou - «Nosso Cabo Miliciano, deste “pinchavelho” eu também não sei o nome»
Furibundo, nervoso, exaltado o Cabo vociferou:
-Pinchavelho, o car@###! Sôr 342,você está fo#### comigo. Faço queixa de si. Você baixa ao Contingente Geral e é imediatamente mobilizado para a Guiné que se fo## .
A partir desse momento o Silva, instruendo nº 342 do Curso de Armas Pesadas, começou a adoptar um “saber estar” mais consentâneo para não comprar mais guerras com aquele instrutor, para não se lixar.
Terminaria o Curso com a nota mínima, um (10) dez e iniciou um célere percurso, passando por Chaves agora com posto de Cabo Miliciano onde foi instrutor de uma Recruta e rodou depois para a Amadora onde formou a CCAÇ 4140 (Companhia de Caçadores 4140) Chegaria depois com o posto de Furriel Miliciano a uma das piores zonas de Guerra em Moçambique, a famosa Mueda, “a terra da Guerra”

Aquartelamento de Mueda

Tempos passaram quando em Mueda,no planalto dos Macondes o Silva teve conhecimento que o seu instrutor, o Cabo Miliciano Espanhol ,agora Furriel Miliciano, teria sido abatido na Guiné pelo PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) e que o seu corpo teria sido desmembrado por aqueles guerrilheiros. Ficou consternado, ficou triste com aquela notícia. Gostaria de saber que não era verdade.
Até hoje o Silva não conseguiu confirmar o facto. Pode ser até, que alguém, aqui NESTE TERREIRO, saiba dizer que não aconteceu ou se aconteceu, saiba dizer quando e como.

Manuel Neves Silva. Ex Furriel Miliciano de Armas Pesadas.

Altura, 14 de Novembro de 2021.

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

            13 -AS SALSIHAS MACUAS DE PUNDANHAR

      Era uma tarde quente em Pundanhar no norte de Moçambique estámos em 1973 .Eu protegia-me da canícula na minha flat, um espaço exíguo, com uma porta e sem janelas e que partilhava com o Furriel Enfermeiro Costa e Furriel GE Balbino.
Dormitava sobre o colchão os cansaços da patrulha cumprida nos três dias anteriores nas margens do rio Rovuma, quando fui surpreendido por duas explosões lá fora, ali mesmo ao meu lado. Qual gato assutado levantei-me e quando agarrei a arma já o enfermeiro se tinha projectado para debaixo da minha cama. Corri porta fora com a adrenalina a disparar e a G3 em ponto de fogo, o dedo nervoso no gatilho.
Acalmei, estaquei com a calma que vi em dois dos meus soldados Macuas que” falavam e riam” entre si em shuailli, língua que quase cheguei a entender.
Preparavam-se para atirar ao forno Já aquecido para a fornada de pão do dia, o resto das latas de salsichas que tinham nas mãos, acto que impedi sacando-lhas com alguma dificuldade.
Quando chegámos à fala, não quiseram explicar-me o porquê daquela “cerimónia”. Também não foi preciso, logo percebi.
Era uma “guerrilha” interna no Grupo (GE 214) entre Macondes e Macuas, os primeiros com formação católica e estes islamizados. Os Macondes comiam de tudo o que compunha a ração de combate. Os devotos de Alá, não toleravam o pecado da carne de porco “ensalsichada” dentro daquelas latas.
Então, tacitamente institui-se um negócio de troca de latas de salsichas por latas de sardinhas. Tudo bem, mas logo surgiu um problema. O grupo era composto por dois macondes e vinte e oito macuas num total de 30 soldados GEs. Deste modo havia sempre 28 latas de salsichas que os macuas não consumiam. Os macondes por seu lado comiam de tudo, sardinha e salsicha e pouco lhes interessava a troca. Então só abriam mão de uma lata de sardinha por quatro de salsicha e mesmo assim o faziam por favor.
Assim o mal-estar instalou-se nos “maometanos”, a raiva foi crescendo até explodir dentro do forno em forma de carne de porco expandida. E sobraram alguns “estilhaços” para mim.
O Manel, macua civil do aldeamento, que aquecia o forno rasoirou as “estilhas” e o soldado padeiro enfornou. No sabor do pão, nem vestígios de cerdo.
O ataque do inimigo por mim imaginado, não passou de umas latas rasgadas, inchadas e chamuscadas.

Forno em Pundanhar
Furrieis Corôa, Balbino e Neves - Messe de Sargentos em Pundanhar



  


segunda-feira, 3 de outubro de 2022

14 – A MENINA EMOLDURADA – Coluna logística Sáurio 01 (Zona de Mocimboa do Rovuma)

14 – A MENINA EMOLDURADA – Coluna logística Sáurio 01 (Zona de Mocimboa do Rovuma)

Nove de Maio de 1973, madrugada triste, fria e húmida em Mueda a Capital da guerra no Planalto dos Macondes.
Alinhavam-se as berliets militares e os camiões civis. Iniciava-se a coluna logística Sáurio 01,viagem de reabastecimento logístico a Omar e Mocímboa do Rovuma.
A tropa era composta por três grupos de combate da Companhia de Caçadores 4140 do Furriel Lopes, do Alferes Joaquim e do Alferes Feire; dois grupos da companhia de Artilharia 3503 comandados pelos Furriel José Caseiro e Alferes Coelho; três secções de morteiros médios do Alferes Casimiro; uma secção de sapadores sob a responsabilidade do Furriel Jacinto; um pelotão de Cavalaria do Alferes Menéres e ainda um Grupo Especial de tropas africanas, o GE 208,do Alferes Giestas.
O Alferes Giestas, comandante do GE 208, de barba a fumar
Todos estes militares distribuíam-se pelas caixas das viaturas e pelos flancos da picada, pela testa da coluna. Eram diversas as missões de todos estes grupos: proteger o comboio contra ataques; proteger os flancos, esquerdo e direito; emboscar os trilhos de acesso à picada; abrir o percurso.
Era um bulício de homens, de espingardas G3, cartucheiras, granadas de morteiro, granadas de mão, lança granadas, rações de combate….
E eram as gargantas secas de amargura, de sofrimento, de ansiedade, de medo.
O comboio verde estendia-se enorme, ocupando toda a avenida da cidadela militar.
À ordem do Capitão Miliciano Vasco Gonçalves toda esta mole se põe em marcha com a ronca dos motores, as baforadas diesel dos escapes e o serpentear lento com as vénias dos carros à esquerda e à direita ao sabor da irreverência dos buracos e das depressões da picada.
Ao meu pelotão comandado pelo Furriel Lopes, homem minhoto das terras de Celorico, cabia a tarefa e responsabilidade de encabeçar a ”“excursão”, de rasgar o itinerário, de detectar e neutralizar minas, armadilhas e outras quejandas surpresas dos “turras”, até ao Posto de Águas 34, onde este Sáurio se bifurcaria em dois, um para Omar e outro para Mocímboa do Rovuma.
Posto de Águas 34
Estes postos de água, agora desactivados, antes da guerra, ao tempo da majestática Sociedade Agrícola Algodoeira (SAGAL) forneciam uma determinada quantidade de água a troco da inserção duma ficha que valia 50 centavos de escudo (uma quinhenta). Estão distribuídos um pouco por todo o lado ao longo destes caminhos. Servem agora como pontos de referência das estradas (picadas).
Foi este sistema de distribuição de água, e foi a Companhia do Algodão (SAGAL) grandes fontes de descontentamento e revolta para os trabalhadores nativos macondes, que se viam coagidos pela empresa a plantar algodão e a entregá-lo a esta por irrisórios preços. Depois para matarem a sede teriam que devolver o parco soldo naquelas torneiras. Os portugueses não foram uns colonizadores exemplares
Fichas para obtenção de água, usadas antes da guerra nos Postos de Água
A vegetação densa, estava eivada da comichão do” feijão macaco”, essa vagem parecida com o feijão-verde que uma vez tocada, solta aquele castanho pó que desencadeava coceira e mais coceira e ainda mais coceira qual infernal sarna que punha os nossos corpos em brasa.
Tudo nos atazanava o psíquico e o físico. Para além da vagem da comichão, eram as “talacas”, essas enormes formigas que se deslocavam em fila indiana, qual batalhão bem formado em ordem unida e que ao morderem preferiam deixar o ferrão, a abandonar as nossas pernas.
Mas ainda pior, era o perigo sempre presente, o risco de se furado por “frela” bala ou de ficar estropeado com o estoirar duma mina debaixo dos nossos pés.
E assim, ordem dada, avançámos picando a picada, num pleonasmo de picas, aquelas varas de bambu com um prego na ponta com que os soldados do grupo da picagem, agora com o estatuto de picadores, iam batendo repetidamente o chão à medida que avançavam tentando assim “apalpar” as minas a uma distância segura.
Era uma “tecnologia de ponta”, esta ponta de aço na ponta da cana de bambu. Na outra ponta da pica, estava sempre a vida do batedor.
Esta técnica de sentir as minas na ponta, era complementada com a tecnologia ainda de mais ponta dos detectores electrónicos de metais, que neste particular levavam o nome de pesquisadores de minas. Mais eficazes e mais seguros, porque evitavam o toque com o solo, estes aparelhos eram mais raros porque mais caros que o bambu e porque eram mais propensos a avarias e também porque a vida dum soldado pouco valia.
Fazia-se uma guerra barata em material, fazia-se uma guerra cara em vidas humanas.
Neste primeiro dia de sofrimento e antes ainda do meio-dia já tínhamos topado com uma mina anticarro, essas “marmitas” de TNT que fazem ir pelos ares viaturas e homens. Detectámos ainda um fornilho, série de minas e granadas e outras merdas explosivas ligadas entre si por cordão detonante de tal modo que ao ser accionado um elemento desta cadeia, todos os outros deflagram em sequência, rentabilizando assim os estragos.
O Grupo de picagem avançava como que perseguindo caracóis, seguido pela primeira viatura, o rebenta-minas, num movimento, chiado, ronceiro e deselegante.
Era integrado por picadores protegidos com as G3 dos atiradores, armas sempre atentas, sempre nervosas, apontando para qualquer ruído, qualquer sinal de perigo, qualquer surpresa vinda da densa mata. Atiradores e picadores revezavam-se, para aliviar cansaços, trocar tarefas, e alternar os estatutos entre picador e atirador.
Era um trabalho lento, monótono, cansativo, enervante. Atrás de nós toda aquela massa de carros, de armas ligeiras e pesadas, chiava, roncava, movendo-se pesadamente.
O Heitor, à minha frente, estacou a pica no chão, embrenhou-se no mato, abriu a braguilha e pôs-se a mijar.
-Não repitas isso muitas vezes. Não deves sair do trilho de picagem. Na próxima podem ficar aí os teus “pedais ”-gritou, chateado o Furriel Duarte, no seu sotaque madeirense
-Meu Furriel, agora tive que ir agarrar noutra pica. Na minha pica!-gracejou o Heitor enquanto compunha a braguilha, “acachando” a picha.
O Grupo tinha parado por instantes o batuque da picagem. Atrás de nós a primeira viatura, a rebenta-minas distanciava cerca de cinquenta metros. O Heitor regressa para a outra pica. Íamos recomeçar quando uma viatura, a terceira voou estrondosamente ao calcar uma mina.

-Caralho -berra o Furriel Lopes defraudado-deixaram passar aquela “marmita”
-Atão e só “arrebentou” na terceira viatura? -indagou o Moreira, apontando o dedo na direcção da tragédia.
-É uma daquelas de triquetes1 e devia estar estava regulada para “arrebentar” só no terceiro -sentenciou o Cabrita, enquanto ferrava com violência a pica no chão.
-Foda-se! Se nós não a detectámos é porque é de espoleta química e essas não acusam no detector- afirmou convicto o Cabo Pereira, limpando com o quico suor da testa.Tínhamos, espalhados pelo chão ao redor da estropeada berliet, os gritos de dor de nove camaradas gravemente feridosOs gritos vinham 
do chão. Os gritos vinham do ar. Os gritos estavam em mim. Todo eu era já um grito. Eu já não suportava o grito. A minha dor explodiu.
Veio-me à memória a letra da canção:

“ Lá longe, onde o sol castiga mais
Não há gemidos nem ais,
Há coragem e valor
Mas quando alguém do nosso grupo cai
Ainda pior, ainda sofremos mais
Faz-nos sentir, faz-nos pensar
Talvez da próxima vez
Seja eu quem vai tombar….”

Mais azáfama, mais ordens e contraordens, muita tristeza, muita consternação, muitos nervos na flor da pele.
Era o pessoal das transmissões gritando, alfas, bravos, charlis e rómeos a pedir helicópteros para a evacuação.
Não se pode perder tempo. Não há tempo a perder. Há que cuidar deles, estabilizá-los com o saber e sangue frio do Furriel Enfermeiro Elias.
Há que capinar, foçar, romper desenrascar um heliporto, antes que anoiteça, para o poiso do helicóptero que vem buscar estes desgraçados, para outros cuidados médicos em Mueda.
Deixámos as picas e corremos às ordens do Furriel Lopes a proteger de armas em riste, o pessoal que abria a clareira para o poiso da aeronave. Os guerrilheiros estão seguramente por perto e não queremos mais surpresas.
Eu aperreava no meu corpo a minha G3 mulher, a minha amiga G3.
A tarde deste dia entardeceu triste, amarga, carregada de nuvens de incerteza e a noite apanhou-nos ali mesmo, escura, aziaga tal como a nossa dor.
Sentia-me estranhamente estranho, não me sentia eu, não era eu quem estava ali naquele filme de terror. Sentia-me uma rocha, quando vê o rastilho arder em direcção à dinamite no seu interior.
Esgravatei no saco bornal a lata de “Fray Bentos”, carne de conserva Sul-africana. Engulo mais uma laurentina. Fumo mais um cigarro. Tento dormir, tento esquecer…
Estamos cansados, não dormimos, não sonhamos. Amedronta-nos saber que os “Frelos” sabem que estamos ali, vulneráveis, á mercê da sua morteirada. Porra! Em que buraco me fui meter.

Sentia na boca o sabor amargo da cerveja e sentia na alma a acidez da minha vida.
Vêm-me à memória as imagens, saudosas recordações daqueles tempos despreocupados de Lisboa no Jardim da Estrela, a mordiscar as gajas que passavam. Dos serões de estudo de Físicas e Matemáticas no Café Portugália. Das sessões de cinema no José Lúcio da Silva em Leiria e que sempre tinham ponto final, num copo de verde vinho “Três Marias”, já com horas sonolentas e espreguiçadas, no Café Ponto Final.
Amanheceram as neblinas da manhã. As folhas das árvores pingavam lágrimas. As silhuetas da vegetação e dos soldados eram esbatidas desfocadas, mal definidas, tal como os meus pensamentos, confusos, esquizofrénicos. Havia um alvoroço de despertar, um vozeirar ao logo de mais de quinhentos metros por onde se estendia a coluna.

São cinco e meia da manhã. Esta bicha está a ponto de ser por de novo em marcha. Calço as botas que serviram de almofada durante a noite. Trinco o resto de pão que sobrou de ontem com a marmelada da ração e bebo o chocolate e estremeço. Estremeço com a sequência de explosões: PUM!….PUM!…PUM!...PUM! E logo uma voz de comando:
- Enfermeiro à frente! Passa palavra! Temos dois feridos!
E vejo o cabo enfermeiro António Pereira a correr com os primeiros socorros nas mãos.Ao tentarem encher o cantil na água do autotanque, os soldados António Trinta e Carlos António, da minha companhia tinham tropeçado numa armadilha que lhes arrancou os pés e parte das pernas.
Esta armadilha esperou cinicamente uma noite debaixo do tanque da água para reclamar as suas vítimas de manhã.
Mais sangue mais estropiados e ainda estamos no inicio. Pisar ou não pisar a mina é uma questão de sorte…morrer ou não morrer é uma questão de morte.
Outro heliporto, mais sangue frio do enfermeiro, verdadeiro herói destas tragédias. O enfermeiro esconde as emoções, não pode ficar escravo de sentimentos. Há vidas em perigo. Tem de agir!
Mais carne despedaçada e despachada para a Enfermaria de Mueda.
Os amigos que com eles partilharam o bocado de chão, debaixo da berliet durante a noite, choram:
- Ninguém imagina o que estamos aqui a sofrer! Aqueles filhos da puta do “ar condicionado” é que deviam estar aqui. Já se foderam onze gajos e isto não vai ficar por aqui. Logo seremos nós.
                          
                    
                                           Furriel José Caseiro da CCAÇ 3503 - Coluna Sáurio 1

Mais além alguém da Companhia 3503 berrava:
-Foda-se esta merda, vamos ter mais um dia de festa do caralho, mandam-nos para aqui morrer e ver morrer. Um gajo anda aqui até levar um tiro na mona ou pisar uma mina, depois acaba-se tudo, acabam-se os sonhos, acaba-se a vida, é como se um gajo nunca tivesse existido.
Pois -disse o Enfermeiro, arrumando os primeiros socorros: «ainda nem temos um dia nesta porra e já é o que é, onze desgraçados e dois deles sem pernas. Que mais merda estará para vir hoje? Isto está tudo semeado de trotil! Não sabemos onde deveremos por os pés».
Lembrei-me da frase de negro humor que li ontem de manhã no cartaz pendurado na árvore, lá atrás, na saída de Mueda:
Reduz o perigo das minas em 50%., Anda ao pé-coxinho!
O helicóptero com os feridos a bordo, roncou mais alto, levantou, roçou a copa das árvores, ganhou altura, rodou no ar e tomou a direcção de Mueda.
Verdadeiros heróis, estes pilotos da Força Aérea. Arrepia-me ver o modo e a destreza como encaixam aquelas máquinas em tão exíguos espaços. A eles e à sua coragem se devem muitas vidas resgatadas.
Estávamos a um quilómetro do Posto de Águas 34.Tanto tempo e tanto sacrifício despendido para tão pouco caminho percorrido.
Durante este quilómetro foram “desembrulhadas” do chão mais sete armadilhas e mais duas viaturas foram dinamitadas. Há sempre minas que nos escapam. A pica não as sente, o detector não as ouve, o picador não as vê.
Para algum alívio das nossas consciências de picadores, não houve homens dinamitados.
Posto de Águas 34, dez e meia da manhã. O comboio militar dividiu-se em dois: uma parte seguiu para 
Omar, a outra para Mocímboa do Rovuma. Estávamos no segundo dia dum total que viriam a ser de dez dias que ainda iria durar esta operação Sáurio 01.
Eu segui para Mocímboa com o meu grupo, um pelotão de cerca de trinta homens, com três Furriéis: Eu, o Duarte e o Lopes. Era nossa missão agora proteger a Artilharia interveniente neste percurso
Os Frelos deixaram-nos. Outro tanto não se passou com a secção que se dirigiu a Omar, que sofreram várias emboscadas, abonos de morteirada e viaturas dinamitadas. No cômputo geral, esta operação iria custar três mortos e dezoito feridos, quando dez dias depois tínhamos chegado a Mueda

Enfermeiros da CCAÇ 4140 - Furriel Luís Elias e Cabo António Pereira
Mocímboa do Rovuma situa-se num planalto com abrangentes vistas sobre o largo rio que se espraia lá em baixo e que lhe dá o nome. A enigmática Tanzânia avista-se mais além na outra margem. Não fosse a guerra e estas paragens seriam um pedaço de paraíso.
As nossas viaturas, descarregaram. Entre outras muitas outras “viandas”, traziam cerveja, o que alegrou sobremaneira as tropas aqui aquarteladas pois o stock das laurentinas, mack-mahons e manicas já estava em ruptura.
Depois de tantos sofrermos para aqui chegar foi bom sermos recebidos com uma refeição quente.
Foi um almoço de participada tertúlia. Foi o contar da epopeia da viagem, foi um continuar a sofrer pela viagem de retorno. Iríamos decalcar o mesmo percurso mas agora às avessas.
Eu estava avesso de apreensão e medo. E comia a saborosa cabidela e bebia as laurentinas e fumava nervosamente os primeiros cigarros do maço recém-adquirido.
Seria no dia seguinte o inferno da torna viagem.
Um Furriel deste destacamento, falou-me da última vez que aqui foram “abonados” de morteirada pelos” turras” e falou-me das operações de patrulhamento das imediações e falou-me de como uma gazela tinha sido apanhada por uma mina do campo minado, protecção que os circundava, e de como esse bicho virou jantar na messe de sargentos e falou-me de tantas coisas e de tantas memórias…
Eu vinha sujo, completamente nauseabundo de suores acumulados e fermentados com o calor lá da picada. Sentia-me como um rato de esgoto.
- Já viste Furriel, eu a entrar assim malcheiroso na pastelaria Suíça em Lisboa? Era eu a entrar e a pastelaria a evacuar.
Deixando-se rir da minha piada, compreensivo e solícito o Furriel apontou-me o duche enquanto me estendia uma laurentina. Era um balde de zinco pendurado numa trave e perfurado no fundo para ”chuveirar” a água.
E soube-me bem aquele banho “maconde” e soube-me mal ter de vestir a mesma roupa transpirada e sobretudo ainda com alguns pólenes do legume da “coçagem”.
Eu estava estoirado, cansado, com a cabeça desorganizada pelos acontecimentos recentes. A tarde acelerava a queda. As águas do Rovuma ao fundo espelhavam ainda a já pouca luz vinda do seu lado nascente. A noite anoitecia calma e alheada da guerra.
Fez questão o Furriel que eu dormisse na sua “Flat”. Era um quarto bem arrumado, simples e acolhedor.
Junto à cama, numa artesanal mesa de bambu, espreitava um retrato emoldurado de uma linda rapariga me fez estremecer de surpresa.
Eu tinha visto aquela moça dois anos antes na Metrópole. Estava seguro disso, e estava incrédulo disso. A frase saiu-me simples e espontânea:
-Olha! A Deolinda! Como veio parar aqui a Deolinda?
-Conheces a Deolinda?- Perguntou o Furriel, intrigado, segurando a moldura, como quem protege um troféu.
-Conheço pois.
-Como é que a conheces?- Volveu o Furriel, mirando a menina.
A Deolinda tinha sido minha ajudante no laboratório de análises químicas da SIC. Ela frequentava o Liceu Nacional de Santarém e morava em Azinhaga do Ribatejo, onde estava sediada aquela empresa. Eu estudava Engenharia em Lisboa. Conhecemo-nos no trabalho em conjunto naquelas férias de Verão de 1970,naquela fábrica, perto de Santarém. Quando o trabalho sazonal acabou eu voltei para Lisboa e
um ano depois para o Serviço Militar e deixámos de nos ver.
-Conheci-a em Azinhaga do Ribatejo em 1970 quando com ela trabalhei no laboratório da Sociedade Industrial de Concentrados (SIC) durante a campanha do tomate -Respondi ao Furriel, enquanto nervosamente acendia mais um cigarro.
 -Ah! Sim ela trabalhava lá durante as férias de Verão. E eu também sou de lá, de Azinhaga -explicou o Furriel, pousando delicadamente o quadro sobre a mesa, como quem baixa a guarda de protecção  a um tesouro.
Lembrei-me daquela aldeia, a mais portuguesa do Ribatejo, do sujo rio Almonda, do baile de sábado na Associação, daquele passeio na tarde de domingo nas Portas do Sol.
A Deolinda era agora, namorada do Furriel. Senti-me por instantes como um refractário a um compromisso descomprometido
  A conversa sobre a Deolinda por aqui ficou. Confesso que ao ver de novo a linda menina, fiquei irresoluto, enciumei do Furriel.
 A picada do dia seguinte perdeu o valor trágico. Afinal naqueles verdes anos, nós ainda somos imortais, eternos, apesar de podermos morrer amanhã.
Saímos da “flat” e mergulhámos nas cervejas.
Adormeci com as dormências das laurentinas, no colchão de espuma colocado no chão ao lado da cama do Furriel
Desculpa Furriel da Azinhaga. Nunca te agradeci o modo hospitaleiro como por ti fui recebido. Esqueci-me do teu nome. Passaram quarenta anos e agora, afinal, nós já somos mortais, poderemos morrer amanhã. Teremos de morrer amanhã

 Nota 1) - No texto de Glória de Sousa publicado no Blogue de Amadeu Silva:  https://niassa1558.blogspot.com
 pode ler-se: «Nos últimos meses de guerra tinha surgido um novo tipo de mina anticarro, baseada num mecanismo mecânico simples, que consistia numa roda dentada, que rodava após cada passagem sobre ela. A dada altura a roda tinha um dos dentes em falta, e quando chegava o momento em que uma viatura accionava pela 5ª ou 6ª vez a mina, esta explodia, porque era precisamente os dentes da roda que travavam o detonado»r.

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Fig.30 - Fim da Guerra -Setembro de 1974-Coluna de retirada de Nangade e Pundanhar para Palma para posterior embarque rumo ao Sul, Nacala. Depois de comboio para Nova Freixo onde me reintegrei na CCAÇ 4140 Setembro de 1974.

A CCAÇ 4140 saiu para Portugal, no aeroporto da Beira em 5 de Outubro de 1974.

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