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Livros da guerra colonial

Miandica terra do outro mundo


segunda-feira, 22 de agosto de 2022

10 O CABRÃO E A CAPULANA (Zona de Pundanhar

 

10  - O CABRÃO E A CAPULANA (Zona de Pundanhar)

   

Aquele bode impunha “respeito”. Era corpulento e bravo, investia e marrava como um touro e provocava danos aquele cabrão.
Assim, era perigoso afoitar-me a passear pelas ruelas entre as palhotas do aldeamento de Pundanhar, coisa de que eu tanto gostava, interagir com aquela gente, os familiares dos meus soldados GE, as crianças e as lindas marussi, as donzelas da terra. Era mais uma forma de acelerar o tempo rumo ao fim da comissão, em direcção a Portugal e adormecer os pensamentos daquela guerra, de patrulhas, de colunas militares, de minas, de mortos, de feridos, de estropiados e de muito sofrimento.
Aquele bicho mbuzi 1 cirandava livre, solto e defendia o seu território à cornada e penso que teria qualquer coisa contra mim em especial, pois era sempre eu o escolhido pelos seus retorcidos cornos. Nunca soube quem seria o dono, o responsável pela rês, seguramente alguém que não gostava muito da tropa.
Naquele dia corria um fim de tarde calmo, cálido e luminoso. Muitas manamuca 2 chegavam das machambas 3, as crianças chilreavam suas alegrias e os homens rodeavam a mesquita (palhota sagrada de lama com tecto de palha) para as orações da tarde, quando uma vez mais resolvi embrenhar-me naquela urbe. Caminhava descansado, ia desfrutando do bulício, da vida e da cor daquele lindo linguajar macua, quando vi o bicho a acelerar na minha direcção. Não tinha onde me enfiar, não tinha para onde fugir. Ripei de um colorido trapo que secava num monte de lenha e qual toureiro enfrentei a besta. Eu fiquei incólume. O trapo saiu rasgado, não tinha estatuto de capa de tourear, era frágil.
Fiquei anestesiado da adrenalina desta acção e ainda mal me tinha recomposto, quando direita a mim e vinda do nada aparecia agora uma manamuca elegante e bonita dama, gesticulando e berrando palavras naquela língua que eu não entendia. Estava brava a mulher, mais agressiva que o bode e nem aquele som agudo parava nem eu o entendia. Eu tinha-me livrado dos cornos do caprino diabo. Agora teria que gerir este outro desafio.

O soldado GE Emílio que com a ajuda de outros tinha recolhido a besta, abeirava-se de mim, quando eu já descia da segurança do topo do monte dos gravetos, onde me tinha refugiado.
-Ela está dizer que Furriel Siliva estragou capulano e agora tem que ir ”na depósito de janéros” comprar novo pra ela.
Porra, os astros não estavam conjugadas a meu favor. Livrei-me da marrada, agora tinha outra “ péga”. Tinha ido um bode, vinha agora uma cabrita.
A cambada que entretanto aqui se foi juntando, ria, divertia-se com a situação. Eu tomei o caminho da loja seguido pela mulher, agora mais calma e pela algazarreante canzoada, turba ávida de voyeurismos. Dobrado, debaixo do meu braço seguia o vestido estropeado.
O depósito de géneros era uma fonda, uma havanesa gerida pela tropa e onde havia de tudo um pouco, mercearias, petróleo, bolachas tabacos, tecidos e além de muitos eteceteras, também havia capulanas. Ao entrar a mulher apontou a prateleira onde estavam os tecidos. O Cabo de serviço naquele posto, despejou sobre o balcão uma boa meia dúzia delas. Ela foi decidida, rápida a escolher. Pegou e enrolou-se na mais cara luzindo de felicidade. Quedou-se então ainda mais bonita a elegante macua.
Desembolsei para as mãos do caixeiro trinta Moçambicares Escudos e pareceu-me que o milando 4 estava sanado. Mas não estava. A tourada ainda prometia durar. Esta picada estava mesmo a ficar mais esburacada.
Acontecia agora algo que me parecia não enquadrar. A Senhora envolta no colorido adereço novo, perdia de novo o brilho da sua beleza e tentava arrancar à força de debaixo do meu braço o trapo velho, retomando a gritaria naquele estridente registo de agudos que me feriam os tímpanos. Eu, surpreendido, ia dizendo na cara dela, convencido da minha razão e da justeza do acto que acabava de praticar:

Este é meu. Se estraguei velho e paguei novo, então este fica para mim.
Mas a mulher não me queria entender, não desarmava, tinha outro conceito de justiça e não largava a peça. E ali ficámos a puxar cada um por sua ponta do vestido rasgado. Larguei o farrapo, quando ouvi a meu lado e aparecido não sei de onde nem como, a voz do capitão da companhia:
Oh Silva! Para que quer você essa merda. Dê lá isso à mulher, porra!
Tinha razão o comandante. A minha teimosia em reter aquela capa de toureio era um negócio de caprina lana. Nada valia o pano agora rasgado pelos duros caprinos chifres. Radiante, a macua senhora seguiu com as capulanas, uma posta e a outra na mão, muito agradecida e sorridente para com o Capitão, que acabou por ficar bem melhor que eu neste retrato. Eu fui calmar o stress numa fresquinha Laurentina, aquela loira e sempre eterna amiga, companhia de alegrias e muitas mais amarguras.
No dia seguinte, ao passar por mim a caminho da fonte, qual “Leanor pela verdura, “fermosa” e bem segura”, a manamuca, protagonista da véspera, exibindo uma alegre capulana novinha em folha cumprimentou-me com um lindo, rasgado e sincero sorriso:
Salama, Jambo, na Furieli Siliva! - ao que prontamente correspondi:
Bom dia Senhora!
Estava de facto resolvido o milando 4. . E eu estava feliz comigo mesmo. O registo de ontem estava avaliado e notado positivamente. Tinha sido feita a Apsic.Tinha acontecido mais uma picada nas longas picadas da minha vida, nestas terras de Moçambique. Raios partam o chibo. Longa vida ao Silva.

Notas: 1-Bode; 2-Mulher; 3.Campo de Cultivo; 4- Problema





segunda-feira, 8 de agosto de 2022

9 PUNDANHAR- A MÁQUINA DE SULFATAR (Pesadelo vivido em insónias depois da Guerra)

 

 9 - PUNDANHAR- A MÁQUINA DE SULFATAR (Pesadelo vivido em insónias depois da Guerra)

      Corria o mês de Setembro de 73. O sol flagelava-nos o rosto, uma atmosfera quente e húmida dificultava-nos a respiração e a marcha. Deslocava-me em patrulha com o meu Grupo de Combate, o Grupo Especial 214, integrado por soldados nativos. Estávamos a cerca de 15 Km a norte de Pundanhar em Cabo Delgado no norte de Moçambique. Ao fundo a paisagem Tanzaniana exuberante e assustadora para além do largo rio Rovuma. Era um corredor de infiltração de guerrilheiros da FRELIMO, vindos de campos de treino na Tanzânia. Foi também esta zona palco de escaramuças entre soldados portugueses e alemães durante a 1ª Grande Guerra. É uma terra que conhece a guerra, que tem marcas de guerra.

-                                                   Crianças de Pundanhar 1974

A nossa atenção virava-se para todos os lados. Qualquer sinal, qualquer ruido suspeito eriçava-me os pelos, aumentava-nos a ansiedade, o medo. Teríamos sido detectados pelos Frelos? Puxo por um cigarro, o único antídoto contra a espera e o enervamento
De súbito salta-me à vista, colocado no cimo de uma árvore de grande porte, daquelas que ladeiam o rio, um cortiço (de cortiça mesmo),fechado de ambas as bandas e atado com sisal à mais alta braça da árvore. Instintivamente apontei-lhe a Valter. Medi a balística e desisti do tiro. Acto contínuo saco a G3 ao Chitapata o maconde, que estava a meu lado e "rajadeio " o insólito objecto. Ainda a rajada não ia a meio e já aquela merda explodia para todos os lados... e eram granadas... e bazucas e morteiros pelos ares. Quando dei por mim todos os homens estavam alapados ao chão: -Xiiiii………… Siliva você vai matar a gente….
Quando o ruído por fim terminou fui atingido na mona por uma máquina de sulfatar deformada, fumada e perfurada...uma obra de arte em latão que ainda hoje guardo como recordação daquele episódio, daqueles tempos, daquelas gentes, dos meus soldados macuas e macondes.

                                Equipa de Futebol de Furriéis de Pundanhar -1974?

Furriel Baltazar Damas em plena acção psicológica 
 
       
                                                        


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