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Livros da guerra colonial

Miandica terra do outro mundo


segunda-feira, 15 de maio de 2023

A CAUDA DO ESCORPIÃO -- O ADEUS A MOÇAMBIQUE . LIVRO DE GIACARLO COCCIA

 



 GIANCARLO COCCIA e VERTENTE , 2011

Título: A Cauda do Escorpião -- O Adeus a Moçambique
Uma edição revista e ampliada de The Scorpion Sting --Moçambique,
publicado originalmente pela Livraria Moderna de, Joanesburgo, 1976

Texto com letras a preto, retratam escrita de Giancarlo Coccia.
A amarelo o Diário de Luís Correia.
                                                 
                                      PREFÁCIO
 
Passaram 35  anos desde o fim do Império Português no Oceano Índico.
Passou mesmo uma geração e meia estes dramáticos dias  que, historicamente, mudaram a face e as influências geopolíticas da África Austral.
O "adeus" às possessões ultramarinas de Portugal deu o toque fúnebre à Rodésia e, mais tarde, ao apartheid da África do Sul.
(...) 
A linguagem utilizada nesta edição, ampliada e aprofundada, é a mesma utilizada pelo autor na edição de 1976. O termo terrorista é copiosamente repetido, mesmo que os terroristas de ontem, (dos Mau Mau do Quénia, aos guerrilheiros dos movimentos nacionalistas angolanos, do SWAPO da Namíbia, do  PAIGC da Guiné Bissau ao ANC da Áfica do Sul) se vistam hoje de estadistas-
(...)
Nas últimas décadas, os movimentos marxistas aburguesaram-se e descobriram o capitalismo ou a face mais vergonhosa da ideologia do pretenso mundo ocidental.
Aos homens de Montepuez (Moçambique), aos soldados traídos e aos mortos esquecidos, foi dedicada em 1976, a primeira edição de Scorpion Sting. Lisboa ergueu um monumento que não poucos nas Forças Especiais consideram como a apoteose da hipocrisia! Porque para os rapazes de Montepuez a gerência do Exército Português roubou em 1974 aquilo que aos Comandos era mais precioso: a DIGNIDADE.
(...)
Para mim, esta aventura começou uma semana antes do 25 de Abril e terminou na primeira semana de 1975.
Para Luís Correia foi diferente!
Quando visitei Moçambique pela primeira vez, tive a oportunidade de conhecer o Luís e de o acompanhar ao Centro Hípico de Nampula.



Luís Correia do CITMO

(...) Mas mais importante do que dar aulas de equitação, Luís Correia era o elemento de ligação do Governo Civil com o Comando Militar onde representava o CITMO, (CENTRO de INFORMAÇÃO e TURISMO de MOÇAMBIQUE)
(...)
De início não foi fácil sacar informações ao nosso cavaleiro andante; mas quando lhe falei da minha visita a Angola e dos amigos que aí tinha feito (mencionei-lhe o Major Duarte Silva, o Pessoa de Amorim, o Tenente-Coronel Augusto Laje e o Vasco Luís Esteves Ramires, instrutor dos  Comandos formados em 1962/63 em Zemba, Angola), não foi necessário apresentar mais qualquer credencial. Para o Luís Correia um amigo de outro amigo era sempre bem vindo.


                                    CAPÍTULO 1

...)Quando tomei conhecimento do assunto eram 21h20 de quinta-feira, 18 de Abril de 1974. Subi ao meu quarto no Hotel Moçambique, na Beira, e fiquei a pensar: Que fazer agora? Estava confirmado, tinha-me dito o Costa Gomes. As forças policiais já estavam a actuar. Era impossível parar a manifestação.
Levei mais de uma hora para me resolver telefonar. Eu sabia que os telefones estavam sob escuta. E então agora, depois os incidentes de Janeiro de Manica, Vila Pery e Beira...
Finalmente decidi telefonar.


                                           Luís Correia, 18/04/1974

                                                                 ***
À noite, Pretória é uma cidade pacata, quase morta. Como quase todos os residentes de Waterloof, dormia há várias horas quando o terrível som do telefone me acordou.
 -- Alô... É o Giancarlo?
-- Sim, daqui é Giancarlo...Com quem estou a falar?
-- Luís, Luís Correia...

Fiquei surpreendido. Luís Correia era um bom amigo. Ele representava o CITMO em Nampula, era delegado do CPEF (Conselho Provincial de Educação Física) e Desportos e instrutor-Chefe do Centro Hípico de Nampula. Mas, mais importante, Luís era o elemento de ligação do Governo Civil com o Comando-Chefe das Forças Armadas Portuguesas em Moçambique.
(...)
-- Ah, sim, Luís...Mas o que é que tu estás a fazer na Beira? Pensei que...
Estava a pensar nas justificações. Mas antes de poder acabar o que ia dizer, ele cortou-me as palavras. Na sua voz havia mais que uma ponta de excitação!
-- Escuta Giancarlo -- quase gritou --, estou no Hotel Moçambique, na Beira. Se não queres perder o desenrolar de uma grande reportagem, vem para cá o mais depressa possível. Deves saber interpretar o que te estou a dizer... Tenta lembrar-te... Nós discutimos isso em Nampula há menos de um mês... Entendes?

Hotel Moçambique, na Beira
Agora estávamos os dois excitados.
-- Sim, compreendo perfeitamente, mas quando vai acontecer?
-- Irá passar-se no mesmo dia em que o teu país se celebra a Libertação pelos Aliados, na Segunda Guerra... Então, vamos ver-nos em Nampula... Adeus Giancarlo!!!
(...)

Naquele momento eu era o único jornalista da África Austral, e provavelmente do resto do globo, que sabia que os rumores estavam finalmente a tornar-se realidade e que sim, na verdade,  ia haver um golpe em Portugal.
Alguns dias depois em NAMPULA, Luís contou-me que tinha sido o general Costa Gomes que algumas semanas antes lhe tinha dito: ; O Governo, tal como está, não chega ao próximo 1º de Maio
Luís achou que a notícia era ; era muito importante e extremamente preocupante. Lembrou-se da conversa que tivemos em Nampula no mês de Março sobre o que lhe tinha dito o Capitão de Cavalaria Mário António Tomé,do Movimento das Forças Armadas (MFA), e outros oficiais General dentro do Quartel  (QG), disse-me o Luís, para quem esta em jogo a vida de milhares de africanos. Quem irá segurar as rédeas deste cavalo à solta? Seria possível detê-lo?

                                            
                                              ***  
A situação era tão confusa quanto incrível. Os fans do general António de Spínola tinham razão. O seu livro Portugal e o Futuro tinha acendido o rastilho do paiol revolucionário! Iria este prestigiado militar liquidar o já vacilante Governo de Marcelo Caetano? Estava tudo preparado para o dia 25 de Abril? Iria Spínola fazer a diferença, tentando subir militarmente  a parada em Angola, Moçambique e Guiné, antes de iniciar acções políticas e diplomáticas para acabar de maneira digna a guerra e a presença lusitana em África?
(...) 
A grande aventura estava a começar!
Algumas horas mais tarde eu e meu irmão Emílio estávamos a empacotar caixas e bagagens. A minha cabeça voava de Pretória para Lisboa, de Lourenço Marques para Nampula, de Nampula para Nangade, do Norte de Moçambique e de Marcelo Caetano para António de Spínola. E por fim, pensava nos Comandos de Montepuez que tanto tempo tinham combatido, sem saberem que sorte lhes estaria reservada no dia seguinte ao fim do Império Português.
Qual seria a reacção da população branca de Moçambique com o sucesso dos golpistas em Lisboa? E como iriam reagir os soldados portugueses, brancos e pretos, sabendo que a guerra, depois de anos de combate sem qualquer visão de vitória, poderia acabar? Spínola tinha escrito: <>.
Se esta força se desfizesse de repente, o que poderia acontecer?
Seria possível uma insurreição da tropa negra de recrutamento local?



                                                 ***  
Em 1965, por influência do general Augusto dos Santos e do então brigadeiro Costa Gomes, Lisboa concordou com a transferência de vários departamentos e serviços do Quartel General de Lourenço Marques para Nampula.
Com a chegada do QG e a mudança permanente do brigadeiro Costa Gomes para Nampula, a cidade teve um grande surto de desenvolvimento, passando assim a ser conhecida como a capital militar de Moçambique.
(...)

Assim, em 1974, além de cerca de dez mil militares, Nampula tinha uma razoável população civil que a tornou na terceira maior cidade de Moçambique. Todo o apoio aos militares e famílias tinha de ser trazido do sul. Mesmo assim, continuava a ser uma pequena cidade do interior, sem grandes perspectivas de melhorar.
(...)

Seguindo pegadas das anteriores visitas, o meu irmão Emídio e eu dirigimo-nos para o Hotel Portugal.
(...)

Luís Correia estava na cidade e chegou ao hotel logo depois do pequeno almoço. Já estávamos no meu quarto quando, com uma chávena de café à frente, confirmou o que me tinha dito ao telefone quatro dias antes. O golpe em Lisboa era mesmo para se fazer. Tinha tido confirmação disso mesmo naquela manhã de 22 de Abril pela boca de outro oficial superior. Notável!.
(...)
Dizerem-nos acerca de um golpe, é uma coisa. Acreditar é coisa muito diferente, resmungou o o meu irmão Emílio, limpando a Leica e a Pantax, os aparelhos fotográficos que trazíamos. Mas olhando para a convicção com que o Luís falava percebi que desta vez não podia haver qualquer dúvida.
Misteriosamente ou não, o Luís estava a transmitir-nos a realidade;Isto já não vai durar muito.

Hotel Portugal em Nanpula
Tendo aceite que seria assim,contactei a Secção da Imprensa das Forças Armadas em Moçambique. Desejava obter autorização dos militares para acompanhar tropasem combate contra os guerrilheiros da Frelimo.
(...)

Nampula não nos servia. Durante a noite já tinha decidido que, para presenciar reacções honestas ou demonstrações genuínas por parte dos militares, teria que ser longe do Comando QG das forças portuguesas. Aqui, com a segurança existente, nada chegaria ao nosso conhecimento.
Os únicos lugares que poderiam interessar eram Mueda, ou mais a norte junto à fronteira com a Tanzânia, Nangade.
Escolhemos o segundo porque era o aquartelamento que poderia ser atacado a qualquer momento por forças da FRELIMO e tinha forma de se defender convenientemente.



(...)
NANGADE ficava perto da fronteira e tinha na sua retaguarda várias e importantes bases da FRELIMO .
As forças presentes sabiam o risco que estavam a correr e teriam de lutar até à últimas consequências
(...)
A nossa primeira tentativa de alcançar NANGADE falhou. Era muito cedo e as nuvens estavam muito baixas. Quando levantámos voo no bimotor PIPER ATZEC, as nuvens cobriam já toda a zona e tinham-se transformado num manto cinzento-escuro.

NANGADE era como uma ilha portuguesa no meio do território controlado pela FRELIMO. Isto não surpreendia ninguém. NANGADE estava situada na parte mais a norte de Cabo Delgado. De uma pequena elevação  de terreno, junto ao quartel, via-se claramente a Tanzânia. Ao fim de dez anos de guerra era natural que a FRELIMO tivesse acampamentos dentro de Moçambique e o controlo das populações no mato.
 O grave problema era que,desde finais de 1973, além de terem homens no terreno, por cortesia da União Soviética, tinham também dispersos pela área mísseis terra-ar SAM 7 . Para as aeronaves voando baixo dos dois mil metros, eram fatais.
A segunda tentativa foi um sucesso. fomos recebidos, junto à placa de estacionamento, pelo comandante do BCAÇ 5013/73, o tenente-coronel Carlos F. Delfino, ali colocado desde Agosto de 1973. Além do comando, havia a 2ª companhia do batalhão do capitão miliciano Francisco Pinheiro Ramos, a Artilharia, os Grupos Especiais (GE) e, eventualmente, os Comandos.
(...)

NANGADE fora já atacada muitas vezes . Exactamente uma semana antes da vossa chegada, disse-nos o Tenente Coronel Delfino, um grupo de terroristas instalou-se numa escarpa entre dois montes próximos. Daqui fizeram fogo com lança mísseis BM 21... Bom material fornecido pela URSS! Mandaram mais de 150 foguetões de 122 mm contra o quartel. Nada de importante foi atingido por todo este fogo - de - artifício que durou trinta minutos.
Tudo terminou quando os caça-bombardeiros  FIAT G 91 da FAP, saindo de Porto Amélia, chegaram, atingindo  em cheio o alvo.
(...)
À noite, na messe dos oficiais, o comandante Carlos Delfino, convidou-me para acompanhar um grupo de operacionais moçambicanos, quase todos negros, comandados pelo alferes Comando Fernando Paiva. Iriam sair numa operação, na madrugada do dia seguinte, com duração de  cinco dias. O objectivo seria capturar alguém da "Base Beira" distante alguns quilómetros de NANGADE, que fosse capaz de confirmar as informações recebidas.
Era para a zona da Base Beira, que a FRELIMO trazia os seus convidados VIP e lhes mostrava que tinha o controlo das populações macondes e de todo o território até ao rio MESSALO. Chamavam-lhes Zonas libertas.
Esta base logística tinha um efectivo variável. A sua missão era servir de apoio ao núcleo central da FRELIMO em Cabo Delgado. Este situava-se entre: Mueda; Sagal; Diaca; Muidumbe; Nangololo e Sul de Miteda. Não muito longe da estrada Nancatar-Mueda estava a "Base 25", onde todo o material de reserva dos guerrilheiros, depois de ser transportado a pé desde a "Base Beira", ficava em depósitos subterrâneos

...) A DGS, sempre informadíssima, dizia que no início de 1974 a FRELIMO, tinha em Cabo Delgado, 2069 "terroristas"  e mais de quatro mil milicianos armados para defesa dos "seus" macondes moçambicanos!
Os relatórios da polícia secreta portuguesa diziam também que, dos cerca de 200 mil macondes em território nacional, estavam aldeados cerca de noventa mil. Esta foi uma das muitas justificações para o general Kaúlza de Arriaga laçar a "Operação Nó Górdio". Foi aqui disseram-nos, que em Abril de 1970, Samora Machel anunciou a formação do novo Exército Popular de Libertação Nacional, embrião das futuras Forças Armadas de Moçambique. O tal "Exército maconde".
A informação era que depois desta reunião - conferência iriam declarar o planalto dos Macondes como "zona libertada". Machel, Acompanhado pelo seu adjunto para as operações, Sebastião Mabote, foi recebido pelo comandante da "Base Beira", Joaquim Norte. Aqui se reuniram com os seus comandantes. Não havia qualquer dúvida que o Comando português tinha que desencadear umagrande operação militar nesta zona.
Assim teve que ser. Nos finais de Junho de 1970 teve início a maior operação jamais realizada pelos portugueses em África. A "Gordian Knot (Nó Górdio" tinha como objectivo destruir o mito de que a independência estava por dias. N mês anterior, o general Kaúza de Arriaga tinha assumido finalmente o cargo de comandante de comandante-chefe de todas as Forças Armadas de Moçambique. Tinha sido c


A segurança afastada da base era garantida pela população civil que mantinha o núcleo central desta informada dos movimentos das tropas portuguesas. Era uma missão de alto risco. A maior parte da base era subterrânea e estendia-se por várias centenas de metros quadrados. Todas as tentativas de a destruir do ar não tinham dado nenhum resultado. Era-nos impossível fazer uma aproximação directa dado que todos os trilhos estavam armadilhados..
Qualquer som semelhante a um pássaro poderia ser um sinal de alerta para os defensores da "Base Beira". 
Não era fácil fazer esta progressão no terreno. Era exactamente o que procurávamos; estar no centro de uma acção arriscada durante o dia 25 de Abril de1974. Assim, quando a notícia do golpe em Lisboa fosse transmitida, poderia registar a reacção das tropas portuguesas operacionais.
Sair com este tipo de combatentes africanos, pensei eu, seria o ponto alto da minha visita a esta guerra que durava há quase  dez anos
Agradecemos ao comandante Carlos Delfino, um veterano de quatro anos em Angola e de três na Guiné . Esta sua comissão em Moçambique aproximava-se rapidamente do fim. Delfino já não estava em Nangade quando a FRELIMO negociou localmente a entrega do quartel, a 1 de Setembro de 1974.
Setembro de 1974. Entrada da Frelimo em Nangade

Os ponteiros do meu relógio marcavam 03h10 do dia 24 de Abril, quando, debaixo de chuva, deixámos o quartel, marchando ao longo da pista do aeródromo de Nangade.
(...)
Era meio-dia e não tínhamos marchado mais que uma dúzia de quilómetros, quando o alferes GE João Fernandes Paiva, que tinha o crachá dos Comandos por cima da farda preta dos GE,  concordou em fazer uma paragem.
(...) 
Ao segundo dia a sorte não estava connosco. Por volta da meia-noite, não podendo dormir e desejoso de se manter em contacto com o quartel, o alferes Paiva descobriu que a chuva tinha entrado no compartimento das baterias do rádio. Nenhuma tentativa foi capaz de introduzir o R/T a trabalhar e, não havendo qualquer forma de estabelecer contacto com Nangade, a nossa progressão para o objectivo parou.
Várias razões justificavam a decisão tomada pelo aLferes. Primeiro, sem um rádio seria impossível pedir uma evacuação se alguém fosse ferido. Em segundo lugar, qualquer avião amigo que nos sobrevoasse, sem contacto rádio com o nosso grupo, poderia bombardear-nos ou solicitar apoio para tal.
Nestas circunstâncias, o alferes fez a única coisa que podia ser feita: mandou uma secção de cinco homens voltar ao quartel e obter um novo rádio, enquanto o resto do grupo aguardava o seu regresso.
A secção regressou por volta das 08h30 e eram 08h55 o rádio fez ruídos de estar em condições.

Bartolomeu, alferes Paiva e o "Comando"
Que alívio! Os meus receios nocturnos evaporaram-se. Fazendo um esforço de audição até sentir o tilintar dos ouvidos, consegui captar a voz do surpreendido alferes Paiva quando repetiu para o microfone do R/T  de campanha: Golpe?....Que Golpe?....
Um longo silêncio seguiu-se a estas palavras, enquanto ele atentamente escutava as novidades com os auscultadores colocados. Fez mais algumas perguntas e finalmente pousou o micro.
(...) 
-- O Governo vai cair -- afirmou ele em voz baixa. --O Movimento das Forças Armadas controla o país sem oposição ou sangue... O general Spínola poderá ser o novo Presidente da República ... com ou sem Caetano... Pelo menos assim o desejamos -- terminou o bravo alferes.
Limpando a garganta carregada de pura emoção, disse:
-- Tudo começou esta madrugada. Parece que Lisboa está totalmente controlada . O que foi transmitido foi confirmado pelo Maior.
O alferes João Paiva olhou rapidamente à sua volta. Com certeza que esta surpreendido pelo que tinha acontecido mas era claro que não desejavam que os seu homens tivessem conhecimento.
-- O comandante ordenou que se continue a operação. Sendo assim, eu penso que é melhor que para já o pessoal não seja alertado do golpe, Vamos, temos que nos apressar, bebamos um golo pelos homens agora no poder.
Naquele momento a minha garganta estava tão seca como nos meus piores momentos. Emílio e eu, agradecidos, aceitámos o bocadinho de aguardente da garrafa do sargento.
Quando reiniciámos a marcha na tentativa de apanhar alguns elementos da Frelimo, o sargento Branco disse:
-- Agora, com o nosso general Spínola, faremos a guerra a sério contra os terroristas... Vamos mostrar-lhes como se faz!
Caminhando a seu lado, o alferes Paiva, de 22 anos de idade, concordou.
-- É o que estava a pensar. Talvez até possamos atravessar a fronteira levar a guerra para o lado de lá, na Tanzânia, e atacar ali mesmo os turras..
Paiva e Branco eram dois bravos combatentes. Porém estavam em Moçambique e não tinham conhecimento da realidade por detrás do golpe.
(...)
-- Quero aproximar-me o mais possível da Base Beira  -- disse-me o Paiva. -- Quero deixar aos terroristas uma boa memória de como nós fomos como adversários.
Marchámos toda a manhã. Por volta do meio dia entrámos na zona de segurança controlada pelos milicianos da Frelimo que era assinalada nas cartas militares como terra de ninguém. Pondo as coisas noutros termos; não controlado pelo Exército ou pela Frelimo estava marcada com uma linha laranja ao redor da Base Beira.
O pessoal caminhava agora com muito cuidado, sempre alerta e pronto para reagir. Cerca das 14h passaram-nos voz que estávamos a entrar na zona vermelha, território já controlado pela Frelimo onde poderia haver emboscadas.
O alferes Paiva ordenou que fizéssemos alto à marcha. O silêncio era agora total. Entre nós só se ouvia o respirar dos homens dos GE. Estávamos apreensivos.
Foi neste momento que se passou aquela que considerei como uma atitude triste de bravata e que estou convencido estar relacionada com a notícia via rádio.
Paiva deu ordem de pôr os morteiros em posição. Foi um momento patético que nos deixou a todos tristes. Estávamos só no início da zona vermelha e a mais de oito quilómetros do que poderia ser o início da base da Frelimo...Os morteiros de 60 mm tinham um alcance máximo de 600 metros. Fogo...Fogo! foi a ordem dada. Se os terroristas ouvissem o estrondo dos pequenos morteiros, pensei, deveriam partir-se a rir com aquela farsa! Depois de dar dezoito morteiradas o Paiva teve o bom senso de ordenar que se encerrasse a charada.

O Alferes Paiva a disparar o morteiro
(...)
Ninguém falou durante a marcha forçada de regresso ao quartel de Nangade. Quando no final da tarde de 26 de Abril nos aproximámos de Nangade, passámos pela ravina a meio das saliências da Gina Lollobrígida, onde o Fiat G 91 atacou e destruiu as plataformas dos foguetões de 122 mm montadas pela Frelimo no ataque dias antes, contra N

                                          ***  
Nangade
Sábado, 27 de Abril de 1974
07h00

O Fascismo caiu! Morte aos fascistas!
(...)
Nangade estava transformada estava transformada numa central de debates  e a palavra fascista estava na ponta das línguas. Até a pobre mascote da messe de oficiais , berrando de fome, foi pontapeada e chamada de fascista! Um cão fascista ... ao que se chegou!
A maior parte dos militares de Nangade acreditava que Spínola tinha tomado conta do poder para os salvar.
No dia seguinte, eu, estaria, fora dali.


                                                   *** 
  Do diário de Luís Correia                                
Nampula
25 de Abril de 1974

Como todos os dias, das 05h15 até à 06h, escuto a BBC, a Rádio Moscovo, a Voice of América, a rádio RSA e, naturalmente, a Emissora Nacional de Lisboa... Nada de muito importante.
(...)
08h30. Depois de ter acabado o segundo café, levantei-me e fui à recepção saber se havia novidade para mim. O senhor Marques, proprietário do Hotel Portugal, sempre no seu posto de observação respondeu-me que não.
--Não, Luís, até agora nada ...Tem visitantes convidados pelo Governo?
-- Hoje não, senhor Marques. Só amanhã. Chega o Wilf Nussey do Star.
(...)
-- Quando estava para me despedir, o senhor Marques disse:
-- Olha, olha! o nosso amigo Jorge Cruz. Então hoje não se trabalha?
-- Bom dis senhor Marques -- interrompeu o Jorge Cruz -- Estou aqui à espera do Luís para saber se há notícias.
-- Não, Jorge ... ainda não há novidades ... Vou agora ao Comando-Chefe para saber se hámais visitas dos militares para além do Nussey ...
Procuro-te depois no aeroporto.
-- Vê se têm notícias dos italianos de Nangade ... E tu, Jorge, tens?
-- Não, nada. As últimas notícias deles foram que estavam a sudoeste de Nangade ... Se for para Cabo Delgado tento saber alguma coisa.
09h15. Cheguei ao Quartel General. Ou melhor: cheguei à casa cor de rosa!
Subi ao  primeiro andar, zona reservada ao comandante - chefe, general Basto Machado, e perguntei ao seu ajudante de campo, capitão de Cavalaria Cuco Rosa:
-- O chefe está livre?
-- Atendi uma chamada oficial de Lisboa para o general -- respondeu o capitão muito excitado. --Eu disse aos gajos de lá ... Aqui não há generais... Só capitães! E a linha caiu.
Entretanto, o telefone toca novamente e Cuco Rosa atende: Sim, sim! Escuto.
Cobrindo com a outra mão o bocal pede-me:
-- Eh pá, faz-me um favor e chama-me aqui o Major Tomé.
(...)
Ao entrar na sala dos adjuntos, vi que estava cheia de oficiais que nunca tinha visto.
Disse bem alto: major Tomé, o ajudante de campo do chefe chama-o ali ao telefone. Resposta de alguém que não reconheci: Chefe somos todos nós!.
O major Tomé saiu para o corredor e disse: Olá Luís Correia, bom dia...e foi atender o telefone.
Fui atrás dele ... Ouvi a conversa! Preocupante.
Quando o Tomé acabou de falar com Lisboa, disse para o Cuco Rosa:
--- Que fazemos com o chefe? Removemo-lo? 
-- Não pá! Para quê? Não vale a pena, ele não faz mal a uma mosca.
Com calma, sem dizer palavra ou dar nas vistas, desci para a rua.
(...)
10h00. A caminho do aeroporto. Porra isto está podre. Jorge Cruz não tinha regressado... Talvez tenha ido a Cabo Delgado, pensei... Alguém? Ou será uma evacuação?
A guerra continuava no terreno mas no QG já não havia generais! Vieram-me à memória as palavras : Chefes somos agora todos nós! Muito inteligente ... E a malta  a lerpar no mato...
(...) 
À tarde, no QG estavam todos eufóricos.
-- Dá cá um abraço Luís... Vencemos... Não estás contente? --- disse-me alguém.
-- Receio o pior... Isto pode entrar num descalabro -- respondi.
-- Não seja tão negativo, tudo se resolverá ... Temos que acabar com a guerra. Nada a justifica. Queremos ir para casa. Nós demos o nosso melhor. Os gajos não souberam resolver isto. Lutamos há mais de dez anos para lhes dar tempo... O problema não é militar, é simplesmente político.
Simplesmente!!!

Enquanto Emílio, meu irmão e eu recomeçávamos a marcha na direcção  da Base Beira, em Nampula, Luís Correia levantava-se para dar início ao seu dia

Às 05h30, o sol já estava a nascer sobre o dia depois da revolução. Vi o Jorge Cruz. Ele tinha que ir para a sua vida, no ar. Antes de nos despedirmos, disse-me: Lembro-me deste capitão Maia. Em 1968 esteve a fazer o tirocínio operacional em Cabo Delgado com a 9ª de Comandos.
Às 09h00. Cheguei ao QG de Nampula. Encontrei o capitão Lisboa dos serviços de imprensa que descia do 1º andar 
-- Bom dia Luís Correia
--Bom dia senhor capitão Lisboa 
-- Tudo sobre rodas
-- Se a DETA chegar a horas, o Wilf está cá às 11h45
-- Ainda bem. O briefing está marcado para as 14h30
-- Capitão Lisboa, o que me traz cá é saber se já tem notícias de Nangade ...
-- Meu amigo, não me diga... Está preocupado com os italianos?
-- Sim capitão. Não sei quando regressam  de Nangade e se têm transporte. Julgo que tenho a obrigação de verificar se os visitantes, mesmo não sendo convidados, têm a visita facilitada.
-- Estava planeado regressarem este fim-de-semana, Luís... Está bem... Logo depois do briefing, se eu tiver notícias, coordenamos as viagens -- concluiu, deixando-me nas escadas do Comando-Chefe.
Às 11h50 estava no aeroporto quando o Boeing 737 da DETA abriu as portas para o desembarque dos passageiros. Já tinha passado um dia sobre o golpe e parecia que tudo estava a ficar tranquilo.
Durante o almoço com o Wilf Nussey, o jornalista sul-africano tentou explicar-me que o futuro de Moçambique, tal como o de Angola e dos outros territórios portugueses, seria jogado em Lisboa.
-- Não é aqui no mato que esta guerra será perdida -- dizia o Wilf. -- Já há meses que os meus contactos em Londres me diziam que este 1º de Maio seria o mais importante evento para todos nós na Àfrica Austral. E mais: que irá reduzir fortemente a influência da Europa em África.
Chegámps ao QG pouco antes das 14h30. Depois das apreentações, o wilf Nussey disse que tinha uma lista de perguntas para apresentar. Trazia  cópias e entregou uma ao oficial da 2ª  Repartiçã. . O homem ficou "atarantado". Depois de ler as perguntas disse:
-- Podem subir Luiz. Eu venho já.
Esperámos uns minutos e chegaram dois oficiais que não conhecia de outros briefings. Seriam ou recém-chegados ou "controleiros"!
O briefing foi bom, como sempre. Mas no fim Wilf perguntou:
-- Ea lista que entreuei? Não recebi ainda a resposta a algumas das minhas perguntas!
Olhámos uns para os outros e o nosso simpático major disse:
-- Luiz, quando viaja o senhor Nussey?
-- Amanhã... mas ainda volta a Nampula. Ele quer voar directamente para Lisboa para chegar na próxima $ª Feira , 1ia 1 de Maio
-- Bom vamos tentar --- disse o major da 2ª Repartição onde vão jantar?
-- Jantamos na marisqueira ao lado do Clube Niassa e dormiremos no Hotel Portugal.
O jornalista sul-africano interrompeu , dizendo ao major que tinha cópias para poder entregar pessoalmente ao general Costa Gomes que conhecia bem dos tempos de Angola!
O major pediu-nos então que aguardássemos só uns minutos e saiu da sala. Regressou acompanhado do chefe que tentou dar resposta a algumas das perguntas. Porém, a mais importante para o Willf não teve resposta...




-- A FRELIMO está operacional junto ao rio Save ou não? As minha informações - prosseguiu o jornalista  - são de que há uma certa complacência da parte das forças portuguesas no terreno. Os guerrilheiros da ZANU (  Zimbabwe Afican National Union) passam meses invisíveis, a consolidar as suas posições nas colinas do Nordeste com ajuda! E os chineses?.
Vocês sabiam que a rede da intelligence rodesiana teve que se infiltrar em Moçambique para saber qual é a situação ao longo da fronteira leste...
Parece que todo este lado do seu país está descontrolado. O terreno favorece os terroristas e os manchambeiros brancos não têm defesa alguma.
Vocês sabem que um pequeno grupo de guerrilheiros da ZANU  e FRELIMO infiltraram na zona de Espungabera? - continuava o Wilf à frente de militares que sabiam de tudo isto muito melhor do que ele!
-- Os rodesianos têm pessoal  dentro do inimigo -- acescentou o Wilf
-- e sabem que a FRELIMO está em expansão e que só com a ajuda da ZANU chegaram a sul da vila de Manica.
Havia muita suspeita em redor da morte de um agricultor, a 14 de Janeiro na província de Manica. Pior ainda foram as informações que nos chegaram. Todas as manifestações que se efectuaram em Vila Pery e Beira, depois da violenta e selvática morte da senhora, tiveram o toque da "Mão Escondida"  de quem não queria a harmonia racial de Moçambique.
A FRELIMO  estava ou não no rio Save? Foi a pergunta que muitos jornalistas fizeram durante a visita do general Costa Gomes em Maio. Nunca ouve uma resposta satisfatória. Em Abril de 74 era mais que evidente que ninguém queria tocar no assunto.
Sim, havia  pseudo FRELIMO em Manica. Quem os controlava?  A DGS? . A CIO (Central  Intelligence Organization) rodesiano? Quem nos podia responder a esta e a outras perguntas? Há outras forças a operar em Moçambique fora do controlo militar português oficial?

                                            *** 
Os rodesianos! Passei a noite a reler as notas do meu diário...
Janeiro de 1974. Ayaque da FRELIMO a Mueda com foguetões de 122 m/m.
Não houve mortes mas ficaram muitas marcas por todos os lado. É este oinício de uma nova fase da guerra? Fui lá tirar fotografias. Acertaram de raspão na placa que indica o nome da localidade de Mueda,
No dia 14 do mesmo mês, numa quinta perto de Vila de Manica, na fronteira com a Rodésia, morreu a esposa depois de ter sido violada e massacrada. A FRELIMO nunca mencionou este ataque que ficará na história daquela guerra como a primeira acção de pseudoterrorismo de "desconhecidos" contra colonos brancos no centro de Moçambique. Quem beneficiou com este ataque? Com certeza que não será muito difícil descobrir e perceber quem foi! Pelo menos acelarou a retirada do Exército Português.
O resultado imediato desta acção terrorista foi provocar agitação na população branca, tanto do lado rodesiano da fronteira como no moçambicano. As manifestações de protesto vão aumentando de tom. Muitos farmeiros vindos do outro lado juntaram-se aos de Manica para, em conjunto analisarem em conjunto, analisarem a situação. Foram formados comités de auto-defesa com apoio rodesiano e pedidos aparelhos rádio R/T e armas

Nampula

Sábado, 27 de Abril de 1974

As notícias de Nangade são muito positivas. Cheguei ao Hotel Portugal pouco passava das 07h45. Tinha uma mensagem a dizer: Os Coccia regressaram bem a Nangade. Vão chegar a Nampula em 
breve, via Porto Amélia.
(...)
Acompanhados por Wilf, fomos no domingo fomos da Ilha de Moçambique com passagem por Nacala, até Palma , onde o jornalista sul-africano tem contactos e amigos entre os Fuzileiros. Trazia muitas fotos destes para lhes entregar.
Regressámos a Porto Amélia à hora do almoço. Visita ao coronel Pires Veloso.
Eu pensava que os irmãos Giancarlo e Emílio ainda estavam em Nangade? Negativo -- disse o coronel -- Já seguiram para Nampula de avião.
--Porque saíram de Nangade assim tão rapidamente?
-- Os Coccia eram os únicos dois jornalistas estrangeiros na Zona Operacional desde o 25 de Abril -- foi a resposta do coronel.
-- Não temos mais notícias para divulgar? -- perguntei.
-- Notícias e biefings agora só pela Comissão do MFA
Fiquei muito espantado. O nosso objectivo era facilitar ao máximo o trabalho dos correspondentes nacionais e estrangeiros.
Regressámos a Nampula mesmo a tempo do Wilf Nussey poder regressar a Lisboa! Estou farto de ouvir falar no tal 1º de Maio.

                                                  *** 
Depois de uma semana no mato, a Capital do Norte  tinha-se transformado. Nampula, na minha mente e na do Emílio, era agora uma enorme, graciosae linda cidade. Concordámos que seria a coisa mais parecida com o Paraíso!
Os nossos sonhos de lagostas foram destruídos quando um avião chegou a Nangade. Vindo de Porto Amélia, o piloto transportava uma mensagem do Comando de Sector para o comandante Carlos Delfino.
A mensagem dos novos governantes de Portugal era simples e directa: Nós achamos inaceitável  a presença na frente de combate de dois jornalistas cujas ideias políticas são contrárias aos ideais e ao presente curso da política portuguesa. Eles são pois ordenados a embarcar no avião oferecido, aceitando o transporte para Porto Amélia.
Emílio e eu ficámos surpreendidos mas, como não éramos bem-vindos, não nos importámos de sair.
Porto Amélia, a pequena cidade marítima do Norte de Moçambique, que além de outras coisas produzia as melhores lagostas do mundo, era uma urbe movimentada e alegre. Era até difícil de acreditar que as notícias tenham ali chegado. No aeroporto fomos recebidos pelas mesmas caras dos agentes da DGS. Firmes nos seus postos, apena não tinham o distintivo da Polícia da Fronteira que o antigo regime lhes pendurava ao peito.
Logo que instalados no Hotel Cabo Delgado, telefonei ao comandante local, coronel Pires Veloso, para lhe agradeceo avião posto à nossa disposição. Sem qualquer problema, respondeu ele, por si trato de tudo com muito prazer. Quer almoçar comigo amanhã?
Nas presentes circunstâncias fiquei surpreendido com a gentileza do Pires Veloso. Ele deve ter sido apanhado em falso! Uma hora mais tarde telefonou-me coma voz alterada, mas cortês, e desmarcou o encontro.
Também Porto Amélia não nos davam as boas-vindas. Assim, no dia seguinte, seguimos para Nampula onde seríamos sempre bem-vindos.

                                                  ***

Estávamos a 29 de Abril, na Capital Militar do Norte.
(...)
A Direcção Geral de Segurança em Moçambique tinha 562 funcionários ao seu serviço, número confirmado pelo Departamento de Finanças do Estado, dos quais menos de 500 eram agentes.
Quando começou a ultra-secreta " Operação Zebra", efectuada em Moçambique pelo MFA às 00h de 8 de Junho de 1974, foram presos 529 elementos da DGS. Onze deles, os mais importantes nunca foram localizados! Os restantes 22 funcionários, todos de quadro médio e superior que, em simbiose com as Forças Armadas, constituíam os elementos mais qualificados das informações, alertados elos seus colegas militares, antes da execução desta operação, deram o "salto"

                                                    ***
Embora houvesse muito pouco, Emílio e eu passámos o dia em Nampula, esperando pelo Luís Correia que, mais uma vez, tinha desaparecido de vista na sexta-feira à noite. Aproveitámos o tempo para visitar para visitar o QG onde o major Mário Tomé controlava já tudo, recebendo apenas ordens directas dos seus colegas do MFA em Lisboa.
Major de Cavalaria, era um oficial à maneira, condecorado em combate quando, como comandante da CCAV 1601 em Meponda e vila Cabral ,Nova Viseu, tinha demonstrado as qualidades que confirmaria na Guiné. 
Conhecia bem o major Tomé. Quando nos reencontrámos em Nampula, já no seu novo cargo, estava excitadíssimo com a nomeação como coordenador do MFA em Moçambique. O MFA em Lisboa queria que ele informasse se o substituto do general Arriaga era favorável ou não ao golpe. Como elemento mais visível dos revoltosos teria de se ver livre dos generais se fosse necessário!
Os outros membros do MFA em Nampula convenceram Tomé a entrar em diálogo com o comandante-chefe Basto Machado e este um bom militar toda a sua vida, não teve dificuldade em se acomodar. Mas primeiro, escreveu uma declaração pessoal onde afirmava que... meu dever de militar é de servir o povo português e não o poder, que é sempre temporário.

                                                  *** 
Luís Correia:
Estive fora três dias e a primeira coisa que fiz no regresso foi ir ao Centro Hípico verificar se os cavalos estavam bem.
Por volta das 20h entrei na recepção do Hotel Portugal. Tinha que jantar e falar com o Giancarlo e com o Emídio. Os dois irmãos estavam em boa forma considerando que tinham feito mais de 150Kms com os homens do Alferes Paiva dos GE, junto ao rio Rovuma. Já passava da meia noite, quando a nossa conversa terminou.
(...)
Ficou assim combinado que no dia seguinte, terça-feira, 30 de Abril, os dois irmãos seguiriam para Tete e Cahora Bassa. Dois dias para visitar aquela zona, sexta-feira para Lourenço Marques e depois regressam à África do Sul.
No dia seguinte, quando nos despedimos no aeroporto de Nampula, Giancarlo disse-me:
-- Vou voltar para Nampula, desta vez por terra, para recolher mais reportagem sobre o fim da guerra em Moçambique e...
-- Fim? Ainda não -- interrompeu-me. Fiquei a aguardar ... nada!
-- E vou para último para escrever a História do Fim do Império Lusitano nesta parte da África... Arriverderci, ciao amigo Luís!

                                           *** 
Uma coisa muito estranha aconteceu em Lourenço Marques no dia seguinte à nossa saída de Tete (3 de Maio), Tínhamos acabado o almoço na esplanada do Hotel Polana, quando no quarto recebi uma mensagem dum tal senhor Soares, dizendo que tinha muita urgência em falar pessoalmente comigo. Estaria ao final da tarde no salão de chá do hotel. Como não conhecia nenhum Soares em Lourenço Marques e pensando que o assunto era muito estranho, fiquei a aguardar. 
(...)
Eram 18h  e o senhor Soares estava atrasado. Estava com o Emílio no bar quando finalmente chegou um homem baixinho e entroncado. Apresentou-se como o senhor Soares, e rapidamente acrescentou que tinha o meu contacto através de amigos comuns no norte de Moçambique.
-- Sei que vai para a África do Sul -- disse ele -- Se vai, faz-me o favor de levar esta carta consigo?
Certamente -- disse eu. -- Mas para quem?
--Não tenho a morada  -- continuou o Soares -- mas vou dar-lhe o número de telefone de alguém chamado Pedro. Ele irá buscar o envelope.
(...)
Olhe, sei que o senhor Giancarlo não me conhece. Tudo o que posso dizer é qui nomeado elemento de relações com o estrangeiro em nome de um grupo de agricultores e criadores de gado moçambicanos. Estamos muito preocupados com as consequências para o nosso futuro deste golpe em Lisboa.
Necessitamos de ajuda para nos organizarmos, senão, dentro de três meses, vai haver muito sangue em Lourenço Marques e em todo o Moçambique.
Fiquei a olhar para o envelope branco e sem endereço durante bastante tempo. Só muito mais tarde compreendi que tinha na minha mão uma missiva tão fina, prevendo a confrontação que abanaria Moçambique em Setembro. Um DRAGÃO DA MORTE tinha passado por mim quase sem ser notado!
Era domingo quando finalmente chegámos a nossa casa em Pretória.

                                                         CAPÍTUO 2

  Segredos do Governo de Pretória -- Volto a Moçambique -- A  terrível viagem para Nampula -- O Cemitério dos comboios__ O Camião das Cervejas -- O Rio Zambeze eo "Sabre" -- A Situação na Zambézia -- Nampula, situaçã militar no QG -- Luís Correia ausculta a África do Sul.                       
Texto com letras a branco, retratam escrita de Giancarlo Coccia.
A amarelo o Diário de Luís Correia.
                                            
Nampula. Sábado,  11 de Maio de 1974. Em frente do General Costa Gomes 
está todo o Estado-Maior do general Basto Machado.

Novamente em casa! Pretória não estava nem melhor nem pior do que quando a deixei a meio de Abril de 1974.
Em primeiro lugar tinha os artigos para expedir para o meu editor em Roma. Em segundo lugar, tinha que tratar do envelope do tal senhor Soares, ligando para o misterioso contacto Pedro, aliás Peter.
(...)
Respondeu directamente sem as normais apresentações. Depois de uma breve conversa, concordou em vir buscar o envelope.
Respondeu directamente sem as normais apresentações. Depois de uma breve conversa, concordou em vir buscar o envelope. Mais tarde, um Saiu.
 Volkswagen azul parou no meu portão e Pedro/Peter, semelhante a qualquer outro jovem que podia ser visto a andar nos passeios do centro da cidade de Pretória, saiu.
(...)Bastaram alguns minutos para perceber que o indivíduo não era estúpido. Pedro/Peter falava francês perfeitamente além, claro está, de inglês e africaânder , mas nã entendia italiano. Depois de ter lido a mensagem que vinha no envelope perguntou-me se sabia qual o conteúdo da mesma. Disse-lhe que sim, mas ele não acusou o toque.  
Retorquiu somente que faria chegar aos seus superiores o envelope.E preparava-se para sair sem dizer mais nada.
Antes de arrancar ainda lhe disse, honestamente,  que o Soares esperava uma resposta: um sim ou um não. Olhando para mim, já sentado ao volante do VW , o desconhecido Pedro/Peter abanou a cabeça e levantou o pé d embraiagem deixando a viatura rolar para longe do portão... Arrancou sem abrir a boca!
Nunca mais o voltei a ver e, pelo que fiquei a saber, talvez o senhor Soares esteja ainda a aguardar a resposta.
Tinha que começar a preparar-me para o regresso a Moçambique, decidido que estava a deixar Pretória no dia 21 de Maio de 1974.

***

Luís Correia continuava a manter-se informado da evolução no terreno:
Na Beira, depois da chegada de Nampula  (via Nacala) no avião que transportava um batalhão de jornalistas que acompanhava o general Costa Gomes, verifico que o general conversava com Hendrck Long John Van der Berg, chefe do BOSS da África do Sul. Nesta conversa estava também o comandante da Marinha, Almeida e Costa, do MFA em Moçambique.
Aproximei-me e fiquei a aguardar que o general notasse  a minha presença, o Dr. Hans Germani, alemão do Die Welt, estava desesperado para entrevistar o general Costa Gomes.
Na Beira, encontram-se também militares rodesianos. Estão a uma certa distância do general. Vão-se aproximando do sítio onde o grupo reservadamente conversa.
Foi nesta ocasião que o general Costa Gomes disse aos rodesianos: Não há muito tempo para vocês se prepararem para a breve chegada da FRELIMO ao Governo de Lourenço Marques.


Isto passa-se no dia 13 de Maio de 1974

                                          ***
No dia 21 de Maio, depois de  me despedir de meu irmão Emílio, deixei Pretória de volta para Moçambique. Ia começar a segunda parte da grande aventura. A história que ali estava na forja, o desmantelamento de uma colónia em guerra, era demasiadamente importante para ser ignorada.
(...)
Saí de Pretória no meu velhinho Land Rover ainda com a matrícula belga YL 291, pintado de amarelo para ser melhor localizado. Os meus amigos tinham-no baptizado de Yellow Submarine.
Estava a 3.500 quilómetros do meu destino, A estrada da capital sul africana até Beitbridge, na fronteira da África do Sul com a Rodésia, e depois até Untali, era alcatroada e em perfeitas condições. Até ali não tive qualquer problema.




(...)
A estrada Machipanda-- Vila Pery estava quase sem tráfego, o qu era no mínimo estranho. Apenas se viam pequenos grupos de caminheiros nas bermas da estrada que continuavam a fazer a sua vida. Eram elementos da população local.
(...)
O comandante militar da zona de Manica era o brigadeiro Ílharco, que eu já conhecia de Angolaem 1970 quando ainda era coronel.
Em Vila Pery, tomei conhecimento de que o  Brigadeiro Ilharco, que não alinhava nos princípios que o MFA procurava impor a todos os militares.
Quando nos reencontrámos, neste quartel de Cavalaria, o brigadeiro estava furioso. Tinha conhecimento dos planos para a Operação Zebra (prisão de todos os agentes da DGS), a ser efectuada às 00h do dia 8 de Junho próximo em todo o território moçambicano.
(...)
À tarde, na messe de oficiais, discutia-se a chegada dois dias antes a Lourenço Marques (21 de Maio) do Dr. Almeida Santos, nomeado ministro da Coordenação Interterrotarial pela Junta de Salvação Nacional. Na capital, ele conseguiu demonstrar a capacidade de Lisboa em fabricar mentiras!
referendo, disse ele ao povo durante a conferência de impressa, está planeado para daqui a um ano em todas as províncias ultramarinas.
Era bem claro aos observadores mais atentos que a Junta não tinha avançado nada nos planos para um referendo; este seria adiado ad finitum e mais do que provavelmente nunca se realizaria. Durante outras duas entrevistas concedidas em Nampula na tarde do dia seguinte, Almeida Santos mostrou pela primeira vez quem realmente era.
(...)
O Reitor do Liceu de Nampula, Dr. Morgado Reis, perguntou-lhe qual era a intenção do governoa respeito da falta de professores e das condições francamente caóticas, no Liceu agora que os exames se aproximavam,
A resposta de Almeida Santos foi que não valia a pena preocupar-se com estas coisas Drº Morgado. Tenho a certeza que a Frelimo sabe encontrar uma solução ... são capazes de já estar a examinar o problema, neste mesmo momento.

Almeida Santos, Ministro da Coordenação Interterrotorial
Isso era típico ! O sarcasmo com que Almeida Santos se dirigiu ao Drº Morgado não se comparou em nada com a maneira insultuosa como nesse mesmo dia tratou um oficial negro do Exército Português.
O CHIMANGANE, extremamente preocupado com os mais recentes acontecimentos na colónia, disse ao ministro do Ultramar, como era conhecido este Ministério antes do golpe:
-- Excelência eu represento milhares de soldados negros que têm estado a lutar por Portugal durante os últimos dez anos. Nenhum de nós está preparado para aceitar a Frelimo neste momento. Sabe, sou militar, formado nas escola do Exército de Portugal,. Sou moçambicano e como tal estou preparadp para para colaborar com queira constituir um exército que possa levar a esta terra à verdadeira liberdade, com ou sem a participação da Frelimo ... mesmo se tivermos de lutar durante anos!
E o CHIMANGANE continuou:
--  Pergunto agora, excelência, qual é o apoio do seu governo está preparado a prestar aos moçambicanos na presente conjuntura?
Almeida santos ficou silencioso durante alguns segundos. Então, com um sorriso sarcástico, disse:
-- Penso que a Frelimo não irá gostar muito dessa ideia. Seria talvez melhor você ie a Dar-es-Salam e entrar em diálogo com eles ... Lamento muito mas não o podemos ajudar.
Isto foi demasiado para Jonas, que de acordo com testemunhas presentes, saiu precipitadamente com lágrimas a correrem-lhe. Quando chegou à rua olhou para o grupo de pessoas reunidas ali e gritou: Eles vão vender-nos! Os filhos da puta! Vão vender-nos à Frelimo. Meteu-se num jipe e desapareceu
 da história moçambicana para sempre. Nunca mais foi visto, vivo ou morto...
(...)
Tinha planeado viajar de Vila Pery para Inhaminga, passando pelo Dondo, neste primeiro dia. A estrada até ao Dondo era muito razoável e tencionava cobrir os 200 Kms em menos de quatro horas.
Do Dondo a Inhaminga , o percurso seria mais lento por duas razões: primeiro, a estrada era terrívele, segundo, teria de atravessar  uma zona de mato cerrado a norte  de Condoé de cerca de 44 Kms onde era possível pisar uma mina ou ser vítima de uma emboscada
                                                    ***
Parámos no Dondo. A paragem foi muito breve. Até agora tudo tinha corrido como planeado. Virámos para a  picada de Inhaminga.
(...) 
Duas horas depois do cruzamento que nos trouxe aqui, chegámos a SIMACUESA, onde passava a linha dos comboios. Este local era agora conhecido como o cemitério dos comboios. A primeira mina colocada pela Frelimo na tentativa de descarrilar um comboio, foi colocada aqui.



Comboio destruído pela Frelimo
(...)
Cheguei a Inhaminga já de noite. Esta era uma vilazinha. Nos bons tempos teve dois hoteis mas o dono de um deles preferiu a segurança que a Beira lhe oferecia. Também nada perdia, pois os turistas tinham desaparecido desta zona. O outro hotel funcionava apenas para hóspedes militares.
O Parque natural da Gorongosa estava semi-cerrado desde Fevereiro por razões de segurança. Os poucos visitantes que chegavam vinham de avião directamente para a pista do acampamento de  CHITENGO.
(...)
Sabia que este segundo dia seria feito em território da Frelimo.Era pelo menos esta a informação que tinha. Teria de circular apenas no itinerário indicado. O Parque da Gorongoza ficava só para a minha esquerda. Logo depois de sair de Inhaminga, na alvorada do dia 24 de Maio de 1974, apareceu-me uma bifurcação. Para a direita o caminho correcto, para a esquerda, a picada 442 de Inhaminga- Pangache- Moda- Mazambe- Cavalo, totalmente dentro do concelho da Gorongoza, Zona Operacional muito quente.
Aqui situava-se também a missão dos padres holandeses que tinham fugido de Moçambique a 26 de Abril e, oito dias depois, em 4 de Maio de 1974, acusavam a DGS e os militares da vila de term morto, entre Agosto de 1973 e Março de 1974 , quinhentos elementos da população SECHEUA na zona.
(...)
Percorrer a distância de Inhaminga a Inhamitanga foram as piores quatro horas da minha vida... 
O único restaurante em Inhamitanga chamava-se muito apropriadamente O Casebre, mas o dono vendia cerveja fresca e gasóleo, que era o que eu necessitava. Vindo do exterior, os olhos levaram tempo a adaptar-se à penumbra do estabelecimento. Depois da necessária adaptação ao local, pude finalmente confirmar que as vozes que me chegavam do seu interior eram de um grupo de soldados brancos, impecavelmente ataviados emque camuflados limpos. Comandos da CCMDS 2040! Fiquei muito contente quando soube que o comandante do grupo de combate ali aquartelado era o alferes Mendes que eu tinha conhecido em convalescença na Ilha de Moçambique durante a minha curta visita em Fevereiro de 1974.
O Mendes não tinha mudado. Ainda tinha oseu bigode fino, embora estivesse completamente careca mostrando efectivamente o resultado do tiro que o deixou marcado para sempre no  sítio onde lhe tinha acertado de raspão a bala do terrorista que pouco faltou para lhe tirar a tampa.
(...)
Antes de reiniciar a minha viagem, o alferes Mendes ofereceu-me um emblema da unidade.Era uma placa metálica redonda com o desenho de uma bruxa de túnica vermelha montada numa metralhadora! O Sargento Carvalhito prendeu-a no minha manga com um alfinete. Foi uma das últimas coisas que o sargento Carvalhito fez. Três hora mais tarde, ele e dois comandos foram mortos numa emboscada. Dirigiam-se para o rio Zambeze, duas hora depois de mim e no mesmo itinerário.




A estrada para Lacerdónia era, sem exagero, a mais perigosa de Moçambique. Carreguei a caçadeira antes de me despedir do alferes Mendes e do sargento Carvalhito. Só quando os deixei é que compreendi o  que significava viajar sozinhonestes percursos.
(...) 
Depois de várias peripécias, incluindo a destruição de um camião e a respectiva morte do seu motorista vítimas de uma mina colocada pela Frelimo e, quando vi um sinal muito mal pintado indicando ferry-batelão é que comecei a relaxar. Tinham-me dito que naquele mesmo lugar que eu iria atravessar tinha ocorrido o maior desastre da tropa portuguesa em África. No dia 21 de Junho de 1969 , 116 militares morreram no afundamento do batelão que fazia a travessia do rio Zambeze

(...) 
Com a ajuda do meu binóculo vislumbrei o batelão na outra margem.
Uma hora mais tarde continuava lá. Às cinco e meia, decidi fazer-me notado. Primeiro, três tiros de caçadeira para o ar; como não houve resposta, fui buscar a minha pistola very light. O foguete verde subiu aos céus fazendo um silvo e deixando um raio de luz, depois, explodiu em muitos raios verdes que por algum tempo iluminaram o céu.
Neste momento, apareceram dois marinheiros da Armada Portuguesa, saídos do meio da canavial onde se encontravam de atalaia e dirigiram-se ao meu encontro. O "patrão" do batelão estava a tentar pôr a flutuar a outra embarcação, que se tinha afundado na margem norte do rio. Não seria possível vir buscar-me até ao dia seguinte, disseram os marinheiros. Falaram via rádio com o barco de guerra e alguns minutos depois perguntaram-me se desejava passar a noite com eles no barco da Marinha que estava um pouco mais avante.
O barco, o Sabre, estava, ancorado a cerca de duzentos metros mais abaixo, para o lado da foz.
(...)
Quando fui apresentado ao comandante, este olhou-me com estranheza, estendeu-me a mão e disse entre dentes: O meu nome é Fernando. Prazer em conhecê-lo, Giancarlo.

                                                ***
Enquanto eu tentava dormir na cabine do Sabre, em Nampula, 
Luís Correia continuava a seguir sempre com muita atenção tudo aquilo que se passava. 
A 25 de Maio escrevia:
The shit hit the fan --  a merda bateu na ventoinha . O To the Point  publica uma entrevista com o general Costa Gomes efectuada na Beira no dia 13 de Maio.. Estive presente e apresentei-o.
Vamos para outro Congo? escreve Hans Germani, correspondente para a África Austral do diário alemão Die Welt.
Estive a traduzir para o general, depois do seu encontro com o "general" Hendrik Van Der Bergh do BOSS sul-africano e Ken Flower da CIO rodesiana.
Ao mesmo tempo em Nampula, o major Mário Tomé, o capitão Cuco Rosa e o capitão Aniceto Afonso preparam um gabinete só para o MFA junto do gabinete do comandante-chefe.
Costa Gomes, CEMGFA, envia uma nota oficial para todos os quarteis: Considero todos os militares como membros do MFA.
Grande jogada de Costa Gomes cuja nota acrescenta : todos os militares, desde hoje às 00h, são doravante integrados no MFA. Os que recusarem passam ...à reserva.
No mesmo dia, Costa Gomes pediu ao general Basto Machado para regressar com urgência a Lisboa. 
Np Hotel Portugal em Nampula , o senhor Rosner do Frankfurter Allgemeine Zeitung esteve horas à espera do general Orlando Barbosa, novo comandante-chefe das Forças Armadas de Moçambique, para o entrevistar.
Não foi fácil!


                                                  ***
25 de Maio
O batelão operacional  estava à minha espera quando cheguei ao lugar de embarque. Foi só carregar o carro e zarpar para a margem norte. Ia ficando mais e mais aliviado à medida que nos afastamos de Chupanga. Tinha atravessado uma das zonas de Moçambique onde a Frelimo estava mais activa. A área estava totalmente infectada e era um grande perigo viajar para norte da estrada Beira--Untali na direcção do rio Zambeze.
(...)
Pouco tempo depois de entrar na Zambézia começou a chover torrencialmente. Quase a chegar a Namacurra a caixa de velocidades do meu Land Rover decidiu abandonar-me. Um camionista rebocou-me até a uma oficina onde encontrei auxílio para o carro e alojamento. Da parte da tarde, o mecânico e hospedeiro contou-me algumas histórias muito interessantes sobre a situação na região.
Na Zambézia a Frelimo tinha sido expulsa em 1964/1965 pela própria população com a ajuda do Governador Álvaro Gouveia e Melo.



O Governador ad Zambézia Álvaro Gouveia e Melo

A Voz da Revolução, brochura mensal de propaganda da Frelimo, anunciou a abertura desta frente de combate em Janeiro de 1965. Na verdade, houve várias tentativas de aliciamento a sul de Namarrói, especialmente entre os trabalhadores das plantações de chá de Tacuane, Lugela e Madal.
Na madrugada do dia 29 de Mai
Deixando para trás Mocuba, Murrupula, Alto Logonha e Alto Molócué, cheguei a Nampula a meio da tarde. Embora tivesse deixado Nampula há um mês nada tinha mudado.
Estacionei junto ao Hotel Portugal e ouvi o proprietário, o senhor Marques, disparar a sua habitual salva.
                                                   ***
Acompanhado pelo Jorge Jesus, Luís veio ter comigo ao meu quarto por volta das 20h.
Ao Luís e ao Jorge disse que desta vez tinha chegado para ficar por meses. Custe o que custar, quero escrever um livro sobre a situação em Moçambique desde o mês de Abril  até  ... ao fim da presença portuguesa nesta parte do Império lusitano.
Disse-lhes que gostaria de passar a maior parte do tempo com os Comandos em Montepuez. Eu já tinha uma boa relação com o comandante do batalhão de Comandos, Capitão Artur da Fonseca Freitas e com o número dois Manuel da Glória Belchior.

(...)
--Tudo piorou desde há um mês quando tu saíste, Giancarlo. Lisboa já deu ordem para pararmos o mais rapidamente possível a guerra do nosso lado . O governo de Palma Carlos, nomeado pelo general Spínola há quinze dias, não é o poder real em Portugal. Este é de Costa Gomes e dos homens do MFA. Tudo o que o governo  deita cá para fora é soft talk para não criar pânico nos brancos a ponto destes largarem tudo ou reagirem com uma contra revolução.

(...)

Luís disse-me falado em particular com o general Costa Gomes, durante a sua última visita de trabalho a Moçambique entre 12 e 13 de Maio. Mas mais sério do que isso, Luís presenciou todos os movimentos de Almeida Santos durante a sua rápida estadia nesta costa do Índico.

(...)
--Tudo o que perguntavam ao novo ministro de Portugal com a pasta dos Assuntos Africanos, teve a mesma resposta: Não se preocupem ... AFrelimo vem e tem uma solução adequada para cada caso! Palavras textuais do ex- moçambicano Almeida Santos.
Estávamos no Comando-Chefe e eu não podia perder este acto histórico de falta total de tacto ou talvez de verdadeira traição dos seus compatriotas em Moçambique.
Tudo isto era realmente premeditado. Os generais compreenderam que estavam a mais. Um, Basto Machado, foi embora a 26 de Maio e o outro, Orlando Barbosa, teve que gramar o frete até ao fim.


Luís Correia, Almeida Santos, Basto Machado e, atrás de óculos, o
general Orlando Barbosa.
(...)
A Costa Gomes só interessava tentar acabar o mais rapidamente possível com os custos em vidas e fazendas. Um dos enviados para pré-negociar com a Frelimo, o ex-preso político e conhecido poeta moçambicano José Craveirinha, foi informado que Costa Gomes estava preparado para mandar desarmar os 21613 soldados moçambicanos a servir nas Forças Armadas Portuguesas. Este decisão tinha sido tomada antes da Frelimo aceitar o cessar-fogo.
Este seria, disse-me Luís, um 
gesto de boa vontade da parte de Lisboa que, como é evidente, Jorge Jardim nunca aceitaria. Jardim estava convencido que a sua cartada para negociar com a Frelimo eram precisamente estas forças, especialmente os GE e os GEP, que ele ajudara a desenvolver e que julgava ter na mão.

(...)
--Giancarlo, não era a tua amiga Carmo, filha de Jorge Jardim, um dos instrutores especiais de saltos dos GEPs? Vou continuar a contar-te tudo o  que se passou nas últimas três semanas.
Soube assim que Costa Gomes regressara a Lisboa e que a 15 de Maio, às 20h15, se encontrara no Palácio de Belém com Jorge Jardim que tentava regressar à Beira. O General conseguiu retê-lo as horas suficientes para que os seus mandatários em Dar.es-Salem se reunissem com os dirigentes da Frelimo.
Jorge Jardim estava retido em Lisboadesde o momento em que José Craveirinha e os dois ex-presos políticos chegara, via Malawi a Dar-es-Salam com a colaboração de Banda.
Jardim podia criar sérios problemas ao Governo revolucionário de Lisboa e particularmente a Costa Gomes. O General já tinha decidido que a Frelimo teria que tomar sozinha.
-- Mas os jornais aqui e na Metrópole continuam a escrever que Portugal nunca abandonará osseus filhos no Ultramar -- disse eu, olhando o relógio que indicava já as 02h40 de 30 de Maio.
-- Mentira Giancarlo, pura mentira! -- continuou Luís Correia.-- A entrega de Moçambique à Frelimo de Samora Machel foi decidida a nível superior.
                                                  ***
Estive instalado por mais dois dias no Hotel Portugal. Precisava descansar.
Pouco depois das seis da tarde, no bar perto do Hotel Portugal, reencontrei o capitão Comando António Borralho que, no Centro de Recrutamento de Boane, tinha terminado a escolha com o pessoal com o qual iria iniciar mais um curso de Comandos. O Capitão Borralho tinha comandado até Julho de 1972 a 28ª CCMDS - CIOE (centro de Instrução de Operações Especiais) de Lamego que chegara a Moçambique em Agosto de 1970 sob o comando do major Jaime Neves. Esta companhia tinha depois passado para o comando do Borralho quando Neves, em 1971, foi transferido para Montepuez assumindo o comando do Batalhão de Comandos de Moçambique. Jaime Neves seria substiuído em Dezembro de 1973 pelo meu grande amigo e capitão comando Artur Teófilo da Fonseca Freitas. Em Agosto de 197, era já ele2º Comandante do Batalhão, visitei pela primeira vez o seu quartel.
Borralho dissera-me então que o novo curso teria início dentro de poucos dias. Pensei no assunto, e com a informação adquirida ultimamente, seria uma boa desculpa para eu continuar a minha estadia em Moçambique.
Estávamos no fim de Maio. Dois dias mais tarde meti-me a caminho de Montepuez no meu fiel Land Rover para fazer uma reportagem sobre o último curso de Comandos feito em Moçambique

                                                     CAPÍTUlO 3

Luíz em Pretória
Primeiro Ministro Vorster
Montepuez e Macomia
Exército Português aperreado
Frelimo continua a atacar
Quase perco a vida numa emboscada 



Uma delegação Italiana, em Dar-es-Salam.Agosto de 1972, acompanhados por:
Samora Machel, Chissano, Guebuza, Sérgio Vieira e Marcelino dos Santos acompanhado pela sua esposa Pamela dos Santos que era de origem Sul-africana

Montepuez fica a cerca de 450 Kms de Nampula.
Quando entrei finalmente no quartel do Batalhão de Comandos anunciei que desejava ser recebido pelo seu comandante, capitão Freitas. Infelizmente estava ausente, informou-me o oficial de dia, o capitão, Luciano Garcia Lopes.
Este capitão tinha comandado a 5ª CCMDS de Moçambique, à qual pertencera o furriel Comando José Rui Owen Pinto, morto perto de Mocímboa da Praia, em 25 de Março de 1972,. Ao accionar uma armadilha, ficaram feridos também um outro furriel e um soldado comando. Não conhecia o capitão Garcia Lopes e este manifestou-me abertamente o seu desagrado pela presença de um jornalista estrangeiro no seu quartel. Luís tinha-me falado dele a pretexto dos incidentes junto à messe de oficiais na Beira em 17 de Janeiro de 1974.
Tinha havido uma série de manifestações na Beira a seguir ao funeral da esposa de um agricultor de Manica que fora violada e esquartejada por terroristas. Logo na manhã do ia 17, por volta das 07h30, começaram a concentrar-se centenas de pessoas à frente do edifício do Governo da Beira. Pelas 20h15, os manifestantes dirigiram-se para a nova messe dos oficiais Macúti no e às 21h30 começaram a atacar à pedrada  a messe, tendo o capitão Garcia Lopes sido atingido por um tijolo que lhe partiu um ombro.
O facto de o capitão Garcia Lopes ter sido atingido ficou a dever-se à circunstância de ali se encontrar, casualmente, junto da esposa, que era professora e que tinha e que tinha pedido a transferência para a Beira.
(...)
Montepuez era ainda a espinha dorsal das Forças Operacionais portuguesas em Moçambique e a base principal das tropas mais duras, a maioria das quais tinham sido formadas em Angola e Lamego..
Na manhã seguinte o capitão Garcia Lopes esclareceu: Somos o que somos e não vamos mudar ao sabor da política. Acrescentando para terminar: o 25 de Abril ainda não chegou aqui.
O Capitão Garcia Lopes a receber Montepuez o guião da 5ª CCMDS de Moçambique

(...)
Quando finalmente Artur Teófilo da Fonseca  Freitas desembarcou do avião, a 7 de Junho, quase não o reconheci. Vestia umas calças à boca de sino, casaco justo de veludo azul o cabelo mais comprido do que o recomendado pelos seus regulamentos. Por instantes pensei até que se tinha modificado, um erro de cálculo da minha parte que ele rectificou durante o jantar reservado que lhe foi oferecido naquela noite.
Mas, mais importante, trazia consigo a sua promoção a major Comando.
À mesa do jantar éramos seis. Jantavam também o Engº António Grangeia, que dirigia a empresa de algodão SAGAL, e sua esposa. Estávamos a um par de Kms do aquartelamento e todos nós vestíamos de camuflado, excepto, clar , o nosso anfitrião.
(...)
--Lisboa-- disse o major Freitas -- está um horror.-- Tinha planeado ficar mais tempo mas regressei mais cedo por causa da frustração que crescia dentro de mim. A população dá voltas pela cidade de Lisboa com cartazes pró-Frelimo e MPLA... Andam felizes de cartaz em punho, embora os nossos soldados ainda estejam aqui a morrer. Já se barafusta contra um referendo em Moçambique. Parece que os políticos querem entregar isto à Frelimo sem perguntarem a ninguém. Não acredito que seja isso que vá acontecer ... O Spínola tem o controle.
--E  Agora--perguntei eu que, na verdade, devia ser o último a abrir a boca - porque é que tu ainda aqui estás... O que vais fazer?
--Não tenho que te responder amigo. Mesmo estando tu fardado e com o emblema da Unidade. Mas como tu és meu convidado e estamos entre amigos, vou descrever um pouco da situação. Quando recebi a carta de promoção com o "convite" de regressar o mais cedo possível a Moçambique, colocavam-se de imediato duas questões.
--Que sentido tem, depois do 25 de Abril, prosseguir com a formação da 2ª/74, outra companhia de Comandos? O curso vai a meio -- perguntei eu.
--Todo o sentido, contrariamente ao que o QG considera! Tenho a clara percepção -- continuou o comandante do Batalhão - de que qualquer quebra de coesão, naquela que é a principal força de intervenção do Comando-Chefe, afectará, por efeito dominó, todas as unidades metropolitanas já, muito minadas. A tropa normal da guarnição local só está à espera do mínimo sinal para se pôr ao largo antes que seja tarde de mais.
--Mais-- Continuou Freitas --, como tenho que "decifrar" a ordem do QG de efectuarmos exclusivamente "reconhecimentos defensivos", embora os meus homens continuem a morrer no Norte e agora também na Zambézia, tive de contactar o QG... Mas ainda ão tenho respostas para estas dúvidas!

                                                                  ***
Inicialmente, os militares como o major Freitas não queriam acreditar na hipótese do general Spínola ser desautorizado pelo MFA com ligações ao Partido Comunista Português. Mas, em finais de Maio, quando os Chefes do Estado-Maior dos três ramos da  Forças Armadas transmitiram ordens pouco apropriadas para o momento que se vivia na metrópole e nas províncias ultramarinas, tiveram que aceitar que se tinham enganado redondamente

                                                               ***

Quando as novas ordens chegaram a Montepuez, praticamente dizendo actuar mais devagar, amar a Frelimo, o major Freitas ficou horrorizado,Tinha gasto meses e meses treinando os seus homens para combater os terroristas. Tinha mentalizado cuidadosamente estes jovens soldados ao ponto de detestarem o adversário, o inimigo, a Frelimo. E mais: Artur Freitas tinha compartilhado com os seus Comandos o sofrimento mental, a dor e o pesar quando o inimigo matou homens das unidades sob o seu comando.
motto dos Comandos é: Pelo sangue de um Comando o inimigo pagará o preço mais alto.

(...)
--Major Freitas-- perguntei -- o que irá fazer se lhe ordenarem que estabeleça diálogo com a Frelimo e que convide os combatentes a entrar no  quartel dos Comandos.
-- Ficaria numa situação insustentável -- respondeu. -- Se eu desse ordem aos sentinelas da porta de armas para deixar entrar os guerrilheiros no quartel, seria confrontado com a revolta do pessoal aqui acantonado.
Fitei-o e ele continuou.
-- Até este momento, a única reacção possível do pessoal de guarda é atirar a matar a todos os que se aproximarem dele armados... Você sabe muito bem o que a palavra terrorista significa para estes rapazes.
--Sim, sei. Mas não pensa que devido ao tipo de propaganda que se ouve continuamente nos últimos dias, você terá que obedecer ao que lhe foi transmitido?
--Eventualmente poderá ser como diz. Mas nesta altura eu já não estarei cá. Terei solicitado que dêem por terminado a minha comissão como comandante desta unidade. Não quero ter o meu nome envolvido num episódio tão degradante para a história de uma unidade como esta. Devo respeito ao uniforme que envergo, a mim mesmo, e ao símbolo maior da Pátria , a Bandeira Nacional - continuou o major agora mais abertamente.
--O meu posto, a minha honra, acompanham-me no regresso a casa. Não aceito que os meus filhos perguntem: Pai é verdade que chegaste a acordo com os terroristas? Não quero imaginar.
(...)
Meses depois tomei conhecimento do que sucedeu aos Comandos moçambicanos. A maioria, pretos e brancos, fugiu para o Malawi e para a Rodésia antes de Samora Machel tomar o poder. Os restantes que em boa fé pensaram em fazer parte das novas forças armadas nacionais, foram presos e enviados para trabalhos forçados nos campos de reeducação onde, eventualmente, desapareceram para sempre.

(..)
8 de Junho de 1974
00h00

Arranca em Moçambique a anunciada Operação Zebra para a captura dos funcionários da DGS/PIDEque não foram avisados para se porem ao fresco. Seriam todos muito maus?, perguntaram-me...
Em Nigel, zona industrial a sul de Joanesburgo, o primeiro-ministro John Voster declarou hoje: Deixar cair as nações do sudoeste africano e Namíbia. Isto faz parte do acordo com Kenneth Kaunda e está nos planos de um dia largar a Rodésia.

Nampula
12 de Juno de 1974

Mais uma leva de jornalistas. Já cá está o Peter McIntosh, que continuava a deslocar-se por todo o lado. Pediu-me para arranjar transporte para ir a Macomia. Sugeri-lhe ir num avião fretado pelo Denis Gordon do África Bureau do Rand Daily Mail  que ia a Porto Amélia.
O Peter foi logo para o aeroporto e arranjou boleia com o alferes Diniz e Dennis Gordon. McIntosh queria tirar fotografias com os Justiceiros do capitão João Ventosa, da 2043ª CCMDS.

Luís Correia e Alferes Dinis, no Gabinete de Imprensa e Informação do
Comando-Chefe das Forças Armadas em Nampula
Os principais quartéis portugueses na área eram Macomia e, mais a norte Mueda, e meu objectivo final. para lá chegar, teria de utilizar uma das colunas de reabastecimento que utilizavam este itinerário  várias vezes por ano, demorando quinze a vinte dias para percorrer duzentos quilómetros. Teria que arriscar atravessar o coração do território controlado pela Frelimo, zona na qual as colunas eram sistematicamente atacadas, chegando esses ataques repetirem-se sete vezes no mesmo dia.
Contactámos via rádio, o meu amigo major Mário Tomé para obter autorização do MFA para a minha deslocação para zonas mais quentes.
Idealista Mário Tomé era, desde a sua promoção, o mais conhecido e activo membro do movimento revolucionário. Tinha sido enviado para Moçambique em 1972 para servir no  QG em Nampula como oficial às ordens do general Kaúlza de Arriaga. Finda a comissão deste general em Julho de 1973, e faltando a Mário Tomé um ano para regressar a Lisboa, ficou na situação de chefe da Secretaria de apoio ao novo comandante-chefe, general Basto Machado.
Tudo o que eram assuntos de administração corrente passivavam-lhe pelas mãos. Assim, coordenou, organizo e muitas vezes decidiu assuntos que eram da competência de orgãos superiores.
Depois do golpe de Abril, o major Tomé foi rapidamente atirado para os "cornos do touro" e soube aguentar o impacto inicial. Em finais de Maio de 1974, nada se fazia sem o visto prévio de Mário Tomé.
O meu amigo não me deu autorização para seguir na coluna para Mueda mas autorizou-me a visitar Macomia. Compreendi perfeitamente a sua decisão de evitar qualquer encontro menos agradável que eu poderia ter mais para norte de Cabo Delgado.
Uma refrescada companhia de Comandos ia supostamente sair de Porto Amélia para Macomia, passando pelo cruzamento de Ancuabe, a cerca de 120 quilómetros de Montepuez. Desejando fazer a viagem para norte, juntei-meà tal CCMDS no local onde me foi indicado.
A estrada alcatroada de Montepuez era perfeitamente segura até ao ponto que me integraria na coluna de Ancuabe. Sentindo-me à vontade, aceitei esta oferta do major Mário Tomé.
Eram cinco horas da manhã quando nos preparámos para largar em duas Berliets  com o pessoal do 1ºGupo de Combate da CCMS 2043 comandado pelo então alferes Costa.
(...)
Deixámos lentamente Montepuez, passando vagarosamente junto ao aeroporto.Pouco depois entrámos na estrada que nos levaria ao ponto de encontro com a companhia vinda de Porto Amélia.
Por superstição minha, sentei-me na primeira Berliet, no banco entre o condutor e o alferes Costa. Eles estava ali para me defender mas nada me podia proteger do intenso frio que sentia.
Sem incidentes chegámos a Ancuabe. Descansámos trinta minutos na cantina situada no cruzamento, bebendo uns café com aguardente e aguardando pelo grupo que estava a chegar de Porto Amélia. O dono do estabelecimento tinha levado um valente abanão quando homens da Frelimo o confrontaram dois dias antes.
Anteriormente o local fora sempre considerado como fora da zona de guerra e seguro pela constante passagem de tropas e civis na sua cantina.
(...)
Estávamos ainda a acabar os nossos cafés quando a companhia de Comandos supostamente refrescada chegou de Porto Amélia. Tinham terminado mais um período de descanso pré-operacional, mas os soldados davam a impressão de estarem exaustos. O Alferes Costa segredou-me ao ouvido: Não há guerra em Porto Amélia, mas é um descanso muito cansativo para estes tipos ...Guerra nos bordéis.
Um pequeno destacamento do BCAÇ 8422 vinha de Macomia para reforçar a coluna com dois blindados AML Panhard armados com morteiros de 60 m/m e metralhadoras 7,62 NATO.
Isto representava um esquema tipicamente português.Comandos vinham de Porto Amélia em rota para Macomia. O nosso grupo juntava-se a eles para fazer a viagem, a Cavalaria vinha até ao cruzamento de Encabue sem qualquer apoio extra, integrava-e na coluna para regressar ao seu quartel, agora apoiada pelos Comandos que vinham do repouso operacional.
Os "Cavaleiros" não necessitavam de escolta para os seus dois carros. Seria sinal que  não havia perigo ou de que os "donos" desta guerra julgavam que cinco grupos de combare de Comandos não se 
saberiam defender da Frelimo.

"Os que por obras se vão da lei da morte libertando"
As minas eram plantadas e tinham que ser detectadas para
 serem neutralizadas
(...)
A nossa coluna era constituída por dois autocarros de civis, seis camiões a carga com mantimentos, cinco Unimog, dois blindados ligeiros da Cavalaria e sete Berliet com o pessoal dos Comandos. A Berliet semiblindada, com o Hilário a bordo, seguia na frente da coluna a cerca de 200 metros da segunda viatura. E, como sempre, eu ia sentado nesta entre o condutor e o alferes Costa.
Percorremos cerca de 36 Kms numa hora. Repentinamente o rebenta minas que ia na frente da coluna parou. Muito lentamente  aproximámos-nos até cerca de 100 metros daquele.
--Estamos a entrar em zona vermelha -- disse o alferes Costa. --Daqui para a frente podemos cair numa emboscada ou rebentar uma mina.
Os Comandos que iam na nossa Berliet entraram em alerta máximo e o Oliveira verificou o tambor da sua HK21, uma metralhadora ligeira de calibre 5.56, ficando pronto a abrir fogo de rajada. Os outros militares já tinham retirado as cavilhas de segurança dos diagramas acoplados às espingardas G3.
Sentado ao meu lado, logo que voltámos atrás da Berliet que levava oHrácio, reparei que o alferes Costa mordia nervosamente o lábio inferior ao mesmo tempo que, com o polegar na patilha de segurança da sua G3, movimentava-a para as posições de fogo-segurança-fogosem notar que o fazia em cadência.
O alferes Costa, olhou para mim pelo canto do olho e disse:
-- Estou um pouco apreensivo. Já aqui passei muitas vezes, mas não tem havido patrulhamentos nesta zona desde Abril... Se tivessem feito deslocações com frequência daqui a Macomia, hoje não havia perigo.
Enquanto isso eu cruzava os dedos contra o mau olhado.
O inimigo pode estar em qualquer sítio agora -- continuou o Costa .
Claro que escutei atentamente as palavras do experiente alferes. Com 24 anos de idade já tinha uma grande experiência operacional com mais de 15 meses na  linha de fogo. Altamente motivado depois de terminar o curso em Luanda, o alferes Manuel Pedro Mendes de Folhadela e Costa disse-me que estava destinado a ir para a Polícia Militar graças à poderosa influência de amigos de seu Pai. Foi a meio da recruta, já em Santarém, que arrastado pelo desejo de aventura e sentimento patriótico se ofereceu como voluntário para os Comandos, o que o levaria primeiro para Luanda e depois a Moçambique, como comandante do 1º Grupo de Combate da 2043ª. Nesse momento via-se em Moçambique, sentado numa Berliet ao lado de um jornalista, com os nervos em franja e uma arma na mão pronto a fazer fogo contra o inimigo invisível. Foi uma viagem tensa e demasiado longa.
Chegámos a Macomia sãos e salvos depois de um leão se ter atravessado à nossa frente numa magnífica exibição de total indiferência  pelos homens e as suas guerras!

(...)
O capitão João de Mendonça Ventosa, comandante da CCMDS 2043 e conhecido nas comunicações entre Montepuez (BRAVO-ALFA-Quatro) e as companhias de Comandos pelo nome de código de MARROQINO, tinha em 1974 uma das melhores CCMDS.
Formada em Lamego e CICA de Luanda, deixou Angola a 21 de Maio de 1972 com destino a Montepuez. Imediatamente iniciou operações em Tete, Estima, Mungari,Macomia e Mueda com passagem sempre pelo Batalhão.
Os "Justiceiros" tinham como distintivo a balança da Justiça equilibrada no gumede uma espada antiga. O seu significado foi-me explicado pelo alferes Costa:
--A justiça a distribuir sempre que desequilibrem os seus pratos!
...)
O capitão Ventosa deu-me um beliche na sua tenda pessoal e a seguir apresentou-me a todos os oficiais e sargentos: o Grande Vasco; o Bandoleiro  Ferreira; o Coutinho (especialista em armadilhas) os alferes Agostinho e Guilherme Pavão, o Martins (campeão de Judo) e o ex.seminarista Pinha, o melhor enfermeiro do mundo.
A estes JUSTICEIROS devo mais que uma vez a minha vida!
No segundo dia logo pela manhã o Marroquino disse-me que iam chegar nesse dia , em avião fretado, dois conhecidos jornalistas sul-africanos, credenciados por ordem superior de Nampula e enviados pelo Luís Correia. Com autorização do novo comandante-chefe general Orlando Barbosa, estavam a tentar cobrir a actual situação nas zonas de combate. Ficavam em Macomia e seguiam depois de avião para Mueda.
Estávamos no meio da segunda semana de Junho e a Frelimo parecia não estar nada interessada em modificar o seu objectivo de Vitória Total.
Embora os Comandos já não estivessem autorizados a sair para localizar os Frelos, o capitão Ventosa resolveu satisfazer a necessidade dos jornalistas e organizou para o dia seguinte uma coluna de reabastecimento na estrada Macomia-Xai.


Capitão João de Mendonça Ventosa com os seus oficiais da 2043 CCMDS
(...)
Eram oito da manhã quando deixámos Macomia em três Unimogs com os Comandos armados até aos dentes e em estado de alerta vermelho logo após a saída da cintura de segurança. Visitantes ou não, o capitão Ventosa não deixava nada ao acaso. Ele sabia que a Frelimo andava ali perto. O silêncio entre nós era total. A situação era tensa e real. Também nos safaris o cliente pode ter a sorte de apanhar o lado certo para matar a presa.Só que, como o velho Peter disse, aqui, o rei da selva é a Frelimo e nós não queremos ser a presa.
A picada estendia-se deserta à nossa frente, excepto quando um elemento da população local, meio nu, caminhava pela berma na mesma direcção em que seguíamos, carregando um arco e flechas e uma garrafa de água pendurada a tiracolo. Depois de o ultrapassarmos, andámos mais uns dois quilómetros e parámos. Os comandos saltaram das viaturas ainda movimento de forma a assegurar o perímetro.
A tensão nos rostos era grande e só terminou quando voltámos a embarcar nos Unimog para o regresso. Cruzámo-nos com o caminheiro com o caminheiro solitário, desta vez estava em animada cavaqueira com um grupo de macondes, perto do nosso destino. Um dos Comandos achou o caçador de arco e flecha estranho e pediu para parar o Unimog.
Dois soldados saltaram da viatura e dirigiam-se calmamente na direcção do pequeno grupo. Trocaram algumas  palavras que não entendemos, agarraram subitamente a estranha criatura, dominando-a. Então, já no solo, este gritou bem alto: Fui forçado, não me matem, não me matem, enquanto nós, jornalistas, fotografávamos a insólita cena. Os militares tinham descoberto quatro detonadores eléctricos, usados nas minas anti-carro reforçadas, muito bem escondidos num embrulho com folhas de tabaco que o homem agora transportava. Furioso com a descoberta, um dos soldados pegou na arma apontando-a ao homem gritando a comédia acabou. O capitão Ventosa, que já lá estava, deitou a mão ao soldado e o prisioneiro foi posto no Unimoge levado para o quartel.
Quem é você? ... Nome completo! Donde veio? Quem lhe entregou este material? As perguntas choviam e as bofetadas também quando, no quartel, se iniciou o interrogatório.
(...)
Meia hora mais tarde tivemos notícia que o caççador solitário encontrado na picada Macomia-Chai, vinha de uma base da Frelimo mais a norte. Depois de ter marchado três dias, tinha instruções de ir para sul de Macomia e  fazer contacto em determinado local da estrada com outros elementos que resgatariam a encomenda que ele transportava. Terminada a sua missão, poderia continuar a sua vidinha. Quando foi preso disse estar a tentar obter informações de elementos locais para continuar a cumprir a missão que fora pré-determinada pelos frelos. Não havia nada fora do comum nesta sua explicação mmas alguns dos factos eram muito vagos.
Os Comandos não estavam autorizados a prosseguir o interrogatório sem autorização dos seus superiores. O prisioneiro foi então transferido para a cavalaria, onde ficou detido. Seria solto na manhã seguinte com um pedido de desculpas!
Foi a primeira vez que os Comandos compreenderam até onde iria o MFA (que efectivamente já controlava a máquina militar) para seduzir a Frelimo. Tudo isto se passava no fim de Maio. Agora, duas semanas mais tarde, as coisas estavam a ficar mais surpreendentes.
Em dois meses os elementos da 5ª Repartição do Quartel General em Nampula tinham conseguido desmobilizar moralmente várias unidades metropolitanas. Já circulavam folhetos com fotografias de soldados portugueses e da Frelimo confraternizando. A política oficial dos novos chefes era provocar o rápido desmoronamento da máquina de guerra anti-Frelimo. Muitosdos militares estavam visivelmente chocados com as instruções que iam recebendo de Nampula, mas sentiam que o tempo estava contra os mais conscientes. A situação ficaria, mais dia menos dia, irreversivelmente a favor dos esquerdistas. Estavam desolados e não podiam fazer de conta que a guerra tinha acabado. Pelo menos do lado da Frelimo, não!
Foi neste momento que, no destacamento dos Comandos em Macomia foi recebida uma mensagem-rádio de Montepuez enviada pelo major Freitas. Dizia: Coluna auto desloca-se brevemente via Macomia para Mueda. Jornalistas estão superiormente autorizados a integrar-se nesta. Não havia outros representantes da informação internacional em Cabo Delgado.
Quando a coluna de Mueda chegou já era tarde avançada. Na madrugada do dia seguinte, sexta-feira dia 14, saímos de Macomia nesta coluna. Todas as movimentações se iniciavam antes do sol nascer, Esta não foi excepção...Quando me despedi do capitão Ventosa, este colocou-me no braço esquerdo o emblema dos Justiceiros. Fiquei sensibilizado com o gesto mas não havia tempo para sentimentalismos
Encaminhei-me para o unimog onde devia viajar. Como sempre, tinha reservado um acento no primeiro carro disponível, logo atrás da Berliet rebenta-minas e do blindado do BCAV. 8422. O nosso veículo era o terceiro da coluna mas o primeiro sem blindagem. Quando me sentei no banco atrás do condutor, pensei: Três horas , hum! Não deveser muito mais até Ancuabe. u
Resolvi pensar positivo: Se Deus quiser não há bronca. E com este pensamento, a coluna iniciou a marcha.

Eram 10h20 quando uma violenta explosão preencheu o espaço à minha frente
Mais tarde, em andamento, reparei no dia maravilhoso que estava: uma bonita manhã de sol sem muito calor. Sem ter muito que fazer, olhei várias vezes para o meu relógio Omega. Eram 10h20 quando uma violenta explosão preencheu o espaço à minha frente de um vermelho incandescente. Horas-tempo deixaram de existir pelo menos para mim.

                   CAPÍTULO 4

Evacuação para Mueda - 
Hospital Militar em Nampula - 
Outra vez em Nampula e Montepuez 
     
Eh! Acorda Giancarlo, não é altura para morrer ... Acorda!

---Eh! Acorda! Giancarlo, nãao é altura para morrer...Acorfa! Como é que te sentes? Fala, fala, carago!
Ouvia aquela voz muito ao longe mas não me apetecia acordar. Estava muito bem assim. A escuridão era reconfortante depois daquela luz tão brilhante... Estava cheio de frio.
Acorda, Giancarlo! Acorda! diz-nos como te sentes! Fala!
Agora  estava zangado! Aquele imbecil queria que eu acordasse logo quando estava no paraíso e sem preocupações. Sentia-me muito, muito melhor assim, relaxado numa infinita paz. 
Que maravilha disse a mim mesmo! So destoava aquela maldita voz que me continuava a mandar acordar, que dia que não era altura para morrer. Mas afinal, de quem era aquela voz? Que queria de mim? Para quem é que não era tempo para morrer? senti vontade de chorar ou gritar, dizer-lhe que me deixasse em paz. Mas não conseguia falar de tão cansado que estava.
--Giancarlo, repetia a voz. -- Giancarlo, acorda!
Estava a sonhar ou estava a voar? Sim, estava a voar! Tinha asas, um enorme par de asas, e estava a voar! Mas estava tão escuro que não conseguia  ver para onde voava. Que pena... Tão escuro!
Bem, Giancarlo... Queres ou não acordar? -- dizia com insistência a voz que acabou de me acordar, finalmente vencendo. Que chatice!
(...)
De repente reconheci a tal voz. Era o sargento Pina, o seminarista enfermeiro da 2043ª.
-- O que estou a fazer aqui Pina? -- perguntei
-- Não te mexas Giancarlo. Deixa-te estar deitado, e quieto. -- disse, levantando-se para enxotar as moscas que faziam um festim por cima das ligaduras ensopadas de sangue que me cobriam a mão.
--Mas o que é que aconteceu? -- perguntei outra vez.
--Fomos apanhados numa emboscada -- disse o Pina -- Não te lembras? Foste ferido pela explosão de um disparo de um projéctil do RPG 7 ... Tens uma ferida na cabeça -- continuou --, mas não sabemos qual é a gravidade...Não tenhas medo ... fica calmo. O helicóptero estará aqui em breve para te levar para o hospital de Mueda.

Depois da emboscada, a segurança e resposta da 2043ª CCMDS

-- Dói-me muito a cabeça Pina...Qual  o meu problema?
-- Tens uma ferida no sobrolho direito ...
-- Que tipo de ferida? 
-- Que bala, Pina?
-- Talvez um estilhaço... ou uma bala de raspão. Não tenho a certeza ... 
-- Que bala, Pina?
-- Bala de turra! Eram mais de trinta, Giancarlo. Mantiveram-nos dez minutos de cabeça em baixo e depois, como sempre, deram à sola!
-- Cerca de trinta?
-- Sim, cerca de trinta. Agora fica quieto e calado. Tens vontade de vomitar?
Não estou gelado. Estou com muito frio.
-- Impossível, está muito calor aqui, calor até demais.
-- Dá ordem para as moscas saírem daqui, Pina
-- Sim, vou mandá-las todas embora.
-- Pina estou com frio...
-- OK, vou buscar um cobertor

(...)
Quando o Pina se afastou de mim, ainda ouvi o comentário para os outros: Está lixado! Acabado!.
Não fiquei nada animado, mas continuava firme e convencido que ainda não era o meu dia! Tinha a mente a funcionar bem e mexia as pernas e os braços. Todas as reacções eram normais. Mesmo tendo estado muito tempo desmaiado depois da bazucada. o importante era estar vivo.


                                                                               ***
Alguns dias depois, no Hospital Militar de Nampula, foi possível ouvir a gravação de uma parte da emboscada e da conversa que se seguiu entre o local do ataque, o Comando do Batalhão de Montepuez e o Grupo de Combate da 2043ª que ficou naquele dia em Macomia.
Enquanto estava aa sangrar no meio da estrada, Peter MCintosh continuou a tirar fotografias. Quando se aproximou viu que eu tinha o gravador a tiracolo. Profissional como era, premiu o botão para que a máquina começasse a gravar. Aqui vão algumas passagens:



Tiros esporádicos de espingarda e da metralhadora HK 21.
Segue-se a voz do soldado Oliveira:
Caralho pá ... esta merda encravou ...
Depois, novamente, rajadas contínuas da HK 21 do Oliveira.
Voz do alferes Guilherme Bernardo que chama o sargento Vasco
Vasco! 
Oh, Vasco! tu estás a pôr as morteiradas para ali? Traz aqui o rádio ...
Ainda a voz do alferes Bernardo:
Oh Bravo - Alfa - Quatro, 
Oh Bravo - Alfa - Quatro, aqui é o Pavão...
Voz do rádio em Montepuez
Aqui  Bravo - Alfa - Quatro . Oh Bravo - Alfa - Quatro... informa
Alferes Bernardo:
Oh Bravo - Alfa - Quatro ... Oh Bravo - Alfa - Quatro. Tivemos um Eco Mike, Bravo ... uma emboscada a 25 quilómetros ... Mike destino ... Diga-me se correcto.
Montepuez (voz do major Artur Freitas)
Pavão, ó Pavão  ... qual a situação ... informa

Oh Bravo-Alfa-Quatro. Tivemos um Eco Mike, Bravo
Alferes Bernardo:
Olha, tivemos uma emboscada e temos três homens bastante feridos. Necessitamos com urgência ... Eco Victor, evacuação.
Montepuez:

Quem são os feridos? 
Alferes Bernardo:
Oh Bravo-Alfa-Quatro ... é um homem meu, outro do BCAÇ e um jornalista que está bastante ferido ... diga-me se correcto,


Um dos feridos
Montepuez e capitão Ventosa  (em Macomia à escuta da transmissão):
Quem é o jornalista?
Alferes Bernardo:
O italiano ... Giancarlo ... Mal ... Está foxtror!


   ***
Deitado na estrada tive de esperar uma hora até ser evacuado para Mueda de helicóptero
(...)
Com o Pina sempre a meu lado, levantaram-me cuidadosamente para maca do heli.
(...)
Não voámos directamente para Mueda . Naquele dia não fui o única vítima da FRELIMO. Uma mulher que conduzia perto de Sagal, na área de Mueda, passou com o carro por cima de uma mina. Baixámos imediatamente e aterrámos na estrada. Não tive conhecimento da gravidade das suas feridas até a acomodarem ao meu lado. Horrorizados, olhei para o seu corpo ensaguentado e vi que tinha perdido as duas pernas ao nível das ancas.
Minutos depois, quando aterrámos em Mueda, o gemido que saía dos seu lábios desapareceu e com ele o seu sofrimento. Tinha morrido.
O solestava bem alto quando me transferiram para a ambulância.
Levaram-me primeiro para o seu serviço de radiologia e de seguida para o bloco operatório. O cirurgião militar, de origem goesa, deu-me uma anestesia local na zona do olho direito. Nada senti. Deixei de ter dores, embora agora estivesse perfeitamente consciente. O cirurgião foi muito franco comigo.
--Meu amigo -- disse ele --, temos aqui um ferimento no sobrolho de razoável dimensão mas, por sorte, pouco profundo. Ao lado há outro, menor mas mais profundo e posso confirmar que tocou o crânio. A radiografia confirma que um pequeníssimo fragmento de osso se desprendeu do crânio e foi projectado para o exterior com o impacto do estilhaço que entrou pelo orifício menor. Você deve ter sido atingido por resquícios de uma granada de morteiro ou de um projéctil de bazuca, estarei correcto? perguntou o Drº Remédio.
Respondi-lhe que devia estar correcto e que a informação que me deram no local da emboscada foi que a bazucada não tinha atingido o seu objectivo. Depois de explodir na roda posterior direita do Unimog,projectou estilhaços em todas as direcções sem causar outros danos visíveis à primeira vista!
-- Sim, concordo com essa versão. Teve muita sorte, podia estar muito pior - disse o médico enquanto ia desinfectando as feridas -- O estilhaço entrou e saiu devido ao ângulo e não ficou alojado no crânio. Não  se vê nada na radiografia. Mesmo assim, amigo, você inspira certos cuidados e vai ser transferido para o nosso Hospital em Nampula para observação. Depois, se se justificar, irá para Lourenço Marques
Enquanto me ia dando estas informações, fui suturando os buracos. 
O trabalho ficou tão bem feito que, só ao tacto, se nota uma depressão no local em que o osso do crânio ficou ligeiramente danificado. Serve para me recordar que estive às portas da morte,
Colocado na enfermaria, estava já a dormir quando o enfermeiro acendeu as luzes e disse  para que o avião que me transportaria para Nampula estava quase a aterrar. 

                                                                      ***

Em Nampula, Luís Correia foi imediatamente informado do incidente em Macomia.

Foi por volta das 12h15 que a mensagem chegou a dizer que o jornalista Giacarlo tinha sido gravemente ferido em Macomia. Porra! Entrámos em pânico.
Não podemos deixar morrer o Giancarlo, disse o Luís que logo decidiu contactar Bill Fortuin, um amigo de Salisbury.
Não era necessário Jorge Cruz tinha outro plano de emergência...

Às 14h00, fui chamado ao gabinete do sr. Mendes, no aeroporto de Nampula. Tinha notícias da parte do Jorge Jesus que tinha entrado em contacto-rádio  com o comandante Craveiro, um colega de Porto Amélia.
A notícia era a de que Giancarlo tinha sido evacuado de helicóptero do local da emboscada para o hospital de Mueda.
Às 14h15 chegou a mensagem que o Giancarlo vai ser transferido de Mueda para Nampula.
Jorge ficou agradecido ao comandante Craveiro que mantinha contacto com ele via torre de controlo de Nampula. Regressei ao primeiro andar do aeroporto e sentei-me numa cadeira do novo restaurante. 
Jorge Cruz Galego, piloto Comando

                                                                               ***
Sentia-me debilitados, com fome e cheio de frio. Alguém me tapou com uma manta e me deu uma lata de pêssego em calda para comer. Não conseguia mastigar nem engolir. Pela primeira vez entrei em pânico e chorei como uma criança. Dois militares levaram-me de maca para o avião e colocaram-me no local que que lhes foi indicado pelo piloto. Ouvi chamar o meu nome: era o comandante Craveiro que me conhecia de Porto Amélia.
-- Giancarlo -- disse-me, conta-me como te meteste numa alhada destas? Tu realmente não tens juízo, meu cara de "carvalho". Explica-te!
(...). 
Aterrámos muito suavemente e, enquanto rolávamos para a zona de desembarque, verifiquei que estavam várias viaturas e bastante pessoal no local e que o sinaleiro orientava o estacionamento do avião para perto de um potente holofote. Era o comité de recepção ao mártir.
Senti-me incomodado, embaraçado talvez.

                                                               ***
(...)
O Capitão -médico Bastos, que eu conhecia de Nampula, foi o primeiro a ver-me.
-- Giancarlo, o que te aconteceu? -- perguntou ele.
-- Doutor , desta vez ligaram-me bem e à maneira. Gosta do aspecto das minhas ligaduras?
-- que foi isto, Giancarlo?
-- Uma emboscada. Não tenho bem a noção onde foi mas mais tarde os outros confirmarão. Mas já que o doutor aqui está, gostava que fosse para me oferecer um copo de whisky... Daquela garrafa só para "doentes" especiais. Está correcto e afirmativo?
(...)
Pouco depois, mudaram-me para um quarto individual reservado aos oficiais.
Ainda estava a gozar o meu triunfante copo de whisky quando entraram Luís Correia e Jorge Cruz, um outro amigo. Por experiência próprio sabia que o Luís nunca tinha tido dificuldade em visitar áreas reservadas.
-- Graças a Deus que estás bem - disse ele.-- Informaram-nos que tinhas levado dois balázios na cabeça. Pensávamos que o teu corpo vinha no avião, já enfiado no saco funerário... Fantástico voltar a ver-te, Giancarlo! 
Teríamos continuado a nossa troca de impressões, mas o capitão-médico Bastos, utilizando a sua melhor máscara profissional,, voltou ao quarto como um furacão. Primeiro, pôs respeitosamente na rua o Jorge e o Luís. Depois, sentou-se na minha cama e de cara fechada mas em tom paternal tentou dar-me uma lição de moral.
-- Vais ficar aqui três dias em observação -- disse ele --, bebendo só sumo de laranja e tomando antibióticos.  Se não houver complicações, serás transferdo para Lourenço Marques
-- Porquê Lourenço Marques, capitão?
--Porque ele têm equipamento mais moderno para tratar de problemas de visão.
-- Mas ... não se passa nada com a minha vista...
-- Eu sei... É apenas porque eles têm pessoal melhor treinado e equipamento  para poder verificar que nada de mal virá a acontecer. E também estarás mais confortável.
-- Diz-me a verdade, Bastos. Há complicações ou não?
-- Não!
-- Então, muito obrigado, capitão.
-- Dorme bem, jornalista dum raio
(...)
Eram seis da manhã quando acordei. Os meus amigos já lá não estavam .
Um companheiro de enfermaria veio visitar-me. Antes de entrar no quarto, perfilou-se e bateu uma pala. Um comando de muletas.
-- Sou o comando Pedro Tavares -- disse ele. --Desculpe incomodá-lo mas quando ouvi dizer que estava aqui, tive a certeza de que ficaria satisfeito com a minha visita. O hospital sem visitas é uma pasmaceira.
Perguntou-me como tinha sido ferido e por sua vez contou-me que levara um tiro no tornozelo mas que brevemente voltaria à vida civil. Deitado não conseguia ver-lhe os pés, mas disse-lhe que ficava muito satisfeito por me ter dito que brevemente estaria melhor para regressar a casa. Ah, sim, disse-lhe, será muito bom regressar a casa. Depois, daqui a três meses , já devo ter sido equipado com umpé artificial e ficarei realmente bem melhor. Não me tinha ocorrido que o seu pé podia ter sido amputado. Por um momento fiquei sem palavras e envergonhado. Então, esquecido das dores na minha própria maxila, perguntei-lhe como tinha acontecido.
(...)
Era já final da tarde quando o major Mário Tomé me veio visitar ao hospital. Mesmo considerando a sua total dedicação à causa do MFA  desde o primeiro dia, eu gostava muito dele. Quando entrou pela porta do quarto adentro, e apesar da dor de cabeça,preparei-me para mais um acalorado debate..
-- Olá Giancarlo -- disse ele -- Como te sentes? Como é possível que acabes sempre por nos causar problemas?
-- Estou muito melhor, meu caro Mário -- respondi-lhe, -- Mas peço desculpa: os problemas são causados pelas vossas próprias Forças Armadas que não parecem capazes de combater como gostariam de fazer. Não foram vocês, no MFA, que deram ordem pararem com as operações?
-- Sim, nós demos essas ordens. Mas, como sabes, a guerra não parou... Não só continua como aumentou!
-- Qual guerra, major? A guerra da Frelimo? Quem está a fazer a guerra? as vossas forças? ou vocês já fizeram um acordo com o Machel que só aos homens dele permite que façam fogo? Não sabes que a 24  de Maio Samora Machel deu ordens aos seus homens para continuar, e mesmo intensificar, as acções, contra os portugueses? Não és tuque queres dar todo o poder à Frelimo? É esta a tua forma de "democracia"?
Anos mais tarde, o vice-rei do Norte de Portugal (que eu conhecia de Porto Amélia como um activo membro do MFA), coronel Pires Veloso, confirmou: Eu e o Tomé não estávamos de acordo pelo menos num ponto.
Ambos pensávamos que era necessário dialogar com a Frelimo mas ele era de opinião que a Frelimo, como principal partido, devia ser apoiada para alcançar a supremacia. Afinal, o poder dos outros partidos não tinha qualquer utilidade.Não tinham razão de existir!
Na minha situação, hospitalizado depois de ter sido ferido numa coluna militar portuguesa onde era suposto ser protegido pelas mais operacionais tropas existentes nesta guerra, podia abrir a boca e dizer ao major Mário Tomé o que me apetecesse. O Tomé nada podia fazer! A  temperatura subia com as minhas provocações. Devo, em sua defesa, dizer que o major nunca perdeu as estribeiras. Pobre Mário ... Mantenho a voz baixa para não ser ouvido pelos outros doentes que passeavam no corredor, tentou contra-atacar.
-- Meu amigo, tens de compreender que dez anos de guerra são anos a mais, principalmente para a nossa economia. Portugal já não aguenta -- disse o Tomé utilizando um dos seus típicos argumentos,
Mário Tomé era um verdadeiro idealista ou um utópico sonhador? 
Resolvi então atacar duramente e esperar pela sua reacção:
-- Tomé, que guerra tens tu feito nos últimos anos? Quantas operações fizeste nas duas últimas comissões? Já não ouves um tiro há quatro ou cinco anos -- lancei.
Era uma provocação que não resultou. Podia ter vindo com a história da Cruz de Guerra de 1968 ganha em Vila Cabral, mas nada disse.
-- Diz a verdade -- voltei à carga --, alguma vez estiveste debaixo de fogo do inimigo?
Eu sabia que ele tinha estado em Olossalto ou Nhacra entre Abril de 1970 e Fevereiro de 1972, durante a sua segunda comissão na Guiné, quando substituiu o capitão Francisco Moura Borges. Regressado a Lisboa, poucos meses depois, Mário Tomé conseguiu um bom lugar em Nampula, no staff do general Kaúlza de Arriaga, que até gostava muito do Mário.
Pode ser que tenhas razão -- retorquiu ele --, mas eu sou um optimista e, como tu dizes muito idealista.  Desejo sinceramente que este confronto se resolva a bem para que todos possam viver em paz e harmonia em Moçambique. Faço votos para que todas as populações de Moçambique possam fazer deste país um outro Brasil -- disse o Tomé, apertando-me a mão e, silenciosamente, deixando o quarto

MEPONDA (NIASSA) em 1967 Capitão Valente da 4ª CCMDS e 
Capitão Mário Tomé da CCAV. 1601

Tinham passado 59 horas desde o incidente em Macomia quando o Luís me voltou a visitar. Eram 21h00 de domingo e as luzes no hospital já estavam apagadas.  Disse-me que tinha dormido muito mal na noite anterior e que só à tarde fora ao Hotel Portugal para ouvir o que as pessoas diziam sobre o jornalista italiano. Luís contou-me que tinha encontrado o alferes Telles Gomes.
-- Vinha eufórico e perguntou-me se eu sabia que o Jorge Jardim já controla a situação a partir de Madrid. Eles desejam a Felimo num Governo de Transição! Era mais um dos boatos tão típicos dos portugueses. Luís disse-me que era verdade, que o Engº Jardim realmente queria a "sua" Frelimo no Governo! Mas como seria possível acreditar nas palavras de Telles Gomes? Jorge Jardim tinha escapado de Lisboa dia 13 de Junho ...Como poderia ele, em apenas 48 horas, controlar tudo' Mas o Telles Gomes não era um boateiro qualquer. O Luís sabia que ele trabalhava para alguém com objectivos bem definidos e ouvia-o sempre com muita atenção mas nunca lhe dando muito troco.
(..)
Luís saiu do hospital e, já em casa, decidiu  anotar algumas reflexões..
Muitos em Nampula acreditam que o general Spínola se prepara para disputar ao MFA o controle do poder político-militarpara tentar implementar os seus planos de descolonização, referendos e, depois, uma Federação de Estados de Língua Portuguesa.
Outros mais próximos do verdadeiro poder, ou seja, o MFA e dos seus apoiantes políticos, confirmam que Spínola não tem qualquer hipótese de tomar o poder. Embora ainda seja Presidente da República, terá reconhecer que tem cada vez menos poder.
O secretário-geral do Partido Comunista Português, Álvaro Cunhal, é atentamente escutado pelos mais jovens oficiais do MFA. Havia nesta altura trinta e nove partidos olíticos e mais um, o velhinho PCP de Álvaro Cunhal e companhia .... ilimitada.
Resultado? O MFA irá, mais cedo ou mais tarde ter de colaborar com as esquerdas civis. Para isso tem que dar mais apoio à criação de uma esquerda militar. Cunhal é um dos políticos mais favorecidos nesta fase da chamada revolução democrática!
Aqueles que desesperadamente desejam ver o general Spínola ganhar mais e mais controle do processo de transição para a democracia partidária, espalham cada vez mais boatos. Ao redor do Hotel Portugal, nas esplanadas e clubes nocturnos, há sempre muitos apoiantes dos generais da Junta de Salvação Nacional a mandar papos, sem qualquer fundamento, chamando a atenção para o facto de que as coisas não estão tão más como se diz e que tendem a melhorar a curto prazo.
Os mais bem "informados" dizem que vão chegar aviões Mirage da África do Sul para reforçar os pseudos-ataques a Nachingwea, na Tâzania . Barcos carregados de armamento sofisticado, diziam, atracariam brevemente em Nacala vindos da Alemanha, Israel e Estados Unidos. E, se não chegar, a Rodésia está pronta para enviar todas as suas forças de combate para a ZOT (Zona Operacional de Teta!
Estes boatos são tão bem estudados que fazem muitos acreditar que uma guerra ainda mais violenta está preparada para os próximos dias.
Estou informado, e totalmente convencido, de que a guerra virá mais tarde, depois de a Frelimo governar o país!
Em Nampula, começamos a ter a certeza de que é uma bem estruturada campanha de desinformação para elevar o moral de certos sectores moçambicanos que desejam uma acomodação rápida com a Frelimo.


Orlando Cristine e Jorge Jardim
O  MFA continua a ter esperança de que a Frelimo também deseje a paz imediata e desdobra-se em contactos secretos em várias capitais.
Lentamente, chegam ao meu conhecimento os encontros, longe das luzes da ribalta, de Melo Antunes e Almeida Santos com Aquino de Bragança, Sérgio Vieira e outros elementos da Frelimo.
Só para os meus olhos: Os acordos de transferência do poder para a Frelimo já estão quase alinhavados. Elementos contrários à Frelimo estão a preparar uma resposta para a traição do MFA, diz o sempre bem informado Orlando Cristina!
Durante os meses de Maio e Junho tinham jogado a sua cartada com muita inteligência. Grupos colonial-fascistas, como o Orlando Cristina lhes chama, foram apanhados totalmente desprevenidos

CAPÍTULO 5
Vida nos hospitais militares - 
Chissano Brothers - 
Correio Nampula - 
A "confraternização" segundo o Notícias de Moçambique
 - Visita do Luís ao hospital em Lourenço Marques
 - O incidente na fronteira de Ressano Garcia 
- Visita consulta 
- Deixo o hospital militar - Regresso a Nampula
                      
Texto com letras a preto, retratam escrita de Giancarlo Coccia.
A amarelo o Diário de Luís Correia.

"O que estes sacanas fizeram à minha cara"
Três dias depois depois de ter chegado ao Hospital Militar de Nampula, fui autorizado a levantar-me e utilizar, pela primeira vez , o quarto de banho. Um privilégio que celebrei aproveitando para me examinar ao espelho.
Vamos lá ver o que estes sacanas fizeram da minha cara, pensei em voz alta. Nem a  minha mãe me teria reconhecido!
Vamos lá 
(...)
Durante a hora do almoço vieram-me informar de que seria evacuado para Lourenço Marques. Estava fora da lista de perigo mas os clínicos ainda estavam preocupados com os efeitos da explosão na minha vista direita. Só no Hospital Principal, disseram-me, podia ser confirmado o possível efeito deste incidente.
Terminada a refeição, um enfermeiro trouxe a minha roupa; o uniforme camuflado que eu vestira no mato estava tingido de sangue seco e rasgado nos joelhos.
Meia hora mais tarde a ambulância levou-me para o aeroporto. Alguns minutos antes do embarque, um funcionário da TAC dirigiu-se-me com um embrulho na mão. É para si, da parte do Jorge Cruzdisse-me desaparecendo logo a seguir.
Quando cheguei ao Hospital Militar de Lourenço Marques, já era noite cerrada. O médico de serviço perguntou-me o apelido e o número da unidade a que eu pertencia.Quando lhe expliquei que nas minhas circunstâncias não havia unidade, começou a querer complicar as coisa. Civis não estão autorizados a utilizar o nosso hospital, afirmou. 
Finalmente resolveu abrir o meu processo, iniciado no hospital de Mueda, e leu tudo o que os seus colegas tinham ali registado, admitindo-me logo. Dizia:

Jornalista italiano, civil, superiormente autorizado a acompanhar os comandos de Macomia em Cabo Delgado. Ferido numa emboscada.
(...)
Alguns dias depois, no refeitório do hospital, fui apresentado a um dos muitos alferes que serviam as Forças Armadas de Portugal. Este era especialnão só porque pertencia a uma das melhores unidades de soldados africanos, os GE, como eram conhecidos os Grupos Especiais que actuavam de farda preta e boina amarela, mas também porque o seu nome de família era Chissano

Alferes GE, Alberto Joaquim Chissano e António Lopes

Era Alberto Joaquim Chissano, um dos dois alferes da dividida família. O outro, que eu conhecera em Nampula, trabalhava para o Gabinete de Imprensa no QG. Este o número dois, tinha sido ferido numa perna e era irmão mais novo de Joaquim Chissano, membro da Associação de Estudantes de Ensino Secundário, estudante universitário em Portugal e França e um dos mais instruídos e dedicados membros da Frelimo desde a sua fundação! Mais tarde, o irmão mais velho, Joaquim Chissano, representando a Frelimo, foi nomeado primeiro-ministro do Governo de Transição.Dizia-se em Lourenço Marques, e não era boato, que "um dos irmãos Chissano" tinha uma linha secreta de contacto com o outro irmão que tinha sido secretário de Eduardo Mondlane, o primeiro presidente da Frelimo e chefe dos serviços de contra-espionagem da Frelimo até 1974. Era estranho como na mesma família uns eram reconhecidamente anti-colonialistas e outros pareciam colaborar com o "inimigo"de Moçambique. Este era o caso da família Chissano. O General Kaúlza de Arriaga protegia os seu "Chissano" e este continuou ao serviço do Gabinete de Imprensa até o Comando-Chefe ser transferido de Nampula para Lourenço Marques em Setembro de 1974
Os meus dias nos hospitais de Lourenço Marques, tanto militar como no civil Miguel Bombarda, foram gastos e fazer exames e consultas da especialidade. Aqui fui finalmente observado por um médico especialista, de origem goesa, que me informou que só dentro de dias recuperaria totalmente a visão. 

(...) Ainda  estava a pensar nesta boa nova quando recebi um telefonema do cônsul que nem podia sonhar o muito trabalho que eu lhe iria dar...
-- Nada de grave, senhor cônsul ... apenas uma pequena ferida . Por favor não se incomode
-- O que me está a dizer? Não me incomodar com o assunto? Tenho que informar o nosso governo. Você é um jornalista italiano ... Devia saber isto muito bem Sr, Coccia... Porque não fui logo informado?
-- Caro cônsul eu não o podia informar porque ... sabe ... estive inconsciente até ontem. Agora  já me sinto muito melhor mas os médicos proibiram-me todas as visitas.

(...) - Correio - disse-me o enfermeiro
-Correio? Para mim?
- Sim,tome - e entregou-me um envelope amarelo.
Era de certeza do Luíz Correia! Não perguntava qual era o meu estado de saúde.  Dizia, ordenadamente:

Giancarlo
Junho 18
Terça Feira
Mandado de captura para Engº Jorge  Jardim. Uma nota oficiosa do Governador-Geral, Drº Soares de Melo. Mandato de captura e congelamento de todas as suas contas bancárias. O sr. Jardim não pode movimentar nenhum dinheiro nos bancos de Moçambique
Claro que Jorge Jardim não é estúpido, já não tem o dinheiro no seu nome.O engenheiro não é rico como se diz... O pouco dinheiro que é dele está provavelmente em Londres ou no Malawi.Jorge Jardim movimentava muito dinheiro que não era só seu. Podia ser dos seus patrões ou do Ministério da Defesa.
Não temos ainda notícias do teu estado de saúde. O JCG disse-me esta manhã que se não tiver notícias tuas antes do dia 20,poderá ir a Lourenço Marques. Eu disse-lhe que também estava a tentar ir pois a minha família queria seguir em breve para Angola.
Amanhã vai chegar o Bruce Loudon do Daily Telegraph. Quer saber qual a reacção do MFA  local ao ultimato da FRELIMO...
Desde o dia 14 que se sabe do plenário do MFA em Lisboa onde foi exigido ao Governo um cessar-fogo imediato em todas as frentes de combate na Guiné, Angola e Moçambique. No mesmo dia a Reuters informou da recusa da FRELIMO em declarar um cessar-fogo antes de se acordar a data da independência.
Mais, Giancarlo, só para ti, desculpa ter-me esquecido: o David Martin,, de Dar-es-Salan, informava no mesmo dia que não vai haver nenhum cessar-fogo até que o Exército Português seja totalmente destruído!. 
Mais um brande abraço, na esperança de te ver novamente em Nampula ou, quem sabe, Lourenço Marques.
Do amigo
Luis Correia

                                                                           ***

(...) Eu lá ia , "sobrevivendo" no hospital e embora melhorasse de dia para dia não podia fazer o que mai desejava : viver os últimos momentos da guerra junto àqueles que tinham "dado o litro" para trazer a Moçambique a verdadeira Paz e harmonia racial.

                                                                            ***

Estávamos a 25 de Junho. Aos corredores do hospital chegou a notícia da bronca que tinha havido em Ressano Garcia, na fronteira de Moçambique com a África do Sul, com uma chusma de mineiros e uma secção de Comandos. Segundo as informações recebidas, um grupo de combate de Comandos tinha sido enviado para a fronteira de Ressano Garcia - Komatipoort para  acalmar os mineiros que estavam em ebulição por razões "altamente políticas". Segundo um Alferes, milhares de mineiros atravessavam regularmente a fronteira entre Moçambique e a África do Sul e, normalmente, regressavam a casa logo que terminassem os seus contratos.

(...) O Alferes que comandava o Grupo de Combate estava bem informado mas não sabia como tinha começado o protesto dos mineiros naquele dia nem as suas tentativas de acabar com um acordo entre Governos feito em 1928 e que, desde 1963, ajudava a pagar os vencimentos e parte dasdespesas militares dentro e fora do chamado "saco azul" do Governo.
Nesse dia, um grupo de agitadores tentou utilizar o que lhes parecia mais fácil para criar complicações na fronteira e "aquecer" os ânimos dos moçambicanos. O pessoal da alfandega e do controle de passaportes nunca havia tido qualquer problema mas, segundo o Alferes "Comando", os passageiros recusaram-se a seguir viagem antes de terem este seu assunto resolvido. Exigiam ali mesmo todo  o dinheiro que, supostamente, lhes seria pago apenas no regresso a casa.
O alferes relatou os acontecimentos da seguinte  forma: " A um dado momento, começaram a atirar pedras. Tentámos acalmara fúria deles e ordenei ao pessoal para recuar trinta metros. Os agitadores consideraram isto um gesto de medo e retirada, e incitaram o magote a avançar sobre nós. Ficámos frente a frente, a poucos passos de distância. Voltei a apelar que  se restabelecesse a ordem. Não resultou. Já não se ouvia nada com a gritaria que faziam. Convenci-me que os instigadores não iam permitir qualquer retrocesso. Momentos depois, o meu pressentimento foi reforçado quando um deles disse: Não parem...estes soldados são como os outros do mês passado... Eles não abrem fogo! Grande engano! Os meus homens aguardavam ordens . Mas não tive tempo para dizer nada .
Estava ainda a pensar o que iria fazer quando um dos mineiros, tresloucado, tentou arranca a G3 das mãos de um dos meus Comandos africanos. Ele só tocou na arma uma vez, o meu homem puxou o gatilho com a patilha na posição de rajada. Só uma chegou para afastar aquele magote de gente e acabar com a demonstração de força dos mineiros. Resultado: 7 mortos!."

A situação em Moçambique estava cada vez mais quente. Tinha de sair do hospital mas os médicos recusavam-me a dar-me alta.


                                                                         ***

Do diário de Luís Correia

Boatos novos todos os dias num acampamento de solteironas!
No mês de Julho tinha começado a circular o boato que os Comandos em Montepuez tinha chegado um novo Dante Vacchi. Este era o pseudónimo do jornalista italiano Guido Gianettini que, em 1962, ajudou a treinar os primeiros elementos de uma "Força Especial" que mais tarde ficou conhecida por  "Comandos". Discuti o boato com o Jorge. Não ficou surpreendido.
Em Montepuez, diziam, tinham-lhe dado o nome de código de "Prma" .
Quem é o "Parma", jornalista especializado em técnicas antiguerrilha, muito viajado, conhecido nas tropas especiais do Vietname e tudo o mais que o coronel Marquilhas também tinha escrito sobre Cesare Vacchi e os "Comandos"?

Sábado
6 de Julho
Dar-es-Salam
No comunicado nº 38/74, a Frelimo anuncia ter aberto uma frente operacional na Zambézia.

                                                                                ***

O certificado de alta finalmente chegou! Agora, o meu único problema era chegar depressa a Nampula e aos Comandos de Montepuez. Considerando  o meu  último contacto com o amigo Major Mário Tomé, e os argumentos por mim utilizados nessa ocasião, o Major foi super dedicado quando, ao telefone, lhe pedi para me encaixasse num voo para Nampula. Grandioso e nobre como sempre o Mário arranjou-me uma reserva para o dia seguinte (Domingo,7 de Julho). Deixei o hospital depois de dias e dias de  exames e consultas que provaram aquilo que eu já calculava: tinha uma fractura do crânio na zona do parietal-direito que recuperaria por si própria. Continuava com dores de cabeça mas sentia que junto dos Comandos, estaria melhor e seria mais útil para o livro!

CAPÍTULO 6

AS FORÇAS ARMADAS PORTUGUESAS iniciaram a retirada das bases no norte
A  CCMDS 2045ª em Sussundega 
Visita do General H. De V. Du Toit a Montepuez

Domingo, 7 de Julho de 1974

(...)No inicio de Julho já não restavam dúvidas já não restavam dúvidas: Portugal estava a preparar-se para abandonar os territórios Ultramarinos, incluindo, claro, Moçambique.
As unidades mais isoladas estavam a preparar a retirada para a sede das suas companhias ou destas para junto dos Comandos de Batalhão. Segundo o Jorge, até ao final da primeira semana de Agosto, terminaria a fase de reagrupamento das unidades que se concentravam em grandes bases militares como Mueda. Palma, Mocímboa da Praia, Montepuez, Macomia e Porto Amélia. As que estiveram em Negomano, Olivença (Niassa), Mocímboa do Rovuma, Omar, Nangade e Pundanhar, retirariam para Sul muito em breve.
Tudo isto era grande novidade para alguém que, como eu, conhecia tão bem a evolução da guerra em Moçambique desde 1972.

                                                                     ***

Em 19 de Março de 1973, em resposta a uma "sugestão" do Ministro da Defesa Nacional. General Sá Viana Rebelo, Kaúlza de Arriaga  reagiu de forma desabrida, escrevendo:

Sugestões de V.Exª de "quase" abandono do Norte, o actual comandante-chefe não pode adoptá-las por vários motivos. O mais importante seria o aparecimento concreto de "áreas libertadas" com a possibilidade do estabelecimento dum "Governo" da Frelimo em território Nacional. Assim, sugere-se o reforço com unidades vindas de Angola que, seria automático, se um Comando-Chefe único existisse para Angola e Moçambique.

A terminar, o General Arriaga Afirmou.

Com os meios existentes está a fazer-se tudo o que é possível em Moçambique. O Comandante-Chefe não sabe fazer melhor...

Eu tinha comigo o "Plano Kaúlza" datado de 1966
O General Arriaga foi muito duro mas não tinha nada a perder. Sabia mmuito bem fazer a guerra, tinha uma visão clara da situação actual na África Austral e recomendou, logo em 1966, a criação dum Comando único para Angola e Moçambique. Via com muita reserva o plano do ministro Viana Rebelo e suspeitava que o seu inimigo particular, K. Flower, chefe do CIO rodesiano, tivesse algo a ver com o "sugerido abandono"! Há anos que o "inimigo oculto" queria que Portugal abandonasse o norte de Moçambique, ficando apenas a defender o paralelo rio Zambeze com a barragem Cahora Bassa com a colaboração da Rodesia. Pretendia ainda dividir Moçambique em dois, como aconteceu com a Coreia e o Vietname. Aliás Dominique de Roux confirmou este plano que dizia existir para benefício do"Bastião Branco"!,
Na tarde de 7 de Julho fiquei fiquei a saber que a fase seguinte de "abandono" de Moçambique iria iniciar-se em Agosto. As unidades que estivessem a terminar as suas comissões começariam a em barcar em Nacala para regressar a Portugal. Ao mesmo tempo, o QG iria ser transferido para Lourenço Marques e apenas algumas unidades ficariam na Beira até ao regresso final de todas as unidades militares portuguesas. Alguns dos moçambicanos que serviam nas Forças Armadas tinham passagem garantida para Portugal, mas a  maioria seria desmobilizada até finais de Setembro. Cada um por si, todos iriam enfrentar um futuro incerto!

Sexta-feira, 12 de Julho de 1974

Depois de ter ter gozado três maravilhosos dias na ilha de Moçambique, resolvi voltar para Nampula. Para tal, apanhei a boleia de uma coluna que regressava à capital militar. 
Despedi-me  dos meus amigos dos Comandos e confirmei que estaria  em Montepuez dentro de uma semana, quando terminasse o descanso e regressassem ao Batalhão.
Quando cheguei Luís estava à minha espera no Hotel Portugal. Por sorte, quem não estava era o sr. Marques! Na recepção esperava-nos a nossa grande amiga Gabriela.
A filha do sr. Marques, proprietário do Hotel Portugal

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A  situação em Moçambique tornava-se ainda mais confusa. Vivia-se num caos inflamável e antes de me despedir do Luís, fizemos um acordo, Contactaríamos um com o outro, em código, caso algo muito importante viesse a acontecer. Mas tal como as coisas se viriam a desenrolar, nunca tal foi necessário.
A desmobilização das desmoralizadas Forças Armadas continuou sem qualquer percalço, sobre a orientação dos novos mandantes militares e civis.  Só nos voltámos a ver ao jantar no Hotel Moçambique, na Beira, num domingo.
No dia anterior, 27 de Julho de 1974, o general Spínola fez o já anunciado discurso de que Portugal iria descolonizar imediatamente!
Depois da nossa conversa no Hotel Portugal, fomos jantar perto do Clube do Niassa, ao llado da marisqueira. Aí, encontrei um outro amigo, Vasco, piloto de táxi aéreo que me ofereceu uma boleia no dia seguinte (Sábado 13 de Julho) para Montepuez. A sua generosidade era outra das qualidades dos moçambicanos. Embora se oferecesse para me deixar em Montepuez, o seu plano de voo original era o levar passageiros comerciais a Porto Amélia.
Não se preocupe, Giancarlo- disse o Vasco - É só um pequeno desvio da rota que não vai magoar ninguém!
(...) Minutos depois de ter aterrado em Montepuez,  já no aquartelamento, fui envolvido nas celebrações organizadas pelos oficiais. Foi muito bom retomar ao convívio dos Comandos. Apesar do mêss de Julho ter avançado, fazia muito calor e todos tivemos  de beber bastante para matar a sede. Fiquei sensibilizado com a recepção que me fizeram; a mim, um civil, que ainda por cima só lhe tinha trazido complicações! Quando finalmente cheguei ao meu quarto, vi que estava tudo como eu deixara antes de segui na coluna para Macomia. Havia só uma pequena surpresa extra:em cima da cama estava estava um bilhete escrito pelo Major Artur da Fonseca Freitas; 

Meu caro amigo
Porque é que nos tiveste de pregar um susto destes? Parece mesmo que combinaste com a Frelimo para que te atingisse de forma que tivéssemos de preocupar contigo desta maneira. depois da emboscada, preparámos um caixão de chumbo à tua medida. O Manuel Glória Belchior já tinha decidido que o teu Land Rover amarelo ficaria para ele. Alberto e Fernando queriam partilhar as tuas camisolas de lã e eu, meu amigo ficaria muito satisfeito com a tua magnífica caçadeira.
E continuou
Como nos desapontaste a todos, eu, aqui ordeno que te apresentes logo que seja possível perante mim e o Batalhão, para nos satisfazer (...) que o teu retorno à vida é genuíno.
Ass. O Comandante.

Manuel da Glória Belchior, que tanto desejava ficar com o meu Yellow Submarine, tinha agora os galões de Major e era o segundo comandante do Batalhão de Comandos. Tive a oportunidade de o observar a organizar a recepção da nova leva de candidatos que em breve chegariam para darem início ao curso de Comandos.

Major CMD. Manuel Glória Belchior

(...) Quando o Major Freitas voltou de Lourenço Marques, encontrou o seu gabinete e todo o Batalhão num "brinquinho" e a andar  sobre rodas. Contudo, à sua chegada Artur Freitas era um homem diferente. Saiu do avião com um sorriso forçado e de ombros arqueados. Parecia que trazia um grave peso em cima. A sua saudação foi tão formal quanto indelicado. Isto não era normal  . Havia "gato" pensei. Logo que entrou no gabinete, convocou todos os comandantes de companhia para uma reunião de urgência que durou mais de duas horas. Nunca cheguei a saber o que fora discutido. Quando saíram do gabinete e transpuseram a porta para o exterior, notei pelas suas caras que as missões estavam a chegar ao fim.

(...) Domingo 14 de  Julho, quatro dias depois da minha chegada ao Batalhão. Viajando em avião fretado, o capitão comando Moura encontra-se numa reunião secreta com o major Freitas. Ninguém tinha conhecimento da missão que o trazia à casa-mãe dos Comandos. Depois de se terem fechado no gabinete durante bastante tempo, foi solicitada a presença do Alferes Comando Amílcar Santos Cardoza, comandante da 9º CCMDS moçambicana mais conhecida como a 1ª/74, formada em Março. As instruções recebidas por Cardoza ordenavam a partida imediata de um grupo de combate para Vila Paiva de Andrade afim de fazer ligação com a 2045ª CCMDS. A missão era a execução de um golpe de mão contra o quartel de Artilharia aí situado.
Fazer uma operação contra um quartel nosso embora de uma arma diferente?  - perguntou o alferes Cardoza quase a ponto de se recusar a aceitar esta ordem de missão quando o major Freitas expôs as razões para esta insólita situação.
Uma companhia de Artilharia, vinda de Lisboa em Maio último, está amotinada. O Coronel comandante do Batalhão tinha dado ordem para saírem para a picada e efectuar uma normal coluna de reabastecimento mas a companhia recusou-se. Disse que como a guerra estava para acabar a qualquer momento, não havia  qualquer justificação para arriscarem a vida.
Quando o tal coronel os ameaçou com insubordinação, os artilheiros sequestraram o superior. Agora, ameaçam matar o homem se forem admoestados até o cessar fogo ser oficialmente declarado. A bola está do nosso lado e temos de acabar com esta vergonha. 
Era uma  desconcertante situação mas era de esperar  que homens mal enquadrados e saídos de Lisboa nos últimos dias do antigo regime, viessem para provocar o caos logo quando a situação já de si não era a melhor. 
A situação era muito séria. Os artilheiros rebeldes retinham o coronel há já 24 horas quando logo pela manhã, grupos de Comandos de duas companhias se preparavam para assaltar o quartel onde se passavam os trágicos acontecimentos. Tanto o alferes Cardoza como o comandaste da 2045ª, não desejavam que houvesse trocas de tiros nem feridos ou mortos, mas estavam preparados para acatar as ordens  superiores. A melhor táctica seria a de surpreender os revoltosos. Esta delicada operação estava aser preparada com todo o cuidado quando, quando um dos soldado Comando pediu autorização ao alferes Caedoza para lhe emprestar os seus galões, pois ele, Nelson, tinha uma ideia como acabar com aquela cena. Bastou uma rápida troca de palavras para o Nelson expor a sua brilhante ideia. De seguida meteu-se a caminho da porta de armas do tal quartel. Sozinho Nelson estava preparado para dar conta do recado. Casualmente e parecendo tratar-se de uma deslocação normal, Nelson aproximou-se da sentinela. Esta ao ver os galões de alferes, pós-se em sentido. O nosso homem, com teatral desplante, disse: É o melhor que sabe fazer, artilheiro? E continuou: É a isso que você chama um movimento regulamentar?  Seu bandalho idiota! Raios te partam! Dá cá a tua arma que vais ver como se deve fazer! Completamente chocado, alarmado e em pânico, a sentinela entregou-lhe a  arma, amedrontado com a agressividade demonstrada pelo "alferes" Nelson.
Trinta segundos depois, com a sua própria arma apontada às suas costas, a sentinela marchava para dentro do quartel, seguida das viaturas e do resto dos comandos. Em minutos, o nosso triunfante Nelson da 2045ª, tinha a situação resolvida e os comandos, como quem limpa o cu a meninos, acabaram com a rebelião sem disparar um único tiro. Tudo o que foi necessário foram uns murros bem dados no sítio certo e, para para os mais renitentes, umas boas coronhadas de G3. Em pouco tempo todos os artilheiros foram desarmados e embarcados em viaturas para serem levadas e devidamente arrecadados no Comando do Sector,

"Operação Despedida", viagem do Major Artur Freitas

O Major Freitas planeava uma rápida tournée por todos os destacamentos dos Comandos, que se estendiam de Tete à Gorongoza e da Zambézia a Vila Pery.
Manuel Belchior seria o substituto do major Freitas quando este deixasse o comando da unidade. Também ele faria a viagem que estava prevista durar quinze dias.
Durante esta "expedição" estava planeado visitar os "Sombras" da 6ª CCMDS, a 7ª CCMDS do Capitão Abrantes, a 8ª CCMDS "Hatari", do capitão Campos Carvalho e a 1ª/74, como ficou a ser conhecida, do alferes Santos Cardoza. Todos os homens que as formaram nasceram ou viviam em Moçambique. Seriam também visitadas as unidades que, vindas de Portugal ou de Angola, cumpriram comissões de 2 anos. Era o caso dos "Justiceiros" da 2043ª, dos "Lordes" da 4040ª, dos "Bruxos" da 2040ª e dos Comandos da 2045ª, a "Brigada do Diabo"

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Antes de deixarmos o Batalhão para a primeira etapa da nossa "peregrinação", o Major Freitas caiu em depressão. Perguntei a mim própria se esta atitude não estaria relacionada com a inesperada visita feita por um VIP aos Comandos de Montepuez.

Domingo
21 de Julho
Chegaram "em visita não oficial" o general Hein Du Toit, chefe da Military Intelligence sul-africana, acompanhado pelo Major "Cor" van Niekerk. Eu não conhecia pessoalmente este general mas. como correspondente de um importante órgão de informação italiano e residente em Pretoria, sabia que havia um total black out sobre o general Du Toit. Era absolutamente proibido publicar a sua fotografia nos media. Assiim, integrado no comité de recepção, o general sul-africano nunca soube que havia ali um jornalista.
No almoço com os graduados disse abertamente: A África do Sul não tem medo de ver a Frelimo no governo em Lourenço Marques. Estas palavras em nada elevaram o espírito do major Freitas, que sentia que tudo se estava a encaminhar para um miserável fim e que teria de aguentar uma certa dose de crítica dos seus homens. Não tinha porém coragem de  lhes dizer que se ia embora, deixando para trás os que viviam em Moçambique sofrendo as consequenciais da sua lealdade aos Comandos portugueses. " Os heróis de ontem, disse, serão primeiro esquecidos e depois acusados..."
Tal como o general Orlando Barbosa, o major Freitas só podia ser acusado pela sua recusa em aceitar o inimigo de ontem como seu amigo de hoje. Estes oficiais do "profissionais" estavam preparados para sofrerem derrotas em batalha mas nunca para a falta de honra, Assim sendo, Freitas e muitos outros, preferiam entregar-se a um "exílio"  interno na própria terra de se prostituírem com o improvisado e "louco" rumo da política portuguesa de Agosto de 1974. Alguns abdicariam das suas carreiras mas todos, heróis ou não, seriam marginalizados caso não "dançassem" ao ritmo da orquestra MFA. Para o major Freitas, os princípios que norteavam a sua atitude eram muito mais importantes do que os resultados.
O meu trabalho com os dois oficiais era simples. Tinha-me tornado o "historiador" do Batalhão de Comandos de Montepuez e a minha tarefa era escrever. e descrever, tudo aquilo que se ia passar neste período da História do Batalhão e de Moçambique.
Para a primeira parte da nossa viagem (Montepuez-Nampula), iniciada "oficialmente" numa sexta -feira 26 de Julho, estava disponível um velho mas sempre assoberbante operacional, Dakot DC3 da Força Aérea. Fora um gesto amável da parte de quem planeou a viagem mas os nossos espíritos ainda mais se desanimaram quando verificámos que éramos os três únicos passageiros daquele voo. Quando aterrámos em Nampula, o major Freitas seguiu imediatamente para o Comando-Chefe, onde tinha um encontro marcado com o general Orlando Barbosa.
(...) O dia 27 de Julho de 1974 ficará na história como o dia em que foi reconhecido o direito à autodeterminação e, consequentemente, à independência, de todas as colónias africanas de Portugal. Antes do famoso discurso proferido pelo general Spínola, o chefe terrorista Raimundo passeava-se em Tete, acompanhado por dez dos seus homens armados até aos dentes.



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A cidade de Tete era a sede da CCS (Companhia de Comando e Serviços) do Batalhão de Caçadores 17 de recrutamento local. O "17", comandado pelo major José Alberto Aparício, tinha sido transferisdo de Inhambanhe depois do general Kaúlza de Arriaga, em 31 de Março de 1970, ter tomado posse do cargo de Comandante Chefe das Forças Armadas de Moçambique em substituição do general Augusto dos Santos que estava presente há 7 anos na grande província do Índico (1963-1970). Kaúlza resolveu mudar toda a planificação feita pelo seu experiente antecessor. A segurança de um dos locais estratégicos para o futuro deste país estava entregue a um Batalhão de Infantaria de "pacaça", constituído por soldados do recrutamento local. Entre eles estavam muitos apoiantes de Frelimo e até mesmo alguns portadores do cartão de identificação daquele movimento. O comandante do Sector "F", totalmente controlado pelo MFA de Nampula onde ainda pontificava o meu amigo o major Mário Tomé, teve uma "esplêndida" ideia: fazer fazer coincidir  a publicação em Diário da República a independência da Guiné-Bissau com a entrada dos chefes da Frelimo da zona na cidade de Tete, Assim, pensou este "estratega psicológico" responsável do Sector "F", a "imprensa internacional poderia noticiar o grande avanço e domínio que os guerrilheiros tinham alcançado mesmo antes do golpe de Abril"
Teve o efeito desejado. Houve muitos "pacaças" disponíveis para se deixarem fotografar para a posteridade com o infame Raimundo e os seus correlegionários e para lhes darem cobertura para que se passeassem impunemente. 

(...) A nossa conversa pela chegada do major Freitas e do major Belchior. Tinham terminado os planos para o dia seguinte: primeiro seria para o Songo e depois para a Estima. Aí estava estacionada a 7ª CCMDS de Moçambique que, soc o comando do Capitão Amaral, fazia a defesa da frente de obra, patrulhando o difícil terreno montanhoso a fim de evitar qualquer infiltração na zona da barragem. Mesmo após as instruções dadas por Lisboa, esta companhia continuou a cumprir todas as missões até à data da nossa visita.
Que ironia do destino! Estávamos nós em Tete no início da "Operação Despedida" quando, em Lisboa, Spínola declarou o direito à autonomia e independência dos territórios ultramarinos.

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Naquela manhã, o nosso piloto era o comandante Figueiredo, meu velho conhecido. Ganhava a vida com o aluguer do seu avião para transporte.
Voava frequentemente para Cahora Bassa e já antes eu utilizara os seus serviços. Como outros residentes de Tete, Figueiredo planeava deixar brevemente Moçambique. "tenho pena", disse-nos ele. "Fiz o meu serviço militar aqui no mato, no Noroeste do território. Fui ferido por uma mina e vi os meus companheiros serem mutilados e decapitados. Como piloto civil fui atingido várias vezes e isto não é um avião da Força Aérea mas sim o meu velhinho ferro de engomar. Mas agora o  que é que esperam de mim? Devo começar a transportar os frelimos? E se eu o fizer quem me vai pagar?
(...) Antes de aterrarmos em Estima, e completamente "banzados" com tão grande tamanho  e beleza, fizemos duas passagens sobre a barragem. Eram 8 horas de sábado, 27 de Julho. Tínhamos saído cedo de Tete. Não estava ninguém à nossa espera quando desembarcámos na abandonada pista militar da Estima. Esperámos mais de 20 minutos até aparecer  o jipe conduzido por um soldado de Cavalaria que nos transportou para o Comando de Cahora Bassa.  O Coronel  Pereira Coutinho aguardava no seu gabinete a chegada dos majores Artur Freitas e Belchior para dar início à reunião de esclarecimento.

Vista aérea do aquartelamento de Estima

Entretanto o coronel de Cavalaria Duarte Silva tomou a seu cargo informar-me da situação das tropas no terreno. Já nos conhecíamos de Angola.
O coronel Duarte Silva era o comandante das Cargas Críticas e o Pereira Coutinho o número dois da defesa da barragem. 
(...) Quanto às três unidades que o coronel Duarte Silva tinha a norte do Zambeze, "só no tempo do coronel Rodrigo da Silveira foram atacados com foguetões de 122m/m fornecidos pela URSS, sem qualquer consequenciais para as nossas tropas. Agora, depois do 25 de Abril, as operações de rotina da tropa de quadrícula pararam e apenas os Comandos mantêm a actividade normal. A nossa missão será cumprida até ao final das obras, ainda que para nos complicar a vida tenhamos sido solicitados pelo comando da ZOT em Tete para apoiarmos a visita do chefe terrorista Raimundo! Nada podemos fazer, as ordens não chegaram de Nampula mas sim de Lisboa"
(...) O acampamento dos Comandos na base de Estima ficava situado a meio quilómetro do Comando da Cavalaria. Mas apesar de tão curta distância pareciam viver em "mundos" diferentes. Os Cavaleiros estavam alojados em pavilhões caiados de branco e rodeados por bem conservados jardins.
O coronel comandante tinha os Comandos alojados em tendas de campanha e alimentados por ração de combate tipo C e com água do rio para beber! Fiquei com a impressão que o coronel Coutinho, 2º comandante do Comando Operacional de Defesa de Cahora Bassa, procedia assim propositadamente.

Montepuez, 25/2/1973. Cap.CMD Abrantes Amaral
A receber do Gen. Kaúlza, o guião da 7ªCCMDS de Moçambique

Os homens da 7ªCCMDS de Moçambique do Capitão Amaral eram moçambicanos treinados em Montepuez. Eram uma mistura de raças irmanadas por um mesmo objectivo: "combater os terroristas da Frelimo que tinham como principal objectivo a destruição da Cahora Bassa.
(...) A companhia estava impecavelmente formada, em sentido, formando o mesmo quadrado como se estivessem na casa-mãe em Montepuez. Detive-me respeitosamente a uma certa distância enquanto o comandante do Batalhão recebia  a normal saudação e apresentar armas,. Depois da breve cerimónia foi dada ordem de destroçar e, com muita disciplina, os homens reuniram-se à volta do major Freitas para o escutar.
"Tenho algumas palavras para vos dirigir, começou o major Freitas com a tensão crescente expressa no seu rosto. Era para ele um momento trágico.
(...) Meus senhores, é com mágoa que vos venho comunicar que por razões pessoais vou deixar brevemente Moçambique ... Muitas das coisas mudaram nos últimos meses, tornando impossível a minha continuação entre vós. Assim, vou deixar estas terras que testemunham a derrota e a humilhação do Exército Português, não incluindo nesta trágica situação os Comandos de Moçambique. São tempos difíceis para todos vós, disso estou consciente e reconhecido. Mas estamos todos obrigados a submetermo-nos obedientemente. A nossa honra é também mantida pela obediência e ... eu sei"
O major Artur Freitas, um dos mais duros militares que alguma vez serviu em Moçambique, estava a fraquejar. Por breves momentos parou de falar e, silenciosamente, tentou ganhar coragem para continuar. Bruscamente fez meia volta e retirou-se em lágrimas. Aquilo que sentia não era dor era raiva. Raiva de nada poder fazer quanto à guerra, raiva de apenas poder esquecê-la. Raiva por os seus  homens tinham sido desviados do ataque ao inimigo, presenteado agora como herói. Por fim raiva por ser obrigado a abandonar os homens para quem Moçambique era a sua terra, e dei-lá ``a mercê dos conquistadores.
(...) Os Comandos não podiam ser moeda de troca para jogos políticos. Ele  tinha tentado ser honesto.
Quando o major Artur Freitas.
Quando o major Artur Freitas foi obrigado  a bater em retirada, o major Belchior levantou-se e, tomando o seu lugar, continuou aos homens da 7ªCCMDS de Moçambique.
(...) Depois dos discursos, depois de todos se acalmarem, serviram-nos o almoço numa pequena mesa ao ar livre: feijão com carne salgada.
Logo que terminámos, o pessoal solicitou algumas clarificações por parte do major Freitas.
"Comandante, que devemos fazer quando nos quiserem desarmar?"
"É verdade que seremos julgados por crimes de guerra?"
"Comandante, é verdade que seremos evacuados para Lisboa? Devemos tentar chegar à África do Sul enquanto é tempo?"
"Comandante...comandante...comandante..."
Os homens que faziam as perguntas não eram os bravos Comandos moçambicanos de ontem. Eram apenas jovens indefesos de vinte anos que procuravam desesperadamente um conselho que orientasse oo seu incerto futuro. No fim, muitos teriam de abandonar o seu amado Moçambbique, mas outros arriscaram a ficar, sendo mais tarde desarmados e humilhados, e muitos deles presos, pelas triunfantes forças da Frelimo.
Quando chegou a altura de continuarmos a "Operação Despedida" não houve abraços. A companhia formou em total silêncio e apresentou armas. Lentamente, rolámos de regresso à pista onde o pequeno avião do comandante Figueiredo nos aguardava. Sentia-se no ar o desespero que tomava conte deste grupo de jovens que, por ainda por cima acreditarem no eterno "Portugal do Minho a Timor", Deram      tudo o que tinham. Era a honra dos Comandos que estava em jogo!.

Domingo
28 de Julho de 1974

O plano era visitar três localidades diferentes e dormir  na cidade da Beira. Levantámos de Tete com destino a Vila Paiva de Andrade  onde estava acampada a 2045ª CCMDS que, mesmo não sendo moçambicana, dependia do mesmo Comando de Batalhão de Montepuez

2045ª Companhia de Comandos

Era a mais indisciplinada companhia de Comandos que conheci. O Major Artur Freitas explicou-me durante o voo que o pessoal desta companhia fora formado no CIOE /Centro Instrução de Operações Especiais )em  Lamego, e terminara o curso no CICA em Luanda. O seu  período operacional iniciou-se em 19 de Outubro de 1973.
Esta companhia esteve em operações cerca de doze meses e a sua rotação foi pelo menos "estonteante" : Montepuez, Tete, Maroeira, Capirizança, Beira, Vanduzi, Caniaculo, Guro e Vila Paiva de Andrade, local em aterraríamos dentro de momentos.  Entretanto, estivera também operacional em Nampula e Lourenço Marques. Ao todo terá mudado de localização dezasseis vezes, sem contar com uns dias de descanso depois de várias deslocações mas nunca estando mais que vinte dias no mesmo local. Dos ex-militares recebeu a alcunha de"Circo" por ser formada, dizem os difamadores, pela escumalha dos bairros carenciados do continente. Parece ter sido uma decisão acertada, pois a 2045ª iria ficar conhecida ccomo "Brigada do Diabo" inscrita na História da guerra como um grupo de homens valentes rudes, "corrécios" mas audaciosos e muito temido combatentes.
(...) Nesse domingo, depois de o pequeno avião ter aterrado em Vila Nova de Paiva, o major Freitas encaminhou-se para o alferes que naquele dia "ocupava" o lugar de comandante interino, o corajoso alferes Brito, e gritou: " Para os Comandos a guerra ainda não terminou. Até serem oficialmente desmobilizados você tem de garantir que os seu homens cumpram à letra o regulamento.
Tendo gritado bem alto estas palavras, foi enviado pelos elementos que em sentido estavam mais perto de nós,. De seguida , o major Freitas aplicou ali mesmo, aos  que se encontravam mais abandalhados e sujos, cinco dias de detenção no "quartel". Depois de todos se terem limpos e ataviado, o major informou o pessoal do seu breve regresso a Lisboa. 
(...)Depois de tomarmos o nosso, deixámos Vila Paiva de Andrade e seguimos para Domba, onde estava estacionada a 1ª/74.
O alferes Amílcar Cardoza - que tinha acordado dar os seus galões ao soldado Comando Nelson da 2045ª - estava à nossa espera na pista de aterragem.
Esta companhia moçambicana era exclusivamente constituída por filhos da terra. O seu pessoal, no qual se contavam  tanto pretos como brancos, tinha terminado o Curso de Comandos em Montepuez há quatro meses
O Major Freitas estava particularmente preocupados com o futuro destes militares: "O que é que vai acontecer a estes homens quando a Frelimo tomar conta disto? Não têm para onde ir a não ser que abandonem já a sua terra e refaçam a sua vida fora de Moçambique. Será uma grande tragédia pois foram os que mais lutaram para garantir o futuro das suas famílias. Que estranho, os melhores vão ser os mais prejudicados"! O major estava perplexo. Nem uma única vez ouvi dizer que estes e outros homens, que em breve seriam persona non grata em Moçambique, deveriam ser evacuados pelas Forças Armadas que serviam. Quando a Frelimo chegasse ao poder já todos teriam fugido, não só os da 1ª/74 mas também de outras unidades operacionais.
O adeus foi comovente. Os militares pareciam querer apresentar as suas armas de forma mais marcante do que os camaradas que os tinham antecedido.
Assisti à dignidade e honra como o major os saudou pela última vez. Afinal, era a última Companhia de Comandos formada à sombra da bandeira de Portugal em Moçambique.
Mal terminou a cerimónia em Dombe, vimo-nos de volta à pista onde o nosso avião nos aguardava . Sussundenga, localizada a cerca de 60 Kms a norte de Vila Pery, era o nosso próximo destino no roteiro "Operação Despedida" 


Sussundenga fica situada a Sul do rio Revué, na estrada E216 que liga Vila Pery a Espungabera, na fronteira com a Rodésia.
(...) Pouco tempo antes da nossa chegada, os "Sombras" da 6ªCCMDS de Moçambique foram transferidos do Norte para Sussudenga. Como jornalista,  tinha um interesse especial em estabelecer contacto com estes homens . Aquela  unidade estava ligada a um dos  mais misteriosos episódios da campanha contra a Frelimo. Queria aproveitar esta visita para ie ao fundo da questão. Desde Dezembro de 1972 que circulavam rumores, aproveitados pela imprensa estrangeira, de que os "Sombras" teriam estado implicados num massacre de civis numa região muito perto da cidade de Tete , a sul do rio Zambeze  e conhecida por Wiriamu. A guerra estava estava a acabar e esta era uma oportunidade única. Estava na companhia do comandante do Batalhão de Comandos, o que me credenciava como jornalista bem recebido na unidade. Os rumores passaram a acusações quando o padre inglês Adrien Hastings, desejando alcançar protagonismo para uma certa causa, conseguiu o forte apoio de de colegas seus e dos media ingleses

                                                      
Padre Adrien Hastings

Quando no início de 1973, Father Hastings, divulgou as primeiras notícias sobre o presumível massacre de Tete, já o Ministério da Defesa tinha iniciado várias investigações sobre os factos ligados à "Operação Marosca", realizada a sul do rio Zambeze, numa zona de aldeias que, em maior ou menor escala, apoiavam os elementos da Frelimo "plantavam minas antipessoais nos trilhos utilizados pelos aldeões. Antes mesmo da conclusão dos inquéritos, insinuava-se que a operação  provocara centenas de mortos civis e que o seu principal objectivo teria sido lançar o pânico entre as populações que apoiavam, ou que pelo menos não denunciavam, a presença de terroristas nas aldeias de Chwola, Jowao e Wiriiamu.
Estas informações fora passando para fora de Moçambique, primeiro via Rodésia , depois pela imprensa sul-africana que lhe deu a mesma proeminência que nos Estados Unidos fora dado ao  caso Mai Lai, no Vietname. Em cartas enviadas ao Times de Londres, Hastings alegara que um grupo de combate Wiriamu e massacrar, sem qualquer justificação, já que os aldeões não tinham de qualquer forma provocado os militares, a grande maioria dos residentes. Foi uma acusação gravíssimo e o Comando Militar Português emitiu um comunicado no qual desmentia estas alegações e convidava a imprensa a utilizar os seus préstimos para se deslocar ao local in loco verificar a falsidade de factos que justificassem os títulos de "massacre". Alguns destes jornalistas aceitaram o convite. Estiveram em Moçambique durante várias semanas e de lá saíram sem obter as provas que procuravam. As primeiras buscas efectuadas por jornalistas estrangeiros na região de Joawo, Chawola e Wiriamu foram autorizadas pelo General Kaúlza de Arrriaga, que escolheu o 2º comandante do Batalhão de Caçadores 17 de Tete, para os acompanhar e comandar a escolta. Este major de nome José Alberto Aparício, voltou pelo menos outras nove vezes aos locais que eram indicados por contactos de confiança dos próprios jornalistas. O resultado foi sempre o mesmo:"nada de assinalar foi detectado nos locais indicados pelos guias escolhidos pelos jornalistas".
Estando aquele oficial a terminar a sua comissão, a ZOT nomeou o major Helio Xavier para o substituir no comando da escolta aos jornalistas tendo este  acompanhado o  primeiro pelo menos uma vez nestas saídas. Mais tarde, quando apareceu em Tete, Jorge Jardim vinha acompanhado pelos jornalistas Bruce Loudon do Dailly Telegraph, Patrick Chauvel do Paris Match e de um seu empregado do Notícias da Beira e disse trazer consigo elementos da sua segurança pessoal e uma testemunha. Isto passou-se a 12 de Agosto de 1973. Esta testemunha fora indicada pelo seu conhecido e amigo padre Ferrão, da misão de S.Pedro, em Tete. A mulher é agora  residente no aldeamento MPádua, na mesma cidade. Esta testemunha ocular (um ex-residente da povoação de Chawola, onde ainda tinha a sua palhota) levou-os ao local no qual se encontravam 23, esqueletos de pessoas mortas durante a "Operação Marosca". Jorge Jardim fez um relatório desta visita para acompanhar as fotografias que ali se tiraram. Ficou assim confirmada uma das versões que havia sobre esta operação realizada por ordem do Comando do Sector "F" entre 16 e 19 de Dezembro de 1972. Este caso continuava assim coberto por  um manto de mistério.
Muitos dos interessados afirmavam que com tanto fumo a parar no ar, tinha de haver algum fogo. Os "Sombras" passaram assim a ter uma "escolta permanente" constituída por jornalistas de todo o mundo. O Comando-Chefe emitiu mesmo um comunicado informando que o sucedido se tratara de de um "incidente infeliz e corrente em guerra".Nada fora possível extrair dos  elementos da 6ª companhia de Comandos de Moçambique! Era agora ou nunca. A guerra estava a chegar ao fim e a resposta que repetiam era sempre: "Não temos ideia nenhuma do que está a falar ..." Finalmente tive a oportunidade de falar com o homem que tinha comandado a 6ª Companhia de Comandos de Moçambique "Os Sombras" naquela operação: O Alferes Miliciano Antonino Melo. Julgo que terá pensado que, com o com o fim da guerra a aproximar-se, não havia já qualquer razão para guardar segredo. 
Talvez tenha sido esta a razão para que naquele dia (domingo, 28 de Julho) me tenha sido dita a verdade. Os missionários tinham razão.

Houve um massacre em Tete em Dezembro de 1972. O verdadeiro número de vítimas nunca se saberá e o local não terá sido apenas Wiriamu. "Os Sombras" foram os responsáveis indirectos da morte de pelo menos 85 pessoas. Depois do acontecimento muitos choraram. Outros acusaram o falecido agente preto da DGS , Chico Cachavi. Todos me disseram que queria esquecer este infeliz incidente de guerra. Segundo a informação da PIDE/DGS, Raimundo, que comandava cerca de 250 terroristas na zona de Tete, tinha sido detectado num aldeamento perto da capital do distrito com o mesmo nome. O Comando do Sector "F" organizou então uma série de operações pelas várias aldeias dispersas na área do Regedor Gandar, a vinte ou trinta Kms  Sul do rio Zambeze. Era suposto que as populações terem sido enviadas para MPádua . 
Assim segundo informações ditas fidedignas, havia já pouca população na zona conhecida por Jowavo - Chawola - Wiriamu. Teve assim início a "Operação Marosca" em que tomam parte a 6º Companhia de Comandos de Moçambique. O Comandante  era o capitão miliciano CMD Gonçalo Fevereiro, de baixa no Hospital Militr em Lourenço Marques. De reforço às operações estava um grupo de combate do - BCAÇ17 de recrutamento local. Ao nível do exército,o comandante da operação foi o major
Aparício,segundo comandante do BCAÇ 17.
A operação teve início antes do nascer do sol. O major Aparício elaborou o relatório da operação depois do debrifing. Nele informava que tinha havido 20 mortos entre os elementos da Frelimo. Isto a 21 de Dezembro de 1973. Entretanto, no dia de Natal, o administrador do concelho de  Tete, que era amigo pessoal do major, alertou-o para o facto de ter aparecido no hospital um miúdo de nome António , que tinha dito à enfermeira irmã Lúcia  que fora ferido pela tropa e que era de Wiriamu, onde se encontravam muitos cadáveres por sepultar. Com esta informação da autoridade civil, o Comando do Sector "F" mandou chamar   o alferes Antonino Melo para se deslocar ao local com pessoal seu e enterrar os cadáveres, regando-lhes primeiro com gasolina. Para isso, seriam transportados de helicóptero apenas com o indispensável. Nem armas seria preciso levar, dado que a zona estava segura e que tudo deveria estar terminado por volta das 13 horas. O regresso seria efectuado pelo mesmo meio e seria usado o mínimo número de hélis possível. Um comando ia para a zona de combate desarmado? O alferes Melo ficou preocupado com  as ordens recebida dos Comando do Sector e resolveu alterar o plano. Seguiu bem armado e pronto para o que desse e viesse. Depois de muito esperar, e já perto do final do dia, os hélis não apareciam. Não tendo levado consigo um rádio, decidiu dar ordem para que os 27 quilómetros de regresso fossem percorridos a pé. Perto de um afluente do Zambeze, os homens caíram numa séria emboscada que, por terem desobedecido às ordens dadas pelo comandante do Sector "F", não teve consequências de maior. Estavam bem armados e capazes de responder ao fogo inimigo! Entretanto, depois de mais este episódio, apareceu o padre Ferrão a dizer que tinha falado com outro sobrevivente sa "Operação Marosca", de nome Vasco, que confirmava a morte de velhos, mulheres e crianças na última operações militares efectuadas a sul de Tete. Contou ainda que o autocarro (machimbombo) que passara na estrada principal, vindo do sul para Tete tinha parado ao marco 19 para trazer feridos do ataque contra populações indefesas sob o pretexto de auxílio aos guerrilheiros da Frelimo. Algum tempo depois de os padres Ferrão e Sangalo terem redigido e enviado ao Bispo de Tete um relatório sobre os dois  jovens tratados pela irmã Lúcia, esta foi foi transferida do hospital da cidade Para uma Missão em Nampula, dizendo que esta mudança seria boa para seu bem. Tanto a emboscada contra o alferes Antonino como a remoção da irmã Lúcia de Tete poderiam ser tentativas de fazer desaparecer os protagonistas deste drama.
Padre Sangalo
Padre Domingos Ferrão

A DGS informava superiormente a que a Frelimo controlava  cada vez mais elementos da população, não apenas nas áreas afectadas pelo terrorismo mas também nas zonas sem actividade operacional.
Segundo relatórios oficiais dedicados a Tete, os acontecimentos mais relevantes do ano de 1972 foram:

9 de FevereiroAtaque com lança-foguetes a uma coluna militar que fazia o reabastecimento a Cahora Bassa na estrada Tete - Songo.

8 de Julho: Autorização para que as forças da Rodésia entrassem em Moçambique na zona de Mocumbura - Bucho.

26 de Julho: Criação do Comando de Cargas Críticas, destinado a controlar todo o transporte de materiais para a construção da barragem.

13 de Setembro: Samora Machel anunciou a abertura de nova frente de combate no distrito de Mnica, o que significava que a Frelimo estava já a actuar perto de Changara, a sul dos rios Mazói e Luenha, mas muito longe da capital deste distrito Vila Pery.

14 de Setembro: Visita a Estima e Cahora Bassa do primeiro ministro Ian Smith, acompanhado por Ken Flower, director da CIO rodesiana.

30 de Setembro: Primeira operação das forças disfarçadas  como pseudo-frelimos ( treinados pelos Grupos Especiais Pára-Quedistas) para atacar bases do inimigo dentro e fora de Moçambique. Esta primeira actuação deu-se na zona de Monte Changa - Tete e resultou na captura de cinco guerrilheiros e respectivas armas.

9 de Novembro. Início de uma ofensiva generalizada da Frelimo na zona de Tete com esporádicas acções sobre aldeias isoladas e o assassínio de 42 regedores. Neste mesmo dia a Frelimo bombardeou a base da Força Aérea localizada a poucos quilómetros de Tete, no Matundo. Não havia uma presença continuada de elementos da Frelimo, mas utilizavam os diferentes itinerários, desarmados e misturados com os civis locais para obter apoios para futuras operações, 
 O objectivo da Frelimo era convencer as populações a abandonar os aldeamentos e voltar para as antigas palhotas onde havia terra mais fértil e mais fácil de cultivar e onde o gado se movimentava mais livremente. Por outro lado para as forças portuguesas era importante tentar estabelecer áreas livres de população para a intervenção da Forças especiais. Seriam zonas de fogo livre e foram também utilizadas com grande sucesso militar pelos americanos na guerra do Vietname. Foi neste complicadíssimo cenário que as forças e intervenção foram chamadas a actuar no Sector designado.
O Alferes Antonino Melo contou-me que:

Todos os soldados eram pretos e estiveram acampados durante algum tempo numa localidade onde havia uma aldeia com civis na qual os "Frelos" se confundiam com os aldeões.
O Alferes Melo com alguns dos seus homens
Podia-se dizer que este era o mais "quente" acampamento militar de toda a Zona Operacional. O Alferes, que cresceu na cidade da Beira, continuou:

Para sairmos do nosso acantonamento, os comandos só podiam escolher  dois carreiros que passavam a menos de 300 metros do aldeamento.
Sabíamos que terroristas eram mais que muitos por todo o distrito. Então tomei a iniciativa de avisar os aldeões para não darem assistência aos "frelos" e para que nos alertassem da sua presença ou passagem. Avisei também o chefe do aldeamento que caso os nossos militares sofressem mais mortos ou feridos, também ele seria responsabilizado . Claro que nos apercebemos que ele era um fanático apoiante da Frelimo.

De nada serviram os avisos do alferes Melo.Continuaram a aparecer minas anti-pessoal nos dois movimentados carreiros  que serviam de ligação entre o estacionamento dos Comandos e a zona da aldeia.

Durante um curto período de dez dias, a minha companhia sofreu onze baixas por ferimentos com minas. A última vez foi a 13 de Dezembro. Depois de termos efectuado a prisão  do chefe tribal no aldeamento Cebola, o grupo de combate comandado pelo furriel Santos Sousa foi alvo de uma emboscada na qual sofreu sofreu feridos graves e ligeiros. Havia conhecimento que o terrorista Raimundo tinha pessoal infiltrado no aldeamento em Mandié. Assim, três dias depois, o Comando do Sector "F" nomeou o major Aparício para comandar uma operação com o nome de código "Marosca" (velhacaria). Durante o briefing foi-nos dito que devamos actuar sobre uma zona situada a cerca de cinco minutos de helicóptero do marco 19 da estrada que liga Tete a Changara, para sul. Seríamos transportados por terra até ao local de apoio `operação onde ficaria o Comando Operacional e base temporária dos hélis que nos iriam transportar. Esta seria guarnecida pelos homens do major José Aparício da CCS do BCAÇ 17 de Tete. A instrução final do Comando Operacional foi a de que o nosso héli-assalto seria precedido de bombardeamentos da Força Aérea para que não existissem testemunhas!. Estas palavras desencadearam uma actuação violentíssima da nossa parte, talvez até desproporcionada , mas justificada na mente de alguns comandos pelos antecedentes sofridos pelos "Sombras"  nesta área.  Todos nós desejamos esquecer este infeliz acidente de guerra de que são responsáveis os que planearam esta operação ...

Suspeitava-se que os próprios aldeões colocavam minas para manter os nossos homens aterrorizados. Uma noite, um grupo nosso apanhou um civil a "plantar" uma mina num trilho que era normalmente utilizado por crianças do aldeamento para irem buscar água a um ribeiro. O Hospital Regional de Tete estava cheio de crianças estropiadas pelas minas colocadas por estes colaboradores da Frelimo. Tínhamos que arranja provas de que os aldeões apoiavam os terroristas. O tal civil capturado pelos meus homens foi interrogado mas não conseguimos prova suficiente de que havia relação entre o seu acto e outros que tinham causado feridos graves. Assim não obstámos a que o Chico da DGS, aplicasse os seus métodos de interrogação . Aqui começou um drama que terminou com homens meus a aceitar ordens directas do agente Chico Kachavi que, fardado e armado, gritava continuadamente: Mata tudo... É para matar tudo... São ordens do chefe!
Uma vítima das minas
O senhor deve compreender ... Os homens andavam debaixo de grande stress desde que verificaram  que o inimigo andava por ali  e se misturava  com os residentes civis dos aldeamentos ... Era uma guerra sem frente nem rectaguarda. Não havia forma de controlar o sentimento de vingança que os homens sentiam contra os terroristas. Para nós, quem os apoiava e ajudava também era terrorista.

Resolvi dar por terminada a entrevista com o alferes Melo e voltámos para junto do restante pessoal. O major Freitas preparava-se para repetir o seu discurso de despedida 

                                                                     ***

       ***

"Operação Despedida", viagem do Major Artur Freitas (Continuação)



O major Freitas preparava-se para repetir o seu discurso de despedida.
Não fiquei inteiramente convencido de que teriam sido mortos apenas 85 civis, porém, tinha a certeza de que o número de 400 mortos anunciado pela imprensa londrina era falso. 
Quando me despedi de comandante dos "Sombras" ainda lhe disse que um morto ou vinte mortos era a mesma coisa e que na vida tinha de haver sempre uma justificação plausível para tudo. Lembro-me também de, enquanto o major Freitas se despedia, observar as caras dos homens que estavam à minha frente. O mais velho tinha 26 anos de idade! Era difícil acreditar que tinham sido estes os protagonistas de actos de tanta violência contra o seu próprio povo.
Não havia medo naqueles olhares. Talvez alguns estivessem ansiosos pelo futuro das suas famílias. Fiquei convicto de que todos já tinham decidido o que fazer. Na hora da despedida , um deles ainda me disse Nós podemos fugir! Mas as nossas famílias não... Não sei o que fazer por elas ...
Não havia respostas a dar ... Como  muitos dos Comandos de Moçambique, também os da 6ª Companhia abandonaram a sua terra.

Foi já no final da tarde que o nosso triunvirato deixou a pista de Sussundunga em rota para o desejado descanso na cidade da Beira.

Domingo,
28 de Julho de 1974 

Embora a colónia se estivesse a desintegrar, o Hotel Moçambique velejava a toda a brisa, não deixando que o "vento adverso" atrasasse a sua viagem. Como se tratasse de um magnífico barco de cruzeiro se tratasse, não sentia as ondas tempestuosas contra o seu casco. Jovens senhoritas à procura de um bom futuro futuro marido, matronas da sociedade beirense tomando chá em lindas chávenas de porcelana chinesa ao estilo inglês, as caras de sempre sentadas ao balcão do bar, tudo se podia encontrar.
As Forças Armadas Portuguesas (com excepção das Forças Especiais que se mantiveram em total estado de alerta) deixaram de combater logo em Maio.Pelo contrário a Frelimo ordenou aos seus combatentes que redobrassem os esforços de continuar a guerra e não aceitassem um cessar-fogo antes do colapso total dos portugueses. Para tentar integrar todas as unidades no "comboio da paz", a Força Aérea Portuguesa tinha gasto dezenas de horas de voo com a "Operação Panfleto", deitando milhares folhetos de papel, montados e impressos pela 5ª Repartição do QG em Nampula. Nesses folhetos era aclamado o fim da guerra e apoiadas todas as iniciativas de contacto que viessem estabelecer um clima de paz entre a Frelimo e as Forças Armadas.
As principais vítimas deste "ataque" de propaganda eram os  próprios militares portugueses, muitos dos quais foram aliciados a deixar-se fotografar ao lado dos frelimos, para benefício dos Serviços de Imprensa e Informação Militares.
Nova Coimbra, (Mevchuma) no Distrito do Niassa
Em Lisboa, os novos chefes da guerra estavam sem dúvida alguma muito contentes com isto tudo. A Frelimo preparava-se para receber as rédeas do país e como tal, devia dar a impressão de estar em condições de o vir a fazer. Do ponto de vista puramente militar, Moçambique estava agora completamente perdido para Portugal.
Estávamos nós a conversar sobre este e outros assuntos relacionados com a retirada das forças portuguesas, quando reconheci, a uma certa distância da nossa mesa, sentado a um canto, um alferes. Conhecia-o apenas por Tello Gomes e, como toda a gente sabia-o ser um fervoroso membro do MFA Formado em sociologia pelo Instituto Superior Ultramarino, durante o Governo de Transição  colou-se ao primeiro-ministro Joaquim Chissano e, depois da independência, trabalharia para o Departamento do Trabalho do Governo de Samora Machel. O alferes Gomes não demorou muito tempo a reconhecer-me e logo que terminou de jantar levantou-se e dirigiu-se à nossa mesa. Venha comigo meu amigo. Faça favor.... Tenho algo para lhe dizer... mas em privado. 
No círculo o Alferes Telles Gomes
Gostaria que fosse portador da seguinte mensagem para determinada pessoa em Nampula, afirmou. Depois de voltar a certificar-se que ninguém o estava a "espiar" disse-me o nome da pessoa. Logo compreendi que era uma tentativa de intoxicação com a finalidade de o aceitarem em certos círculos como reaccionário anti-Frelimo. Passei a descartar tudo o que me disse ali para a frente mas de qualquer maneira gostei da sua história.
Isto é muito importante, segredou-me: Transmita ao nosso contacto que está tudo preparado. Jorge  Jardim e os seus homens estão neste momento preparados e aguardando no Malawi com um verdadeiro exército para dar início à operação de expulsão desta terra dos odiados frelimos. Só aguardam um catalisador para iniciar a reacção e você sabe perfeitamente quem vai ser o catalisador: os Comandos. E terminou Giancarlo, assegure-se que a mensagem é transmitida. Até sempre!.
Estava ali sentado a jantar com os comandantes do Batalhão de Comandos de Moçambique, na companhia de Luís Correia, o homem mais bem informado de Moçambique,, e Telles Gomes queria transmiti-me os planos em que os Comandos eram os supostos catalisadores da contra-revolução.
Regressei à mesa nada dizendo sobre este muito mal jogada cartada do Telles Gomes...
Para muitos era fácil, possível, e até mesmo desejável, acusar Jorge Jardim de tudo o que estava a acontecer nestas paragens da África Austral. Mas quem era afinal o pai da Carmo e chefe do clã Jardim, residentes no Dondo.

Segunda-feira
29 de Julho de 1974 

 O Notícia da Beira desse dia dava destaque de primeira página de primeira página à notícia que a Frelimo entrara triunfante na província da Zambézia e, depois de elogiar a acção deste movimento, o jornal diário da segunda cidade de Moçambique, agora totalmente controlado por homens afectos aos "democratas" e sob a pressão do MFA local, dizia que devido à bravura e sapiência dos dirigentes da Frelimo, as forças progressistas podiam agora assegurar a paz e tranquilidade das populações da Zambézia que continuariam a acompanhar com dedicação no seu trabalho. Pela primeira vez duvidei das palavras utilizadas na reportagem.  Confirmei a determinação dos novos "donos" do poder em "branquear" os homens a que outrora chamara terroristas. Este movimento tinha conseguido impor a sua vontade através do MFA que, manipulando as autoridades legalmente constituídas, conseguia destruir por dentro toda a autoridade que restava ao Governo e aos militares. Coo esta bem executada operação conseguiram acabar com os restos de boa-vontade das Forças Armadas para a defesa  das decisões de Lisboa. 
Apanhados como moscas na teia de aranha por eles próprios tecida, o trio formado por Mário soares, Almeida santos e Álvaro Cunhal, estava preparado para fazer tudo o que fosse necessário para largar Moçambique. As tropas já estavam paralisadas e as purgas  que se seguiram ao golpe passavam agora para um nível estritamente pessoal. No futuro, o os oficiais que não apoiassem o Movimento seriam removidos, demitidos e, quem sabe, até presos. Se nada fosse feito, Moçambique entraria rapidamente em colapso.
Carmo Jardim tinha regressado do Malawi. Nessa noite tive oportunidade de jantar com ela. Como sempre mostrou-se atenciosa e agradável mas de todas as vezes que mencionei o nome de seu pai, reagiu com um ar de tranquilidade e inocência desarmantes. Sim, talvez estivesse no Malawi. O que fazia ou onde se deslocava não era preocupação sua ou minha! Não havia necessidade em continuar a conversa por este prisma. A companhia era agradável, o que para mim chegava.

Carmo Jardim a receber as asa "GEP Honorário"
                                   
                                       CAPÍTULO 7   

Regresso a Montepuez via Beira e Nampula
Incidentes no Lumbo e Ilha de Moçambique
Omar uma vergonha para o Exército

Segunda-Feira,
05 de Agosto de 1974

Desembarcámos no aeroporto da Beira era já tarde. Logo que chegámos ao hotel telefonei para a maravilhosa Carmo Jardim que seu pai se desdobrava em viagens entre Blantyre, Dar-es-Salan e Lusaka, tão rapidamente e de contínuo que era difícil saber onde se encontrava.
"Ele viajava", disse-me Carmo, "para tentar arranjar apoios para o seu projecto de futuro para Moçambique. O que Jorge Jardim desejava era que o novo Governo tivesse metade  de elementos da Frelimo e que a outra metade fosse constituída por elementos por si escolhidos entre as forças vivas de Moçambique que nele acreditavam. 
(...)
De certa maneira, aquilo que Jardim queria fazer era uma boa ideia. Faltava-lhe porém o sentido de tempo e oportunidade política.Houve um período em que, com os fundos secretos recebidos do Ministério da Defesa, poderia ter arregimentado um exército nacional moçambicano capaz de confrontar a Frelimo. No fim de Julho de 1974 era já tarde e irrealista.
(...)
Vim a saber poucos dias depois que o MFA estava já a negociar  com a Frelimo a entrega do novo país a Samora e Marcelino dos Santos.
Dormimos na Beira. Na tarde do dia seguinte voaríamos para Quelimane. O Major Freitas tinha familiares que ali viviam há muitos anos e era em Quelimane que estava estacionada a 4040ª CCMDS, do Capitão Victor Caldeira. 


(...)
Mais tarde jantámos com o capitão Victor Caldeira e pela sua conversa fiquei esclarecido. Tinha-se transformado em mais um apoiante das doutrinas do MFA para Moçambique. Tal como centenas de outros oficiais, apoiava a entrega incondicional do território exclusivamente à Frelimo.
(...)
No dia seguinte completámos a visita de trabalho em quatro horas. Apanhámos o comboio para Nampula, onde chegámos na tarde de 7 de Agosto.
Era nossa intenção continuar a viagem para Montepuez ao final desse dia. Mas assim não foi. À chegada à aerogare, um capitão do Estado-Maior contactou o major Freitas e minutos mais tarde vi-o sair num carro preto. Parece que há problemas no Lumbo, disse-me antes de desaparecer.
(...)
De volta ao hotel Morgado, encontrei os meus companheiros na recepção. Disseram-me que o general mudara os planos e que era necessário que seguissem de imediato para a Ilha de Moçambique onde ocorriam problemas para os Comandos da 2045ª, que ali estava em descanso. Iriam para a Ilha no carro do General Barbosa. A 2045ª tinha chegado da Beira na segunda-feira, 5 de Agosto, e hoje, quinta-feira, já tinha arranjado complicações com civis, disse-me o major num tom de voz ácido . Mas talvez até não seja culpa deles. Terminou.
                                    Montepuez, 12-11-1973  O Alferes Milº Rijo                                         a receber o seu crachá de Comando da 2045ª
Aparentemente, um numeroso grupo de simpatizantes do MFA esperou na estrada de ligação ao centro de repouso das tropas Comandos, situado na Fortaleza de São Sebastião, e à sua passagem apedrejou as viaturas militares que as transportavam. Embora tivessem recebido ordens superiores para não reagir às provocações, os militares ficaram furiosos. Saltaram das viaturas e atacaram os agressores com tanta violência que em menos de dez minutos havia dois mortos com arma branca, Dezasseis civis foram transportados para o hospital apresentando pernas e braços partidas. Vários estabelecimentos foram danificados até a ordem ser restaurada. 
Tendo em conta o momento em que se estava a viver e o estado psicológico dos comandos, os resultados de tal provocação poderiam ter sido muito mais graves. Mesmo assim, o major Freitas estava furioso disse-me mais tarde: Logo à chegada contactei um comando meu conterrâneo. Pedi-lhe que me seleccionasse meia dúzia dos mais exaltados para parlamentarmos junto ao Café Sporting. Na Fortaleza reuni a companhia e fi-los entender os riscos de qualquer incidente degenerar numa confrontação racial incontrolável. Só depois fui ao encontro dos Frelimos. Estes exigiram que a reunião decorresse em campo aberto. Contei-lhes da minha conversa com os meus homens e recomendei-lhes que fizessem o mesmo com a sua canalha. Responderam-me que já estavam fartos de conversa e que nada fariam. Retorqui que à menor bernarda formaria a companhia em linha e que eles só parariam no Índico. Lá se comprometeram a amadurecer estas santa palavra! Só que o bimbo do governador resolveu falar às massas, comigo ao lado. Fiquei estarrecido com o seu paleio de chinela no qual chegava a argumentar que até ele  e a mulher tinham os seus desaguisados... Mas o pior de tudo é que no final, o governador exigiu-me que trocasse a companhia. Devolvi-lhe que isso para mim  estava absolutamente fora de causa. Liguei ao general Orlando Barbosa e comuniquei este inesperado desenvolvimento. Recomendou-me que me rendesse ao compromisso assumido pelo governador sobre a retirada da companhia. Deixei salvaguardada a minha posição quanto às possíveis consequências para a população branca, a partir daí entregue a si própria.
General Orlando Barbosa
Não fosse a rápida interferência do major nos acontecimentos na Ilha de Moçambique e os problemas poderiam continuar,  tomando até  quem sabe outras proporções. Mas logo que lá chegaram até os mais indisciplinados  soldados da 2045º aceitaram todas as ordens com disciplina e sem reclamar. Como "punição", esta era quase "sugestão" do comandante-chefe. Freitas concedeu-lhes o descanso operacional e deu-lhes "ordem" para regressarem a Montepuez.
(...)
Mas o dia ainda não tinha terminado! Foi depois da chegaa do Lumbo que soubemos mais detalhes sobre a tal história de Omar/Namitil.
(...)
Omar era um antiga povoação maconde situada a poucos Kms do Rio Rovuma na fronteira com a Tanzânia e a cerca de 75 Kms a noroeste de Mueda. Logo a seguir à grande operação "Nó Górdio", o Comando-Chef, tentando que o inimigo não invadisse o planalto central dos macondes e viesse assim a declarar uma independência parcial da zona, iniciou a "Operação Fronteira", baseada em cinco ou seis quartéis fortemente reforçados e paralelos ao rio Rovuma aproveitando Omar-Namatil,Nangade, Pundanhar e Tartibo 


A guarnição de Omar estava sujeita a frequentes ataques de elementos que, vindos da Tanzânia, se dirigiam à Base Beira.
(...)
Estava estacionada neste inacessível local a 1º companhia do BCAV. 8421 de Mocímboa do Rovuma, reforçada por um pelotão de Artilharia. Normalmente estavam cerca de 160 homens sob o comando do capitão Rogério Baldaia, que estando ausente fora substituído pelo alferes José Carlos Monteiro, um jovem de 22 anos.

Alf. Monteiro comandante da 1ªBCAV 8421
                                                                                                                                                                                                              Como é óbvio, a versão que nos contaram era ligeiramente diferente. 
Durante a noite, um grupo armado da Frelimo uma operação bem planeada para registar em filme a "rendição" de Omar. Apareceram do lado da pista de aviação com um megafone e começaram a chamar pelo nome do alferes comandante convidando-o vir "parlapiar" com eles pois o cessar-fogo tinha sido declarado à 00h00 desse dia. Desarmado e nervoso, o alferes Monteiro hesitou. Depois de um dos soldados se ter oferecido para ir falar com o inimigo (e talvez desejoso de provar que era tão corajoso como o seu subordinado) e sempre  apoiado por outros graduados, foi até à pista, sem qualquer plano de segurança, para se encontrar com os "frelos" e confirmar as tréguas que lhe vinham "oferecer"! Encantados com esta oportunidade, os frelimos solicitaram que o restos do pessoal viesse também para a pista  para juntos celebrarem o acontecimento. Tinham previamente preparado um assalto pela cancela da rectaguarda que dava para a floresta do lado oposto à pista. Depois de terem tomado de assalto o pequeno mas defensável quartel. acenderam os holofotes que traziam para poderem filmar esta  armadilha que levou à entrega de toda a companhia ao inimigo. Não foi necessário disparar um único tiro. Depois de terem levado os  prisioneiros para vários acampamentos da Frelimo dentro de Moçambique. passaram a fronteira do Rovuma e internaram-se na Tanzânia.

Os prisioneiros da 1ª do BCAV 8421
A caminho de Nachingwea na Tanzânia

Ninguém sabe o que teria acontecido se o pessoal não tivesse acompanhado o alferes Monteiro na sua surpreendente atitude de se "entregar" ao inimigo. Como ouvi dizer a alguns oficiais dos Comandos : Falta de bom senso comum... qualquer oficial digno desse nome nunca teria saído do quartel de noite e muito menos teria permitido qualquer diálogo entre os seus homens e a Frelimo. Estavam totalmente isolados e deviam estar em alerta máximo.
Não houve traição em Omar mas houve uma total incompetência. A Frelimo tinha preparado a esta tropa  "fandanga" uma bem "engendrada" armadilha!
Já fora do território utilizaram transporte militar do Exército da Tanzânia para os levar a Nachingwea,  base central da Frelimo a cerca de 100 Kms da fronteira de Moçambique. O Comandante-Chefe General Orlando Barbosa (grande conhecedor de Cabo Delgado onde tinha servido vários anos como coronel e brigadeiro), tomou da "barracada" de Omar horas depois do rapto dos seus homens. Totalmente consciente do impacto que este imbróglio teria nas Forças Armadas e na moral dos combatentes, tentou montar uma operação de resgate, ainda dentro de Moçambique, logo na tarde do primeiro dia. Para tal, e devido ás implicações que esta operação teria, solicitou a Lisboa autorização urgente para actuar.

 1 de Agosto de 1974. Soldados da Frelimo a festejar
o aprisionamento da  guarnição de Omar/ Namatil
O plano era o uso de uma força operacional constituída por Pára-Quedistas que batesse a zona ao longo da fronteira com a Tanzânia e que interceptasse os militares portugueses ainda no território moçambicano.
Lisboa não deu  resposta imediata e as horas foram passando... O General enquanto aguardava autorização, ia alterando os planos conforme as informações que lhe chegavam. Os serviços da CHERET, onde estava o capitão Aniceto Afonso, do MFA conheciam há muito tempo os códigos usados pelos frelimos, como eram conhecidos os operadores rádio da Frelimo, e tinham acesso a todos as suas mensagens.
Ao sexto dia, Lisboa, tendo conhecimento que o grupo jáse encontrava em território da  Tanzânia , respondeu ao General Barbosa pela negativa!
Tinha levado seis diasa responder ao "velho" general que queria apenas salvar a ainda honra do "convento"!
Horas antes da recepção desta mensagem, o major Freitas, comandante do Batalhão de Comandos de Moçambique, ofereceu-se voluntariamente para ir à Tanzânia com os seus Comandos e efectuar o resgate dos homens de Omar

Vista aérea do aquartelamento de Omar.

(...)
Fardados com uniformes da tropa da Tanzânia, os humilhados prisioneiros capturados em Omar, foram apresentados pelos dirigentes da Frelimo à imprensa internacional.
(...)
Só depois de terem a confirmação de que a 1ª do BCAV 8421 se encontrava na Tanzânia é que foram recebidas notícias de Lisboa. Por estas ficava-se a saber que a situação estava a ser acompanhada pela direcção da Frelimo. A Frente de Libertação de Moçambique necessitava de jogar esta catada psicológica, apresentando estes homens e um pelotão de tropas açorianas como os únicos prisioneiros da Frelimo. 
(...)
Só depois desta "clarificação" é que foi dada autorização para a Força Aérea bombardear Omar e destruir as armas pesadas portuguesas e sul-africanas que ali foram abandonadas.

 Luíz Correia em contacto com a Mlitary Intelligence sul-africana

O major Freitas abandona Moçambique.

Luís Correia e o sr. Marques
proprietário do Hotel Portugal em Nampula

Do diário de Luíz Correia:

Quando regressámos a Nampula no helicóptero alugado pelo cônsul da Alemanha,  Sr. Wilhelm Von Keudell, a primeira acção do diplomata de Bona foi telefonar para Lourenço Marques e falar com Uwe Hansen, seu "vice". Ao "número dois" do Consulado pediu que se estabelecessem urgentemente contactos com a Alemanha e, através de "canais superiores", com o seu "amigo pessoal " K. Waldheim, secretário geral da Nações Unidas, para o alertar acerca da grave situação em António Enes.
O cônsul queria fundamentalmente criar o ambiente para "activar" um plano de evacuação para todos os alemães que há anos ali eram residentes. Com esta jogada de "mestre" já em andamento, dirigimo-nos ao QG. No caminho dei-lhe a dica de solicitar a ajuda do major Mário Tomé e dos seu colegas do MFA.

18H15

Encontrámos-nos como major Mário Tomé não nos recebeu no Comando-Chefe mas sim numa vivenda mais abaixo, decostas para a estátua de Neutel de Abreu e a minutos da messe. Aqui (onde só havia tipos do MFA), todos entravame saiam sem respeitar a privacidade da reunião. O Tomé já tinha sido entrevistado pela TV alemã . Seria talvez a delegação do MFA em Lisboa.
O  major Tomé não teve qualquer resposta útil ou capaz para  dar ao governo Alemão. Prometeu que os Comandos de Montepuez, agora transformados em "bombeiros" iriam resolver este motim O cônsul alemão Wilhelm Von Keudell, não ficou convencido.
O major acrescentou que dentro de dois ou três dias haveria um novo comandante em Montepuez e assim poderiam contar cem por cento com a colaboração desta unidade na resolução de todos os problemas até à "passagem de testemunho" ao Governo da Frelimo!

Major Mário Tomé
Ao ouvir estas palavras saídas da boca do representante do MFA, 
Wilhelm Von Keudell, , ex-capitão da Wehrmacht na Frente Russa em 1943 e agora cônsul-geral da República Federal alemã, ficou chocado. Vi os seus olhos fecharem-se como uma lâmina e as mãos contraírem-se até os dedos ficarem roxos!
(...)
O major Tomé tentou acalmá-lo e, com a sua natural candura, pôr água na fervura: Senhor cônsul, não esteja tão preocupado... Não é necessário ... A Frelimo estou certo terá soluções para tudo!
Penso que o Mário Tomé sabia que os representantes mais qualificados do MFA tinham estado num encontro "secreto" em Dar-es-Salam, entre 30 de Julho e 2 de Agosto, Ernesto Melo Antunes e Almeida e Costa, da Marinha de Moçambique, discutiram e redigiram a base do acordo com a Frelimo. António Enes dá-se nove dias depois. O cônsul deu por terminado o encontro e pediu-me ajuda para regressar rapidamente a Lourenço Marques.

Quarta-Feira
14 de Agosto de 1974
(...)
Tinha visto os majores Artur Freitas e Manuel Belchior em Nampula. Perdi o seu o seu rasto por causa de António Enes. Fui com o alemão. No aeroporto o Freitas disse-me: sinto-me muito feliz porque vou sair de Moçambique antes do colapso total da indisciplina. E acrescentou: O  Giancarlo está bem em Montepuez, passando todos o tempo que pode a escrever o capítulo final desta trágica saga,..
Foi um momento triste. Até sempre Artur... Vou para Vila Real e para Amarante, foram as suas últimas palavras antes de embarcar! Jorge Cruz comentou comigo depois: Mais um homem bom e um militar perfeito se vai embora. É tão africano como metropolitanos.

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Os correspondentes estrangeiros baseados em Lourenço Marques, cujo número era agora extremamente limitado, não estavam autorizados a visitar a zona de António Enes. Assim, este e outros "incidentes graves" que tinham lugar um pouco por toda a parte do Norte de Moçambique, ficaram sem cobertura da imprensa internacional. Em Montepuez, o rádio da 1ª/74 CMDS tinha-me posto a o corrente do que se passava. Ficava doente só de saber que o resto do mundo nunca seria informado, mas nada podia fazer...
O controlo de toda a informação estava nas mãos dos elementos escolhidos a dedo pelos militares ou pelos representantes encapotados da Frelimo. Sendo o único jornalista no Norte, recebia muitas informações. Contudo, deixei de as enviar ao meu editor. Se o tivesse feito correria graves riscos e poderia até ser expulso do país, coisa que não estava nos meus planos. O meu objectivo era recolher informação para o livro que estava a escrever.
Neste momento, esta era a minha principal preocupação. Em Moçambique, a única forma de "sobrevivência" era não dar nas vistas e movimentar-me sempre acompanhado pelos militares dos Comandos.
As mais importantes publicações publicações moçambicanas já estavam controladas por elementos dos  "democratas e Moçambique". Publicavam apenas notícias favoráveis à Frelimo e faziam-no com o apoio dos elementos colocados pelo MFA nas suas redacções. Exemplo desta nova censura é o caso do major de Artilharia e ex-comandante do CICA, um tal Sousa Cruz, que foi logo depois do 25 de Abril colocado no Notícias de Lourenço Marques como representante das Forças Armadas.


Tempo era mais uma a cantar laudas ao MFA. Tornou-se, aliás, o orgão oficial daqueles que atacavam e achincalhavam as Forças Armadas com uma série de artigos que insistiam na tecla dos "massacres" cometidos pelos Comandos, afirmando a existência de provas que indicavam que Wiriamu não teria sido um caso isolado mas um dos muitos que justificavam o Tribunal de Guerra. Num artigo publicado publicado um pouco antes dos acordos de paz, o Notícias pedia que todos fossem julgados e condenados de acordo com os actos praticados.
E os "incidentes" de António Enes?. Estes nunca apareceram na imprensa moçambicana. Também nunca mais se ouviu falar das outras mortandades que passaram a ser "o pão nosso de cada dia" para as indefesas populações  civis, antes e depois do cessar-fogo acordado para as zero horas de 8 de Setembro. 

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Ao mesmo tempo que os dois grupos de combate da 1ª/74 CCMDS estavam destacados em António Enes e Nampula, o comandante do Batalhão era confrontado com um foco de agitação no interior do seu aquartelamento. Decorria aquilo que poderia ter sido o décimo e último curso de Comandos em Moçambique.
O major Freitas tivera que decidir sobre o destino a dar aos 180 "novos recrutas" que estavam a meio  do programa de formação Comando. e que constituiriam 2ª/74 CCMDS, a décima companhia a ser formada com elementos formados com elementos locais.Logo depois do golpe, e antes dos "voluntários" chegarem a Montepuez, a constituição e necessária preparação destes tinha sido motivo de discussão entre o comandante do Batalhão e do Centro de Instrução dos Comandos. Suspeitava-se que mesmo antes de terminarem o curso e serem enviados para operações, a guerra iria parar. Como se veio a provar, a guerra tinha acabado, de forma unilateral! Assim, entre 1 de Julho e 8 de Setembro (quando o cessar-fogo entrou oficialmente em vigor), houve um período de 70 dias no qual os soldados portugueses só podiam defender-se depois de feridos ou feitos mortos a seu lado. Claro que os guerrilheiros souberam tirar proveito do "voluntário" colapso do adversário!.
Foi então que o capitão António Borralho e os outros instrutores deram conta ao major Freitas do desinteresse que havia na continuação do curso.
Cap. CMD. Teófilo Freitas
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Foi então que o capitão António Borralho e os  outros instrutores deram conta ao major Freitas do desinteresse que havia na continuação do curso.
"A maioria dos instruendos, e até nós instrutores, não encontra qualquer justificação para prosseguir com a instrução, visto os comandos já formados e operacionais nas várias companhias não estarem a ser utilizados contra a Frelimo" E continuou: "Estamos certos que o senhor comandante compreenderá e que, mesmo considerando a forma pouco digna como lhe apresentamos este assunto, esta justifica-se pela necessidade que temos de lhe comunicar que o curso deve ser dado como incompleto".
Os instruendos eram todos moçambicanos e, embora o major Freitas estivesse visivelmente desgostoso com a sua atitude de não quererem receber o crachá Comando, compreendia a posição dos homens, justificadas pelas possíveis represálias e perseguições que poderiam exercer sobre este pessoal os novos senhores de Moçambique.

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Entretanto o major Freitas empenhava-se na sua desmobilização e no seu ingresso na vida  civil. A resposta das entidades superiores ainda não tinha chegado e já o major recebera instruções para regressar a Lisboa no prazo de 48 horas. Estávamos a 12 de Agosto de 1974.
O abrupto encerramento do curso provou que até o bastião dos Comandos em Moçambique se desmoronava. Mesmo sabendo que se ia embora antes do fim, o major Artur de Freitas sentia-se perseguido por um pensamento: que futuro esperava os seus homens quando o país fosse da Frelimo?.
Quando recebeu ordem de marcha, sem qualquer menções feitas em nome do seu pessoal, o major Freitas ficou destroçado com a atitude do Estado Maior e do pessoal que deveria intervir na solução do problema. Estaria esta pressa em trazer o major Freitas de regresso a Portugal relacionado com o seu desejo de assegurar o futuro dos seus homens que iam ficar em Moçambique? Durante a primeira semana de Agosto, as suas preocupações tinha não só sido expostas ao general Orlando Barbosa como tinha sido feita, através e vias competentes, uma exposição do assunto.
Eu tinha a certeza que o queriam ver pelas costas o mais depressa possível! Nessa noite, nem ele nem o Belchior dormiram. Ficaram sentados no gabinete do comandante passando em revista toda a situação e vendo o que ainda fazer para solucionar o problema. Logo que amanheceu, as suas caras eram o espelho da derrota no último combate. Decidiram ainda ir a Nampula onde pessoalmente apelariam por uma última vez junto do general Barbosa. Saíram sem qualquer resultados..
No QG, Freitas e Belchior deram de caras com Luís Correia que vinha a entrar.... A conversa que tiveram foi muito breve, mas despertou a curiosidade...

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O Coronel Souza Menezes era um bom conhecedor de Nampula, onde tinha anteriormente prestado serviço. Quando se deu o 25 de Abril, Menezes era professor , no Instituto de altos Estudos Militares. Colocado de novamente em Moçambique, aguardou pelo final das aulas até regressar a Nampula (na última semana de Maio) para substituir o brigadeiro João Correia que estava de volta a Portugal. Pouco a pouco, Menezes foi tomando as rédeas do comando e, mesmo com o MFA a funcionar em pleno, era ele quem tomava realmente todas as decisões. Em Setembro, com a chegada de Victor Crespo a Moçambique, Menezes passou a ser de facto o comandante militar supremo e transferiu o QG de Nampula para Lourenço Marques. Todas as decisões que Menezes tomava dispensava o aval prévio do MFA. Por esta altura, ele era já o mais qualificado elemento do Exército no MFA de Moçambique.

O Coronel Manuel Souza Menezes
                          
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Na noite de 12 de Agosto, quando o major Freitas e o seu colega Manuel Belchior se fecharam no gabinete do comandante, chegou a Montepuez a notícia que um numeroso grupo de elementos "desconhecidos" estavam a aterrorizar os civis negros nas imediações da aldeia de Muicamela, a cerca de 35 Kms de Montepuez. 
Oa comandos não estavam autorizados a actuar. Todavia, como se tratava de um ataque a populações civis, uma patrulha de reconhecimento partiu no dia seguinte para o local.

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Quando chegámos a Muicamela, a aldeia estava deserta. Era evidente que os habitantes tinham fugido a tempo de não serem chacinados. O único sítio onde poderiam estar a salvo era no interior do mato serrado. O estado em que encontrámos o local indicava que os atacantes procuraram destruir tudo o que encontrassem pela frente, não deixando ninguém com vida.

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Outra das notícias que recebemos via rádio nesse mesmo dia foi especialmente triste. Comandos da 4040ª, tinham sido mortos por elementos da Frelimo. Logo de manhã, metade da companhia agora acantonada em Quelimane recebera instruções do QG  em Nampula para se encontrar com elementos da Frelimo que tinham aceite o cessar-fogo.
Estes ex-guerrilheiros fizeram saber que aguardavam pela chegada de elementos militares e que os escoltariam ao local do encontro, situado à saída da cidade costeira, para juntos entrarem em Quelimane. Não tendo outra alternativa senão obedecer às instruções recebida, um grupo de comandos saíu para o local indicado na mensagem. Em vez de ser bem recebido, os homens da 4040ª foram emboscados por um bando de "frelos" mesmo antes de conseguir escapar. Sofreram 3 mortos e seis feridos.
Na mesma altura, e graças à propaganda do MFA e às ordens que chegavam do QG, alguns dos melhores elementos das tropas de elite continuavam a morrer nos matos do Norte sem que tal transpirasse cá para fora.
Mas Os "Lordes" da CCMDS 4040ª não se iam esquecer das suas baixas e no momento oportuno tirariam a "desforra" à frelimo.


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A meio de Agosto, os fazendeiros brancos que trabalhavam a fértil terra das províncias nortenhas de Moçambique, entraram em pânico. Depois de aguentarem as vicissitudes de dez anos de guerra  tinham já perdido a pouca confiança que lhe restava no Governo. A cada dia que passava mais e mais colonos a Montepuez, procurando a segurança dos milhares ali estacionados. Quando chegaram não quiseram acreditar no que ouviam e viam. O Batalhão de Infantaria ali aquartelado nada fazia para suster os actos de terrorismo que  todos os dias se multiplicavam. Resolveram então confrontar o comandante do Batalhão chamando-lhe cobarde. Armados com as suas caçadeiras e carabinas de caça, inúteis contra as  Kalashnikov e Simonov dos guerrilheiros, e verificando que aqueles militares não queriam sair  para o mato, exigiram ameaçadoramente que as G3 lhes fossem entregues. Eles próprios acabariam com o "grupo terrorista" que actuava na zona,
Eram homens desesperados que não sabiam que o Batalhão de Infantaria e os Comandos tinham recebido ordens muito claras para deixarem de actuar contra o "inimigo". Como é que esta gente, perdida nos confins de Moçambique e com a vida a desmoronar-se, podia alguma vez compreender ? Os homens do MFA estavam preparados para os sacrificarem a todos se tal fosse necessário para salvar os acordos de cessar fogo que deveriam ser assinados antes do fim do mês em Lusaka e Dar-es-Salam
                                                                                                                                               
Quarta-Feira
14 de Agosto de 1974
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Em Montepuez, o major Manuel da Glória Belchior caiu doente. Uns diziam que sofria de malária . Ou seria medo? Embora se dissesse tratar-se de puro stress, a verdade é que ninguém invejava a sua posição. Com a partida do Freitas, Belchior subiria a comandante do Batalhão de Comandos. E não só herdeiro das tradições mas também de uma série de problemas de difícil resolução que com certeza não compensavam a sua promoção a major. Bem no centro do caos civil e material que alastrava por todo o território.  Belchior já compreendera que Montep ez não seria mais o lugar "sagrado" que fora até então. Por enquanto, exceptuando o pequeno episódio dos "rebeldes da 2045ª CCMDS , não tinha havido insubordinação entre os Comandos.Bastava porém olhar para Nampula para verificar desde o 25 de Abril, o que era a verdade de ontem passara a ser a mentira de hoje. Qualquer capitão do MFA se permitia dar dicas aos oficiais superiores e fazer participações à comissão central, que logo considerava estes desafectos aos princípios revolucionários, procedendo ao seu saneamento "sumário".
No seu regresso do Lumbo, o major Freitas viu-se obrigado a "punir" um soldado comando da 2045ª. Disse-me o comandante do  Batalhão:

Esta companhia, sendo comandada pelo alferes Triunfante, nunca conheceu capitão. Estava eu no meu gabinete quando me apareceu ele a dizer que os seus homens lhe garantiram que se o soldado fosse punido, atirariam os cráchas para a parada. Despachei o alferes porta fora, mandando-o imediatamente formar a companhia depois  de lhe garantir que a punição era um ponto assento e que tinham batido à porta errada. Percorri com o sargento ajudante Carvalho as fileiras, indagando um a um o que se propunham fazer. Só três falaram.  Responderam que fariam o que fizessem os outros. Resultado: depois de quatro punições e expulsões do Batalhão... amigos como dantes.
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Quarta-Feira
14 de Agosto de 1974                                           
Aeroporto de Montepuez

O Batalhão de Comandos está formado e apresentava armas ao major Artur Teófilo da Fonseca Freitas que embarcava para a primeira etapa da sua viagem de regresso a Lisboa.
O vínculo que se tinha estabelecido entre o comandante e o pessoal era tão forte que, quando ele finalmente se dirigiu para o avião, não havia mais nada a dizer. Eram momentos de recolhimento, tristeza e dignidade. 
Aqueles homens despediram-se em uníssono, batendo os tacões das já usadas botas de combate e permanecendo em sentido até o avião levantar voo.
O seu comandante regressava a Lisboa para continuar a carreira militar no Norte de Portugal. Triste, não quis aceitar a derrota que ele e tantos outros não mereciam. A sua frustração era visível para mim, que o tinha como um amigo. Mas o que mais me preocupava era o facto de ele não ter recebido uma resposta aos apelos feitos em nome dos "seus" comandos moçambicanos. E isto tinha desmoralizado o meu amigo...
Na noite anterior tínhamos tido uma breve discussão. Perguntei o que ia fazer para o aquartelamento de Vila Real onde tinha sido colocado.
--Vai correr tudo bem -- disse-me. -- Pelo menos  tenho a possibilidade de descansar.
-- O que vais dizer à tua mulher, Artur?
-- Que a guerra acabou!
-- E às crianças, quando elas te pedirem para contares as tuas "aventuras africanas" ?
-- Vou dizer-lhes para não fazerem como eu fiz
-- Vai-lhes dizer que perdeste a guerra?
--Meu amigo eu sou uma pequena roda numa grande máquina... e como tal, eu não perdi a guerra -- continuou com convicção, -- Os que perderam a guerra foram os milhares de mortos. Perderam-na com a sua morte inútil que para nada serviu. Não havia um objectivo claro e eles morreram. Vão ser todos esquecidos... Como esta guerra, que brevemente ficará no esquecimento.
-- Acreditas realmente, major Freitas, que eles morreram sem qualquer justificação válida e objectiva?
-- Sim, Giancarlo! É isso é isto que eu sinto neste momento!
Dei-lhe um forte abraço e abandonei o seu gabinete. Estava tão emocionado que não pude continuar a discussão.Afinal, eu nem era português, nem militar, e não se ia perder um comandante mas sim um amigo.
Quando em finais de 1974 estive detido na Beira, respondeu à missiva que lhe enviei para Vila Real através de um amigo: Giancarlo, coragem! Nunca te esqueça que tu eras um membro da nossa grande família. Terminava dizendo: Tu és um Comando

Portugal is preparing to abandon Mozambique
"Portugal está a preparar-se para abandonar Moçambique". Eram estas as notícias que nos chegavam do Malawi e da Rodésia a 15 de Agosto de 1974. Dois dias antes, Bravo - Alfa - Quatro, a casa - mãe do Batalhão de Comandos tinha a confirmação da retirada geral do dispositivo militar de todo o território a norte do Niassa e Cabo Delgado. No dia seguinte, em Dar-es-Salam , recomeçaram as negociações entre os "revolucionários" de Lisboa e a Frelimo para a entrega total da província ultramarina aos "nacionalistas" moçambicanos.

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A CCMDS 4040ª que à saída de Quelimane sofrera mortos e feridos quando cumpria instruções do MFA de Nampula para "negociar a paz" com a Frelimo local, tirou desforra da emboscada que lhe tinham feito. Obcecados em vingarem as suas baixas, a CCMDS 4040ª, desobedeceu às instruções de permanecerem quietos até novo ataque. Logo que lhe chegou a informação particular de que, nessa noite, um grupo de guerrilheiros iria fazer uma reunião ali perto, ficaram muito agitados. Quando o informador lhes revelou que se tratava do mesmo grupo que montara a traiçoeira emboscada, não houve sequer um momento de hesitação. Aprontaram-se num ápice e dirigiram-se ao local da reunião, esperando o momento oportuno para se fazerem pagar da mesma moeda.
Atacaram com a máxima força. As baixas, oficialmente confirmadas, foram de 15 mortos entre o homens da Frelimo, incluindo o adjunto do comandante regional, Bonifácio Gruveta.

Bonifácio Gruveta. Comandante da Frelimo na Zambézia

Notícias não confirmadas que entretanto nos chegaram por vias civis, elevavam para 130 o número de mortos e feridos causados pela violenta reacção dos "Lordes" da 4040ª. Ambas as informações não se contradiziam ...  De  noite, quem iria poder confirmar quantos apoiantes da Frelimo estavam envolvidos naquela batalha campal?.
Não havia tempo para aborrecimentos! Naquela mesma sexta-feira chegaram a Montepuez  um grupo de cerca de 300 agricultores. Deslocando-se em coluna motorizada , vinham de toda a zona Norte de Moçambique, do Niassa a Cabo Delgado,
O major Belchior novo comandante do Batalhão, foi ao seu encontro convidando ao diálogo. Mas estes homens e estas mulheres estavam fartos de ouvir discursos ou recomendações. Com os ânimos exaltados recusavam-se a perceber que o major não tinha nada para lhes dar nem que não tinha capacidade de os repatriar para Portugal, tal como exigiam. Uma delegação de agricultores informou o comandante do Batalhão, como se este já não tivesse já problemas de sobra, que todos eles eram portugueses e que era para Portugal que queriam ir, Instavam-no a "tomar uma decisão". 
Subitamente, num dos extremos do improvisado acampamento, rebentou um pandemónio. Tiros de espingarda rasgaram o silêncio daquela noite fria de Agosto. O que se passou? Num acesso de fúria e de desespero, dois dos manchambeiros tinham disparado sobre um grupo de negros que se tinha juntado ali perto, atingindo mortalmente dois deles.
O major Belchior participou a ocorrência às autoridades militares superiores e o comandante do Sector , coronel Hilário Marques da Gama, ordenou que os dois arguidos fossem transportados para Porto Amélia onde seriam julgados por homicídio. Esta decisão não agradou aos restantes agricultores, forçando o próprio coronel a deslocar-se a Montepuez no dia seguinte (sábado 17 de Agosto).
Hilário Marques da Gama era muito conhecido em Lourenço Marques . Noutros tempos fora professor de ginástica nos Maristas e estivera na PSP. Depois do 25 de Abril tinha "virado" apoiante do MFA e, justificando o interesse nacional, tentou aplacar os "aldeões" brancos. Arvorado em político improvisado, Gama passou conhecido como o maior de  todos os mentirosos e como o homem que nunca antes se tinha visto nos territórios do Norte de Moçambique.


O coronel Hilário Marques da Gama, à época responsável militar pela zona de Cabo Delgado, dirige-se aos portugueses aí residentes, muito deles agricultores


Nesta ocasião por exemplo , enquanto tirava fotografias no meio dos refugiados, ouvi-o com todo o descaramento dizer: 
-- Vocês machambeiros, em vez de pedirem a repatriação deviam regressar às vossas machambas. Não têm que estar receosos de nada! Os militares estão aqui para vos defender e vão fazer patrulhas regulares. Não tenham medo! Vocês e os vossos bens serão bem protegidos!,

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Este mentiroso profissional tinha com certeza conhecimento que, quando duas tardes estes pobres agricultores se organizassem em auto-defesa e com os militares ausentes de toda a região, sendo detidos e acusados como reaccionários.
Foram muitos que caíram no engodo.
Em Nampula, o Comando-chefe foi obrigado a actuar quando em Balama, perto de Montepuez, bandos de semi-terroristas assaltaram as cantinas e as residências desta vila. Assim, na terça-feira, 20 de Agosto, um grupo de combate saiu, debaixo do comando do capitão Alberto MedinaMatos, de Montepuez em direcção a Balama.

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No seu safari para Balama, o capitão Matos e os seus comandos estavam a testemunhar o nascimento de um ingovernável exército de desordeiros e vagabundos que, segundo um dos seu subalternos, iria obrigar o exército português e os guerrilheiros da Frelimo a  juntarem-se numa irónica aliança pelo controle de mais este inimigo de Moçambique.
A meio de  Agosto, as novas forças "mistas" de intervenção estavam já a ser organizadas. A cúpula da Frelimo porém, conseguiu impor os seus planos de extinção destas forças, não dando sequer hipótese de discussão aos "representantes " do Governo "revolucionário" de Portugal.
Almeida Santos confirmaria mais tarde que a sua presença na terceira reunião com a Frelimo serviu apenas para formalizar legalmente o anterior acordo concluído pelos representantes do MFA, leia-se pelo major Melo Antunes. O Dr. Almeida Santos, advogado e ex. residente em Lourenço Marques teve muito gosto em servir de "escrivão" do documento que se convencionou chamar Acordo de Lusaka, num gesto de deferência para com o presidente, Kenneth Kaunda.

Do diário de Luíz Correia

Nampula 25 de Agosto
Na capital todos sabiam que o Dr. Almeida Santos era amigo e companheiro de Jacinto Veloso, ex-piloto desertor da FAP. Depois do 25 de Abril , numa das conversas de café na esplanada do Hotel Portugal, ouvi, em silêncio, a conversa entre o chefe da Alfândega de Nampula, o senhor Adérito, e os seus "camaradas" da tertúlia matinal em que este afirmou: O Jacinto Veloso é um homem às direitas! Quando resolveu passar-se para o inimigo levou o blusão de cabedal de um companheiro de batota e ficou a dever-nos uma pipa de massa. O Adérito continuou a falar bem alto, talvez também para eu ouvir: Homem muito honesto, o Jacinto enviou-nos o blusão logo que pode e, dentro do bolso interior do mesmo, vinha um envelope para pagar a sua dívida, com o respectivo juro. Deseror sim, mas desonesto, não! 
Pensei para os meus botões . Este está feito! Quando a Frelimo tomar conta do Governo em Lourenço Marques, o vai para director nacional das Alfândegas...E esta? Enganei-me! O Adérito retornou a Chaves de onde, julgo eu, tinha vindo ...

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Deixando para trás a zona dos aldeamentos o capitão Medina Matos e o grupo de combate dirigiram-se para Balama, de onde tinham chegado as notícias mais alarmantes sobre esta onda de pilhagens de destruição por toda a zona a sul do rio Messalo. Bastou aproximarem-se desta localidade para terem a confirmação de que nada seria novidade para eles. Tratavam-se de um bando de desordeiros, auto nomeados "Justiceiros da Frelimo", desejosos de "libertar" dos seus "bens adquiridos durante o colonialismo, nivelando por baixo a sociedade que desejavam implementar", afirmara um maconde temporariamente detido pelos Comandos.


A Companhia de Infantaria estacionada em Balama, constituída por muitos elementos da população local, recusou-se a sair do aquartelamento e assim contribuiu para o agravamento do caos que se instalava. Os comandos chegaram mesmo a tempo de salvar o comandante da companhia de Infantaria, um alferes miliciano, que estava já sob a ameaça de ser morto por alguns dos seus homens que, amotinados, exigiam ser evacuados para Porto Amélia. O pânico tinha sido instalado por agentes da Frelimo que puseram a circular uma lista dactilografada dos nomes dos soldados moçambicanos que serviam no Exército Português de que todos seriam executados até ao final da semana!.

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O capitão Medina Matos enviou imediatamente uma mensagem rádio para o Comando do Batalhão e quatro horas depois chegava a Balama um destacamento de uma dúzia de homens  da CCMDS 2045ª . Recolheram todo o armamento e transportaram, sempre sob a mira das suas armas os amotinados para Montepuez, onde ficariam detidos. Aí estes amedrontados militares do recrutamento local estariam definitivamente mais seguros....   

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A 22 de Agosto de 1974 a CCMDS 2040ª reuniu-se em Montepuez, para antes do regresso a Lisboa e à vida civil proceder à cerimónia de entrega de  todo o material de guerra que lhe estava distribuído. O major Manuel Glória Belchior dá início à cerimónia na parada do qquartel do Batalhão de Comandos.


Militares da CCMDS 2040º marchando lentamente com as armas dos camaradas mortos em combate que irão cravar no solo junto do mastro em que está hasteada a Bandeira Nacional Português.


Em silêncio e perfilados fazem continência à Bandeira, aguardando que os camaradas terminem a sua parte


Depois da cerimónia de homenagem aos camaradas mortos em combate é lido o código do Comando

A curta cerimónia era repetida por todos os membros da 2040ª que,embora sempre presentes no coração dos seus companheiros, já não podiam regressar pelo seu próprio pé à terra que os tinha visto nascer. Foi muito comovente e gratificante poder estar em comunhão com estes homens na hora da partida, assistindo à forma digna e tocante como se despediam de Montepuez. 
Pouco depois dos comes e bebes se iniciaram, uma sentinela entrou esbaforida pela portada messe. Olhando  para todos os lados, sem saber a quem se dirigir, gritou: "Cortaram a garganta a um da 2045ª.
Ao meu lado esquerdo, o Belchior deu um salto e logo de seguida colocou-se em posição de avançar. Tinha compreendido a gravidade do sucedido e dirigiu-se imediatamente para a porta de armas.
"Vem comigo", disse-me de um sopro, "antes que seja tarde de mais"! 
Chegámos à saída antes de todos os membros da 2045ª, a "Companhia do Diabo" emergirem das suas camaratas armadas até aos dentes e ultrapassarem a barreira que controlava as entradas as entradas e saídas do aquartelamento.
-- O que estão a fazer? -- berrou o Belchior para o alferes comandate da 2045ª 
Este bateu-lhe a pala em sentido e disse:
-- Vamos destruir o aldeamento!
-- Mas quem é que foi morto? -- gritou o Belchior.
-- Ainda não sabemos, comandante -- respondeu o alferes. -- Mas saberemos mais tarde.
-- Estás então a dizer-me que --- continuava a gritar -- nem sabes quem era, nem onde foi, nem como foi morto?
-- Bem ... mais ou menos senhor comandante. Mas a companhia tem o dirito de vingar a morte de um camarada de armas e quer queimar a vila toda!
Os ânimos tinham atingido o limite e a tensão era visível. Junto ao portão que dava acesso à estrada para o aldeamento vizinho, encontrava-se o Manuel Belchior a barrar a saída ao alferes da 2045ª, e a todos os elementos desta companhia. Estavam loucos de raiva. Por momentos, pensei que a confrontação iria acontecer ... os comandos recusavam-se a desmobilizar. Pensei no pior...
Belchior não arredava pé e o alferes começava a fraquejar. Nesta altura, o comandante deu ordem que trinta homens o acompanhassem e que os outros recolhessem às casernas. Vamos patrulhar todo o aldeamento, disse-me o major. Se de facto se alguns dos homens tiver sido morto, sou eu mesmo quem vai resolver este imbróglio de uma vez para todas com uma punição exemplar dos culpados. E, dirigindo-se ao pessoal disse: Agora desapareçam da minha vista.!
Regressámos duas horas depois. Ninguém no aldeamento tinha sido assassinado. Feita a chamada de toda a companhia verificou-se que não faltava ninguém da 2045ª. Estavam todos de boa saúde. Nessa noite o Manuel Belchior tinha ganho os seus galões de Major. Evitou um banho de sangue.

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Mesmo consciente da tragédia que esteve para acontecer, quando o Belchior se juntou a nós houve quem olhasse de lado para o comandante. Belchior sentado ao meu lado e a uma certa distância dos seus homens começou a abrir-se comigo como nunca tinha sido feito desde que nos conhecêramos. Primeiro resmungou entre dentes :" Eles traíram-nos"! Depois repentinamente, gritou: " Eles traíram-nos"! Olhou à sua volta e baixou novamente a voz. Bombardeou-me com uma enxurrada contínua de palavras que pareciam estar a queimar-lhe a boca. Logo de seguida já em tom normal disse-me: "Sabes Giancarlo ... o Freitas e eu estávamos pelo MFA para durante o golpe de Lisboa estarmos em alerta vermelho para actuar cá, em caso de necessidade. Mais descontraído, continuou: Se houvesse resistência contra o golpe, contavam que nós, os Comandos, actuássemos em Nampula e noutras cidades para assegurar o derrube dos apoiantes do Caetano. No 25 de Abril estávamos ao lado do nosso General Spínola. Vimos nele a salvação de Portugal e o  regresso do prestígio das nossas Forças Armadas bem como   a justa resolução da guerra. Uma das opções era um federação de Estados. Mas não era a única. Podíamos ter que ir mesmo para uma guerra total, para atingirmos uma paz honrosa e definitiva, continuou o Belchior. agora não temos uma coisa nem a outra, ou melhor, chegámos  a um ponto em que qualquer alferes que diz do MFA dá ordens num Batalhão e tenta desautorizar coronéis, majores, tudo e todos.
-- Cheguei à conclusão que já não é possível alterar o curso que as esquerdas deram ao Movimento -- replicou o Belchior. -- Agora, o nosso general não tem qualquer hipótese de segurar o Portugal actual ...  Vão vender tudo a quem der mais ... e o pobre povo é que paga sempre os erros dos outros.

                                                                       ***
A moral dos Comandos estava a ficar cada vez mais fraca. Primeiro, a interrupção do curso e mais tarde o seu cancelamento. Depois o regresso a Lisboa do major Freitas que tanto  desgastou o pessoal do Batalhão. Também o comportamento da CCMS2045ª em nada veio ajudar ao estado do espírito geral. Para finalizar "ementa" dos Comandos: o "assunto" Negomano.
Na semana anterior, o alferes Amílcar Santos Cardoza tinha marchado de Montepuez com a  CCMDS 1ª/74 numa missão "secreta" cujo objectivo era escoltar de Negomano, na confluência dos rios Lugela e Rovuma, mesmo junto à fronteira com a Tanzânia, os cerca de 200 homens que constituíam a guarnição local.


Cardoza seguiu para norte com quarenta homens seus e 70 viaturas de transporte. Este tipo de missão não eram normalmente "encomendados" aos Comandos, mas neste caso, o QG  em Nampula pediu especialmente que fosse a 1ª/74 a efectuar este movimento de tropas de um posto avançado para o Sul do território. A intenção era evitar uma repetição do caso de Nangololo. Aí o pessoal quando tomou conhecimento de que o fim da guerra estava próximo, entrou em pânico, abandonando o quartel para se refugiar no mato, deixando tudo para a Frelimo.

NOTA DO BLOG: A VERDADE NO CASO NANGOLOLO: 
A 3 de Agosto de 1974 a Companhia de Artilharia 7256, recebe ordem do Batalhão de Mueda para abandonar o aqurtelamento após DESTRUÍREM TODO O MATERIAL DE GUERRA e dirigirem-se para Mueda.
No dia seguinte, em vez de irem para Mueda resolveram ir para o Chai a pé 

Hoje sabemos através de um antigo guerrilheiro da Frelimo, que os frelimos estavam emboscados na picada Nangololo para Mueda à espera das nossas tropas. Os seus intentos foram frustados.

O alferes Cardoza descreveu a sua chegada a Negomano da seguinte forma:

Fomos confrontados com um panorama de arrepiar. Não havia sentinelas e ninguém se apercebeu da nossa chegada até estarmos dentro do perímetro do aquartelamento. Só vimos um homem, um capitão à beira de se passar. A sua expressão de incredulidade era indescritível. Não queria aceitar que tínhamos chegado, correu para nós e perguntou quem era o comandante da coluna . Quando lhe respondi que era eu, o capitão perguntou quantas companhias tinha trazido para os escoltar.
Informei-o que tinha comigo bastantes homens da CCMDS 1ª/74  e, quando com os olhos arregalados abanou a cabeça, disse-lhe que 40 Comandos eram mais que suficientes para esta operação.

O diálogo que se segue faz parte do relatório apresentado pelo alferes Cardoza

Capitão: Mas se o inimigo atacar durante a nossa retirada?
Cardoza: Contra-atacamos, capitão.
Capitão: Você está louco? Estão também todos loucos em Nampula?
Pois fica a saber, alferes, que eu e o meu pessoal viajaremos no meio da coluna... Que fique bem claro! entendido?
Cardoza: Como queira capitão. Mas devo informá-lo que a partir deste momento sou eu qu comando esta evacuação. Estas são as ordens que recebi.
Capitão: Faça como entender, alferes. Vou arrumar as minhas bagagens.

Continua o alferes Amílcar cardoza no seu relatório

Fomos encontrar  alguns dos soldados engalfinhados num armazém a disputar a posse de uma grade de cerveja. Um furriel em cuecas ameaçava dar um tiro no seu alferes pois queria que lhe pagassem os dois meses de vencimento que dizia serem-lhe devidos pelo Exército Português.
No outro canto do armazém, ignorando completamente o que se passava à sua volta, incluindo o problema do furriel, um grupo de "soldados" completamente bêbados celebrava o fim da guerra.

Antes de a coluna iniciar a marcha, ao final do dia seguinte, o comandante da 1ª!74 mandou o seu  pessoal armadilhar todo o equipamento que ficasse para trás. Até a máquina de café instalada na messe dos graduados ficou recheada de explosivos. Na hora de aquecer os motores, o paiol das munições foi armadilhado com TNT e ligado a um detonador regulado para meia hora depois da saída. Estando já a uma distancia segura, a coluna parou para poder ver o fogo-de-artifício provocado por 600 quilos de TNT, após duas mil granadas de morteiro, 200 granadas de canhão de 155 mm e 150 mil litros de combustível.
Terminou a resistência portuguesa em Negomane!
Quando o alferes Cardoza regressou a Montepuez trazendo consigo e em segurança toda a coluna, foi "agraciado" pelo major Belchior. O fiasco de Nangololo (Nota do Blog: NÃO HOUVE FIASCO EM NANGOLOLO). Nada tinha ficado para a Frelimo , e graças aos Comandos a retirada foi ordeira. Todos concordaram que fora uma operação muito bem executada... Até que dois dias depois, um tal major Botelho de MFA, do Comando do Sector de Porto Amélia chegou a Montepuez, afirmou o o dito major que tinha voado de Porto Amélia para abrir um inquérito ao pessoal da escolta.
O primeiro a prestar declarações foi, como era esperado, o alferes Amílcar Cardoza..O major Botelho atacou verbalmente o Cardoza.: "As ordens que enviámos para fazer a escolta do pessoal de Negomano para Montepuez não incluíam a destruição de material de guerra. O senhor alferes entende as implicações do acto que praticou?"

Alferes Amílcar Cardoza, com um braço engessado.

Mais tarde, na messe dos oficiais, Cardoza disse-nos ter ficado perplexo e horrorizado com a sugestão que teria desobedecido às instruções que lhe foram dadas. Esta mudo e muito pálido. Chocado com as palavras do major. Ficou ali especado, tocando ao de leve com os dedos no gesso que lhe cobria o braço partido, um souvenirgos de quando teve de apressar um furriel da Infantaria que durante a evacuação dos "infantes" de Negomano estava tão acagaçado que nem se mexia.
Agora, frente ao major Botelho, permitiu-se baixar os olhos e pensar no que lhe estavam a querer impingir. Seu "estúpido", berrava o Botelho, você não sabe que a guerra está a chegar ao fim e que a Frelimo depois vai ter de reconstruir tudo o que estiver destruído? Não sabe que os homens da Frelimo já não são os nossos inimigos?. Bem, vou dizer-lhe o que é que. As munições, explosivos, combustíveis e as estruturas destruídas eram para a Frelimo! Você destruiu o que agora é propriedade dos nossos amigos ... A máquina do café! Ok, você julga-se muito esperto. Mas o que pensa você que vai dizer  a Frelimo quando souber que os seus homens são apanhados por armadilhas postas pelo amigo português.
Você é louco, alferes Cardoza, mas vai pagar por isto!
Naquele momento o Cardoza não conseguiu conter a cólera e o desprezo que sentia pelo tal Botelho. Major, cuspiu, dá licença que lhe pergunte quem vai pagar pelos meus homens mortos ou estropiados pela guerra... Quem vai pagar isso? será a Frelimo? Ou ainda melhor, será o senhor, meu major?
Quando constou que a palavra "inquérito" tinha sido usada, os homens da companhia do alferes Cardoza iniciaram a sua preparação para um verdadeiro ataque a um "inimigo" desconhecido, apresentando-se todos armados frente ao gabinete do comandante do Batalhão. Mais uma vez foram o bom senso, a experiência, o sangue frio e  a muita coragem do major Belchior que salvaram uma situação que podia ter sido de desgraça para o Batalhão de Comandos. O major do MFA de Porto Amélia ficou sem "pinga de sangue" e, antes mesmo de ser transportado para a pistaque servia Montepuez, teve o desplante de acusar todo o Batalhão de "reaccionário".
Foi à  sua vida e nunca mais foi visto em Montepuez. O seu nome, como o de tantos outros oficiais do MFA, desapareceu na lixeira da História.

Quinta Feira
29 de Agosto

Chegou a Montepuez o general comandante-chefe Orlando Barbosa. Veio acompanhado pelo "poder-por-detrás-do trono" e pontifex maximus do MFA em Moçambique, coronel Manuel Souza Menezes, chefe do Estado-Maior do Comando-Chefe.


Chegada a Montepuez do Gen. Orlando Barbosa

Vinham falar aos Comandos, sem reservas com os homens formados na parada quartel. O major Belchior e eu fomos esperá-los ao aeroporto. Sabia muito bem que o coronel Menezes não tolerava jornalistas mas decidi que era melhor que tomasse conhecimento da minha presença. Logo à chegada, e para grande surpresa minha, verifiquei que o Menezes não fez "cara feia" quando lhe foi apresentado pelo general. Por breves momentos pensei que estava safo!
Logo que o general Barbosa terminou de ler o discurso "preparado" pelo MFA, o coronel Menezes falou às tropas. Imediatamente fez-me sinal para me aproximar. A sua atitude tinha mudado drasticamente. Não parecia o mesmo homem que me tinha saudado tão amavelmente poucos momentos antes! Fiquei perplexo e pensei para mim que tinha pela frente um homem com duas caras. Luiz Correia tinha-me dito que o ramo açoriano da sua família conhecia muito bem Menezes o político que trabalhara com Salazar nos anos 60.
-- A Frelimo sabe que o senhor está aqui e que é o único jornalista estrangeiro em todo o Norte de Moçambique. Neste momento, a presença da imprensa nestas paragens é indesejável, se não mesmo inconveniente. Fico-lhe muito grato se nos fizer a vontade de deixar Moçambique nas próximas oito horas.
-- Mas ... coronel ... -- gaguejei.
Não há qualquer mas. Passe um bom dia!.


                                                                   ***

Havia um argumento lógico a meu favor:era fisicamente impossível eu sair de Montepuez e de Moçambique nas próximas oito horas e o coronel Menezes sabia-o perfeitamente.
Ponderei bastante sobre o meu futuro imediato. Cheguei à conclusão que poderia ficar em Montepuez pelo menos mais um dia e, como tinha a total confiança do Belchior, talvez até mais tempo. Levadas em consideração as circunstâncias em que o coronel Menezes me tinha colocado, resolvi cortar qualquer contacto com os oficiais visitantes, evitando mesmo apresentar-me na messe onde estavam a almoçar.
Peguei num jeep e fui dar uma volta por Montepuez. Poderia ser a última vez que o fazia. Toda a área militar parecia um enorme parque automóvel. O espaço disponível estava ocupado com colunas de camions que tinham transportado os militares evacuados das zonas mais isoladas, junto à fronteira com a Tanzânia para sul,em rota para os pontos de embarque.
O seu destino final seria Lisboa. Inicialmente, a concentração fora feita em Mueda, Nangade e Mocímboa da Praia. Depois da coluna proveniente  de Negomano, era lógico que com o passar dos dias, outras chegariam a Montepuez. Deixavam quase tudo para atrás, pouco ou nada tendo a ver com aquele brioso grupo de homens que eu tinha conhecido como bons soldados. Parecia a retirada em combate de um exército destroçado! Claro que eu sabia que não tinha sido assim, mas já não era possível ocultar o estado de desânimo que se espalhava por todo o Norte de Moçambique,

O Gen. Barbosa a discursar em Montepuez
(....)
Enquanto tomava mentalmente a nota do que se passava à minha volta , recordei-me que tinha sido "aconselhado" a abandonar Moçambique no prazo de oito horas.
Decidi que tudo faria para desobedecer a este conselho. Se queria ter êxito, esta minha decisão tinha que ser concretizada com inteligência e ponderação. Tinha que mostrar ao Menezes que estava a cumprir o seu pedido.Dentro deste plano aproximei-me do major Belchior e solicitei a sua concordância para me deslocar a Nampula nessa mesma tarde.
"Claro que concordo" disse ele. "No regresso, o avião vai levar o general Barbosa e o coronel Menezes para lá. Estou a perceber-te ... Boa sorte...
Durante todo o voo a bordo do DC 3 da FAP, nem um nem outro me dirigiram plavra. Logo depois de aterrarmos em Nampula, Menezes voltou-se para trás e disse: "Lembre-se amigo, oito horas"
Ao final do dia 29 de Agosto, uma quinta-feira estava eu sentado na sala de convívio do Hotel Portugal quando por mero acaso, conheci um oficial da Polícia Militar que estava estacionada em Nampula. O que me disse reforçou a ideia que a disciplina, naquele que outrora fora o Exército Português, nunca tinha estado tão em baixo.
-- Você não é de cá -- disse ele-- e talvez não saiba que ... Como está a escrever um bom livro, vou contar-lhe uma coisa. Sabia que mais de seis mil homens já desertaram do Exército desde o golpe de Abril?
-- Seis mil? -- retorqui.
-- Se calhar até mais.Estas foram as última informações que recebi.
-- Mas para onde estão a ir, tantos homens? -- perguntei
-- Bem, como deve calcular, a grande maioria dos soldados são negros. Muitos deles mudam de "lado" e vão para o mato na esperança  de poderem juntar às forças da Frelimo. Para quem quiser continuar a viver em Moçambique depois do cessar-fogo, esta é uma das poucas opções que restam. Os outros,  os que nunca concordaram com a Frelimo, atravessam a fronteira par o Malawi e aí se refugiam. Para mim -- continuou o oficial da PM -- estes tomaram a decisão mais acertada. Não acredito que os chefes da Frelimo venham a aceitar a entrada de ex-inimigos nas suas fileiras. Talvez, durante algum tempo, aceitem. Mas mais tarde serão punidos ... de certeza que sim! 
-- E os brancos?
-- Há também muitos brancos. Normalmente vão para a Rodésia através de Vila Pery.
-- E vocês da PM, não tentam por cobro a isto?
-- Não, nem pensar nisso! Para quê? Quando temos a confirmação de que já saíram do território arquivamos os documentos militares e esquecemos o assunto. Eles são nacionais do futuro Moçambique. Nos tempos que correm não há qualquer razão para os obrigar a ficar. É melhor deixá-los decidir o que mais lhes convém.
-- Sim -- disse eu --, o seu argumento é válido e convincente!
Passava da meia noite. Era sexta-feira, 30 de Agosto, quando o meu "anjo da guarda" me acordou com uma das suas inesperadas aparições.
O Luís Correia soube que eu estava em Nampula. O General Orlando Barbosa tinha-lhe dito.!

                                                             ***
Estava a sair do Comando-Chefe quando encontrei na escada o general Orlando Barbosa acompanhado pelo coronel Souza Menezes. Disse-me estarem de regresso de Montepuez. O general Barbosa cumprimentou-me e acrescentou: "O seu amigo, o jornalista italiano, veio connosco no mesmo avião". 

-- O Menezes pediu-me que obtivesse toda a informação disponível  sobre o teu passado, meu caro Giancarlo.

Estava contudo particularmente interessado no presente do "jornalista italiano" que desde o fim de Maio se encontra junto dos Comandos de Montepuez.
-- Está a falar de quem? Do Drº. Giancarlo? -- perguntei-lhe.
-- Sim, claro! O seu amigo jornalista -- continuou o Menezes, -- Gostaria de saber um pouco mais sobre as suas actividades junto dos Comandos. Por exemplo, tenho ouvido uma série de rumores que me dizem que ele fez uma lavagem ao cérebro a um certo número de oficiais milicianos dos Comandos  no sentido de se revoltarem contra as instruções que lhes são transmitidas por nós. Claro que não acreditei -- disse o coronel, -- mas as suas normais actividades poderiam ser consideradas subversivas, podendo até causar insubordinações no Batalhão de Comandos.

E continuou:

-- Pessoal da minha confiança que que o tem observado em Montepuez, diz-me que há meses passa horas a escrever. Analisando os recortes de todos os artigos publicados aqui em Moçambique nos últimos seis meses, verifico que não há um único artigo escrito por ele .. Agora, meu caro Luís Correia, diga ao seu amigo que eu gostaria de ter todos os apontamentos, fotografias que tirou ou artigos já publicados, aqui em cima da minha secretária às primeiras horas de amanhã.

Depois de o Luis me ter informado da reacção do Menezes;
-- Então Luis, o que achas que devo fazer?
-- Acho que seria melhor deixares Moçambique logo que possível.
Entretanto, os teus apontamentos são problema teu!
-- Ok, Luis. Vou-me embora. Mas como e quando o devo fazer?
-- Não há qualquer urgência. Não é necessário partires de imediato -- respondeu o Luis, -- O general Barbosa gosta de ti e enquanto ele cá estiver terás a sua protecção. Mas ele disse-me que regressará brevemente a Lisboa.
Depois disso ...
-- Estou a perceber o que queres dizer. Se vires que te facilita as coisas, eu deixo Nampula amanhã, Tudo o que possuo, incluindo os apontamentos, está em Montepuez. Regresso lá na próxima oportunidade e volto outra vez a Nampula de rota batida para a África do Sul . Correcto
-- Perfeito Giancarlo. Então .... bom dia! disse o Luis, abandonando o meu quarto. Eram três da manhã

                                                                             ***
O Belchior era um homem muito simpático e corajoso, mas mesmo antes do Freitas deixar Moçambique, muitos duvidavam que tivesse o estofo necessário para aguentar os homens motivados e a "flutuar" como até aqui. Tinha sido um bom comandante de companhia e um segundo comandante do Batalhão, mas  agora, nas presentes circunstâncias, iria ter muita dificuldade em se impor como "supremo"!. Isto era já evidente quando, regressando a Montepuez no  domingo,, 1 de Setembro, notei que o estava psicologicamente enfeudado por meia dúzia de desanimados oficiais  da Administração Militar, cuja atitude era a de "queremos regressar a casa". Diziam ser inútil tentar mudar o rumo que o MFA estava a dar à situação e que de qualquer maneira os dirigentes da Frelimo não eram estúpidos e podiam via a governar Moçambique muito bem.
Até aí, sempre que chegava a Montepuez era bem recebido e considerado um colega e verdadeiro amigo. Mas agora, depois da decisão do coronel Souza Menezes, verifiquei que os oficiais me tratavam com reserva e não tinham interesse em serem vistos como "jornalistas".
A excepção era o alferes Amílcar  Cardoza que continuava a demonstrar a mesma amizade que tinha por mim. Quando foi oportuno, perguntei-lhes a razão porque se afastavam de mim.
-- Parece-me -- disse ele -- agora todos receiam a tua presença e ainda mais a tua caneta. Podemos verificar que muitos dos teus amigos foram misteriosamente transferidos. A realidade é que eles não desejam ser vistos contigo, amigo Giancarlo! Nasceram em Moçambique e é aqui que têm que reconstruir as suas vidas. Eles e as suas famílias estão preparados para aceitarem a Frelimo. Estão com receio daquilo que venhas a escrever  porque tu vais ligá-los aos Comandos, comprometendo o seu futuro aqui. E outra coisa: os teus verdadeiros amigos ficam nervosos quando estás por perto
Não queria acreditar estar a ser tão mal compreendido pelos Comandos moçambicanos. agradeci a franqueza do alferes Cardoza e regressei ao quarto para empacotar as minhas coisas. 
Os homens que para ficarem longe da minha "influência" pediram transferência tinham-se enganado.!
 Mais tarde, encontraria centenas deles em Joanesburgo e Pretória. Depois de terem abandonado em definitivo Miçambique, procuravam trabalho com a ajuda do meu colega Peter McIntosh!
A Frelimo não os acolheu.
Tinha passado uma semana desde o meu encontro com o coronel Menezes. Hoje (sábado, 7 de Setembro), apanhei uma boleia num avião da FAP. Um Noratlas que passar pela base dos Comandos com militares de Infantaria vindos de Marrupa, levou-me na última viagem de Montepuez para Nampula. Levava comigo tudo o que possuía.
Perto das 17h00 aterrámos em Nampula. Ao desembarcar, o piloto disse-me: Parece que vão assinar o documento oficial de cessar-fogo  esta noite  em Lusaka.
Subi ao bar dos oficiais da Força Aérea que ficava ali perto do aeródromo civil. Quem sabe não haveria mais informações sobre este assunto! Quando entrei, surpresa! O general Rangel de Lima e o Menezes, ali? Depois da troca de cumprimentos seguiram-se as habituais perguntas. Aguardavam, disse-me o general das FAP, dignitários vindos de um país vizinho. Mais tarde tive a confirmação que os tais dignitários vinham da Tanzânia e que eram figuras de grande calibre da Frelimo!
-- Estamo muito ocupados e ... Eu disse-lhe oito horas, não oito dias!
-- disse-me o Menezes com um sorriso gelado enquanto eu apertava a mão ao Rangel de Lima.
-- Não se preocupe -- respondi-lhe quase trocista  --- Vou-me embora agora mesmo.
-- Quando é que parte?
-- Domingo, logo de manhã cedo!
-- Boa sorte.
-- Adeus.

Tinha terminado o terceiro whisky ( a expensas do general e do coronel) quando um militar apareceu repentinamente no bar e gritou: Em Lourenço Marques o povo iniciou uma revolução. Eram 18h30 de 7 de Setembro,

CAPÍTUO 8 (1ª Parte)

A Rebelião de Setembro -- Forças Armadas da Tanzânia e da Frelimo chegam secretamente de avião - Nampula cercada pela PM Portuguesa -- Os civis capturam o Rádio Clube: vinte minutos de liberdade -- O Exército Português contra-ataca com heliocanhão contra os civis -- Decido sair de Moçambique.

Nampula
Sábado, 7 de Setembro de 1974


Achei que nem o General Rangel de Lima e o coronel Menezes, seriam pessoas para voluntariamente me "oferecessem" mais informações! Que se iria passar neste momento em Nampula com a chegada dos VIPS da Tanzânia? Tinha que urgentemente encontrar encontrar o Luis Correia.
Revolução! Em Moçambique Em , era possível ... A tensão era enorme e generalizada. Toda a população aguardava em ebulição as últimas notícias da capital.
Revolução? A palavra teve o efeito de me tirar o paladar salgado e trouxe-me ao mesmo tempo a excitação e o medo.
Esta a perder um tempo precioso. Mais uma vez não sabia onde encontrar o Luis Correia.
Eram quase sete da tarde quando cheguei ao Hotel Portugal. O sr. Marques, que se deixara de brincadeiras, disse-me que o Luis estava no Centro Hípico a dar aulas de equitação. Julgo que nem agradeci a informação. Num instante estava na hípica. Luís tinha terminado as aulas e mandado para casa o seu último aluno. Pareceu-me extremamente preocupado. Nunca o tinha visto assim.  Ainda tentou disfarçar oferecendo-me uma bebida no bar do clube. Só depois me contou a história.
-- Cerca das 18h35 a emissão normal do Rádio Clube de Lourenço Marques foi interrompida por breves segundos. Ouvia-se gente a falar dentro do estúdio e, finalmente, uma voz estranha, áspera e comovida anunciou que a emissora estava na posse do povo. Eram exactamente 18h41 no meu relógio -- continuou o Luis -- Dei logo por terminada a minha aula de equitação,
-- E agora Luis? -- perguntei-lhe 
--Estou a aguardar a chegada dos outros membros da direcção, incluindo o Jorge Cruz, que já devia cá estar. Talvez seja melhor adiar a reunião para o próximo sábado... Olha, Giacarlo, no princípio eram só bojardas, até que se ouvia a conhecida voz do locutor Sampaio e Silva, neste momento já é outro, tem uma voz refinada mas percebe-se que não é profissional da rádio ...diz se o locutor Manuel! Anunciou há poucos minutos: 
-- Aqui, Moçambique livre! ,,, O Luis estava pálido e muito tenso enquanto repetia o que já se sabia.

Manifestação junto ao Rádio Clube
-- Vais ficar por aqui, Luis?
-- Não Giancarlo... vem comigo ... no meu carro
Quando deixámos o clube hípico, quando já ninguém nos podia ouvir, Luis virou-se para mim.
-- Isto é uma estupidez, carago! Eles vão só acirrar os ânimos e destruir toda a possibilidade de se criar uma plataforma de entendimento. Será que em Lourenço Marques não entendem que já é muito tarde para parar o comboio da independência ? Caramba! Com tanta gente capaz em Moçambique e  não há ninguém que os demova e lhes explique que depois da assinatura dos Acordos, neste preciso momento. Moçambique já é da Frelimo... Toda esta fúria não vai modificar nada. Sinto uma frustração  terrível !
-- Porque dizes isso, Luis?
-- Porque eles vão destruir o plano que vem a ser construído desde Novembro de 1972. Um plano que poderia garantir uma verdadeira paz para todos. Estes revolucionários de meia tigela não vão atingir qualquer objectivo ... Não ouviste o que o Mário  Soares declarou em Lisboa ao semanário alemão Der Spiegel ? ele disse que, se for necessário, a nossa tropa, a tropa portuguesa, iria atirar sobre os colonos ... homens e mulheres em cujas veias corre sangue português! É tarde demais ... Vai ser tão horrível quanto inútil, o derramamento de sangue ... Já estou atrasado! Tenho de ir à base aérea. Sabias que chegaram de Dar-es-Salam os membros da Comissão Militar Mista? Veio o secretário da Defesa da Frelimo, Joaquim Chipande, o Sebastião Mabote e mais dois ou três elementos do Movimento. Já lá devem estar o Rangel de Lima e o teu "amigo" Menezes. Vão combinar a transferência dos locais chave. O cessar-fogo é para entrar em vigor às 00h00 de amanhã.  Está tudo escrito no tal documento militar que foi assinado em dar-es-Salam.
Giancarlo, fica aqui perto do hotel. eu venho ter contigo depois das 20h00.
-- Ciao Luis, boa sorte.
Então, eram estes os VIP que o Lima e o Menexes aguardavam! Hum...
Não me admirava que me quisessem ver pelas costas e o mais longe possível.
(...
Hoje, eram os novos amigos que necessitavam da protecção do Menezes!
A atitude dos portugueses era lastimável... Era importante que eu fosse testemunha para a História. Recordar mais tarde o sucedido seria separar trigo do joio. Por mais perturbante que fosse, este era um momento histórico para o novo país e o Luis Correia, tal como eu, não estava disposto a perdê-lo.
Quando cheguei ao Hotel Portugal havia já uma pequena multidão acumulada. Tentei furar e tirar a chave do quarto que reservara em permanência. Junto da recepção, o rádio do sr. Marques estava com o volume altíssimo. Era possível, mesmo com toda aquela gente, escutar algumas das palavras transmitidas. Tive certa dificuldade em escutar a emissão da tal "Rádio Moçambique Livre" mas, quando o "Grito de Guerra dos Comandos foi transmitido fiquei arrepiado.
"Mama Suma...  Mama Suma...  Mama Suma... Aqui o Mocho chama chama Bravo em Montepuez ... Mocho chama o Bravo e o Leopardo em Bravo-Alfa- Quatro... Mocho chama a família na Grande Casa do Norte..."

Mocho era o nome de código do capitão Gonçalo Fevereiro, ex- comandante da 6ª CCMDS de Moçambique, aquele do Major Freitas que, três semanas antes, tinha regressado definitivamente a Portugal. Mas neste momento o Mocho, já na peluda, chamava os seus ex-companheiros para se reunirem no Parque José Cabral, a dois passosda morada do Dr. Torres Fevereiro, nas trazeiras do Hotel Polana.
A revolução estava agora nas primeiras horas, naquelas horas de espontaneidade, cheias de raiva e furor. A população da capital tinha sido sujeita durante semana, a insultos na rádio e nos jornais. Na sexta-feira (6 de Setembro), os "laurentinos" foram provocados pela visão da bandeira portuguesa ser arrastada pelo chão.
Atingido o limite, a tensão nervosa explodiu no dia seguinte. Faltou-lhes porém a experiência para, num gesto simbólico, protestarem contra as decisões que tinham sido tomados em Lusaka.
Nas mensagens de rádio que todos nós podíamos ouvir , Mocho chamava Bravo, o Major Belchior e os Comandos na Grande Casa do Norte, para se juntarem aos revolucionários de Lourenço Marques, para acabar com os canalhas que venderam Moçambique à Frelimo.
Eram já 21h00 quando Luis Correia voltou ao hotel.
-- Então Luis? -- disse eu--Conta lá... o que se passou? ...
-- Os homens da Frelimo chegaram -- disse ele -- e estão furiosos com as manifestações em Lourenço Marques. 

(...
Na breve reunião que tiveram no QG com o coronel Manuel Souza Menezes e o capitão Aniceto Simões, chefe da CHERET (Chefia de Reconhecimento das Transmissões) e o mais activo membro do MFA, os homens da Frelimo manifestaram abertamente o seu desgrado pela brandura com que as Forças Armadas Portuguesas estavam a actuar contra os colonialistas reaccionários e o perigo que havia de contra - revolução se espalhar a outras capitais provinciais, como Nampula. Sebastião Mabote confirmou a necessidade dos portugueses se manterem responsáveis pela segurança por muito tempo!

O então capitão Aniceto Simões, Chefe da CHERET
O coronel Menezes, como se previa, assegurou aos membros da Frelimo que em Nampula não iria haver qualquer perigo de rebelião. Deu aliás ordem imediato para o reforço da segurança local. As patrulhas da Polícia Militar, com a mobilização de outras unidades disponíveis mo QG, iriam controlar toda a cidade e arredores podendo vir a contar, disse o Menezes, até com os Comandos.
Para os fazer mais felizes, o Menezes deu ordem à Guarnição do Sector para cercar a cidade e bloquear todas as entradas e saídas, prometendo também ao Chipande que qualquer tentativa reaccionária seria drasticamente suprimida!.
O Estado Maior do comandante-chefe estava numa situação desesperada. Membros do  MFA, pressionados pela Frelimo, tinham solicitado ao general Orlando Barbosa para dar ordens precisas de esmagar a rebelião em Lourenço Marques. Mas o general, homem muito ponderado (bendito seja o seu velho e nobre  coração), não queria provocar um banho de sangue. Recusou actuar precipitadamente  como exigiam a Frelimo e o MFA.
Luis Correia disse-me ter encontrado por acaso o general que lhe perguntou se eu estava bem e se ele, Luis, tinha a certeza de me proteger de  qualquer tentativa de sequestro.
Veio-me logo à memória o limite de oito horas que o coronel me tinha outra vez imposto para abandonar Moçambique quando nos despedimos na base da Força Aérea. Ele sabia que eu morava no Hotel Portugal. Com a disposição com que se devia estar naquele momento, pensei, o melhor era tomar uma medida de emergência! Decidi então que seria mais seguro desaparecer do hotel.
Como nova "sede" escolhi um edifício quase à frente do Hotel Portugal que ainda estava em obras. Era o local ideal! 
Depois de escurecer, e de me ter ajudado a mudar de "apartamento", o Luis foi outra vez para a cidade.
O Luis regressou meia hora mais tarde, Tinha com ele dois sacos, um de lona e um outro, mais pequeno, que trazia debaixo do braço. Na mão, uma garrafa de whisky embrulhada numa página do Notícias.
-- Para nos aquecer.
-- Estás agora em boa companhia . -- Disse ele, retirando com calma dois rádio/ receptor, duas armas automáticas com os respectivos carregadores, munições e cinco granadas de mão defensivas. 
-- Talvez, daqui a uns minutos, venhas ter necessidade de mais do que isso! -- afirmou ele com um sorriso sarcástico.
-- Porquê? -- perguntei -- Fazes tensão de atirar contra os militares?
-- Nada disso! Mas  quando o Barbosa me perguntou se estavas seguro na minha companhia, tomei as suas palavras como ... um aviso de amigo! 
Não sei de onde possa vir o perigo mas uma coisa é certa: O Menezes odeia-te e eu não vou facilitar a vida a ninguém que te  queira fazer mal, Giancarlo. Sou responsável pela tua segurança até deixares Nampula! Já agora toma nota, ficas a saber que a 1ª companhia da TPDF (Forças Armadas da Tanzânia) chega a Nampula dentro de poucas horas.
-- O quê? e nós aqui escondidos de um hipotético inimigo que não sabemos quem é ...
-- É verdade, Giancarlo. Só há poucos minutos tive conhecimento que, além dos regulares da Frelimo e alguns "ex-terroristas", a força conjunta vai ter também militares da Tanzânia em quem Samora Machel confia plenamente. Neste momento ... o Menezes vai organizar tudo!
-- Não posso acreditar! Estava tudo planeado à revelia da população moçambicana!
-- Não podes? Bem, é verdade... a contracção das forças militares portuguesas vai ser acelerada nas próximas horas. Já se sabe como vai ser a passagem do testemunho. O programa inclui todos os grandes aquartelamentos que vão ser utilizados no futuro pela Frelimo. O acordo só foi assinado hoje  mas cada um fez como melhor entendia! O Batalhão de Nangade, por exemplo, chegou há oito dias a um acordo "particular" com a Frelimo e, a 1 de Setembro, entregou ao inimigo aquela base avançada que domina parte da fronteira da Tanzânia com a Moçambique. Não havia qualquer hipótese de segurar a situação ao longo do Rovuma mais semana. A palavra de ordm tem sido, como tu sabes melhor do que ninguém : Regressar ao "puto" sem mais baixas.

...)
Como tudo parecia calmo, fumei um último cigarro e caí num profundo e inquieto sonho. Tinha sido um dia extremamente longo o 7 de Setembro!
Desde  a meia-noite que o aeroporto de Nampula estava controlado pelas Forças Armadas e que todos os acessos eram verificados pela Polícia Militar. O  coronel Menezes dera insreuções precisas  paraselar a estrada que ligava a base aérea à cidade.
Foi assim possível transportar os elementos da Frelimo que vinham para Nampula. Para eles já estavam aprontadas as instalações que a DGS, possuía perto de Nampula junto às antenas das suas transmissões de rádio.
Ali permaneceram até quinta feira seguinte ( 12 de Setembro) sem qua a população de Nampula disso tivesse conhecimento.
Entretanto, em Nacala, continuavam a aterrar aviões da East African Airwais transportando elementos afectos à  Frelimo. Depois de serem devidamente equipadas, estes embarcaram numa fragata da Marinha Portuguesa que os transportou para Lourenço Marques ... Uma cortesia dos colonialistas, racistas e capitalistas das Forças Armadas!
Era cerca das duas da madrugada quando o Luis novamente me acordou. Tinha subido cinco andares e estava visivelmente cansado mas mais descontraído do que quando, algumas horas antes, nos encontrámos no Centro Hípico. Nem me surpreendi quando me convidou para dar uma volta pela cidade.
À excepção do edifício do Governo Civil, que estava protegido por um grupo de civis armados até aos dentes. Eram os homens da OPVDC, a Organização dos Voluntários da Defesa Civil). Luis era bem conhecido dos civis e dos militares de Nampula e tinha credenciais para circular em qualquer  sítio, incluindo as áreas restritas do QG.

                                          

Não tivemos qualquer dificuldade em ultrapassar os postos de controlo e no regresso, antes de irmos para o aeroporto, parámos no edifício governamental onde o Luis tinha o seu gabinete de trabalho. Ali podemos ver que a Defesa Civil se preparava para uma possível invasão vinda dos suburbios mais degradados, onde residiam os macuas, apoiante de sempre da Administração colonial portuguesa. Refugiados ou assaltantes, ninguém o sabia, não deixaram de tomar as providências que julgaram necessárias.
Quando nos dirigíamos para o aeroporto, pelas 02h30, seguia em sentido contrário uma coluna da Polícia Militar que parou para nos controlar ... e cumprimentar o Luis. Aproveir«tei para contar os veículos: dez camions e  duas AML Panhard. O aeroporto estava completamente cercado  por forças militares. Tive a  clara percepção de que algo muito importante estava para acontecer. Seria esta a surpresa que o Luis tinha preparado?
Nampula
Domingo, 8 de Setembro de 1974

O relógio marcava exactamente as 03h00. Um sibilante avião de passageiros da East African Airwais sobrevoou-nos  a baixa altitude e, depois de completar uma volta pela nossa direita, fez a aproximação final à pista onde aterrou minutos depois.
A bordo do jacto,um BAC 1-11, vinham cerca de oitenta elementos da primeira companhia da Frelimo o, pelo menos, foi isso que nos disse, um pouco mais tarde, o comandante do avião acabado de chegar da Tanzânia.
Mais uma vez o Luis não me tinha enganado: Eles estavam a chegar.
Aproveitando a ocasião do coronel Menezes estar fora de visão, tentámos chegar à fala com alguns dos "passageiros". Mas como, se não falavam uma palavra em português? Havia entre eles muitos macondes, mas como havia elementos deste grupo étnico-linguístico no sul da Tanzânia, ficámos na dúvida se seriam todos moçambicanos.
Era suposto este ser o primeiro contingente de soldados da Frelimo que vinham integrar a Força Conjunta, prevista no anexo secreto ao Acordo assinado no dia anterior na capital zambiana. Eram mesmo as primeiras forças transportadas de avião directamente da Tanzânia para Moçambique.
Logo que o avião se imobilizou, os passageiros desembarcaram e formaram com disciplina e aprumo. O Menezes, acompanhado pelo Chipande, Rangel de Lima e pelo vice-chefe do estado maior da Frelimo, Sebastião Mabote, aproximou-se para inspeccionar este grupo de militares. Mabote, dirigiu-lhe umas palavras de boas vindas e, do nosso ponto de observação, tivemos então a oportunidade de verificar  que parecia ser uma tropa "fandanga"!
Do primeiro andar do aerodrómo, evitanso sermos vistos pelo Menezes, pudemos que confirmar que alguns deles não estavam completamente fardados, outros não tinham qualquer peça de fardamento militar e muitos não vinham calçados. Mas a maioria deles estava armada! Alguns traziam mesmo o RPG7, uma arma anticarro soviética. Como é que a EAA aceitou embarcar com armas no BAC - 1-11, é um mistério!

Chegada de"Tropas" da Frelimo em Nampula
Embora os seus comandantes estivessem orgulhosos do pessoal que acabava de chegar. Chipande compreendeu que os~seus homens necessitavam de ser equipados convenientemente para poderem ter um certo impacto nas ruas das cidades ou vilas do novo país.
Os "conquistadores" tinham de apresentar-se como tal perante o povo que era suposto ter sido "libertado", ou conquistado, como era o caso dos macuas. Assim os frelimos, aguardados com ansiedade por ambas as partes, foram imediatamente transportados de viaturas para a base aérea de Nacala, situada a cerca de 180 Kms a leste de Nampula.
Logo que ali chegaram, receberam fardamentos novos e mais armamento que foi aerotransportado para lhes ser entregue mais rapidamente. Este tinha vindo das arrecadações do Serviço Material onde estava concentrado o equipamento capturado ao inimigo!
Durante 72 horas foi efectuadauma verdadeira ponte aérea entre Dar-es-Salam, Nacala e Lourenço Marques. Foi esta a mais bem organizada operação de logística feita pelos portugueses desde a "Operação Nó Górdio" de Junho a Julho de 1970. Estavam todos muito orgulhosos (em especial coronel Manuel Souza Menezes) com o trabalho efectuado!
Joaquim Alberto Chipande

Lourenço Marques
Domingo, 8 de Setembro de 1974

Logo que amanheceu, no Hotel Portugal tivemos confirmação de que o Rádio Clube em Lourenço Marques continuava ocupado por elementos estranhos ao serviço da emissora. Durante  noite de sábado  (dia 7), milhares de civis concentraram-se em redor do edifício da emissora oficial para impedir que as Forças Armadas desalojassem os revoltosos. 
Autodenominando-se como Movimento de Moçambique Livre (MML), um pequeno grupo assaltou durante a mesma noite o aeroporto de Mavalane e passou a controlar, a partir da torre, todo o movimento de aeronaves civis que desejassem utilizar as pistas.
Havia ainda o AB 8, situado dentro do mesmo perímetro, onde se encontrava o tenente coronel piloto-aviador Jorge Ribeiro Cardoso que manteve a operacionalidade das pistas para voos militares. Foi ele no dia seguinte, por volta das 10h00, libertou o aeroporto civil. Colega de curso na Escola do Exército em 1956 de Jacinto Veloso, o ex-piloto fa FAP(desertor), agora elemento chave  dos Serviços de Segurança da Frelimo, Ribeiro Cardoso de grande ajuda a Veloso no período de transição.

Jacinto Veloso
Mas outros problemas mais graves estavam a ser preparados para os habitantes de Lourenço Marques. Enquanto os rebeldes ocupavam o aeroporto, a população dos "bairros do Caniço" que rodeavam o aerodrómo, organizou-se em auto-defesa. Começaram construindo barricadas ao longo da Avenida Marechal Craveiro Lopes, a artéria que liga o aeroporto à cidade,. Mais tarde com o início da contra-revolução organizada por simpatizantes da Frelimo, foi ali que se iniciou a mortandade  que ficou ligada à data do 7 de Setembro.
                                                                    ***
 
Nampula
Domingo, 8 de Setembro de 1974

Às 08h30 estávamos à espera que levantassem voo , de Nampula, com destino a Lourenço Marques, vários Noratlas da FAP transportando grupos de combate das Companhias de Comandos. O Coronel Menezes já tinha o controlo operacional do QG. Era só que ele dava as ordens. A terminar, disse ao comandante dos Comandos, major Belchior, para acabar com a ridícula situação na capital.
O coronel Menezes estava determinado em fazer calar a chamada "Voz de Moçambique Livre", com ou sem derramamento de sangue. Mas o major Belchior não concordava em utilizar a força dos seus comandos contra os civis desarmados e cidadãos portugueses, embora muitos já nascidos em Moçambique. Finalmente conseguiu fazer valer a sua opinião junto do comandante-chefe, general Barbosa. Este autorizou-o a deixar os comandos na Beira, continuando sozinho para Lourenço Marques, para tentar dialogar com os revoltosos e só depois, se necessário, dar ordem de avanço aos homens da 1ª74 CCMDS de Moçambique.
A razão da decisão tomada pelo general Barbosa de aceitar a sugestão do major Belchior paea que seguisse sozinho um Táxi-aéreo fretado da Beira para Lourenço Marques, deve-se ao conhecimento que ambos tinham da situação sóciopolítica de Moçambique. Ambos sentiam que havia necessidade de, através de meios menos agressivos, tentar desmobilizar os cabecilhas do MM. Em Lourenço Marques dizia-se que estava ligado ao movimento FICO, chefiado por Gomes dos Santos.
Manuel da Glória Belchior já tinha o seu plano para tentar resolver o assunto que o levava a Lourenço Marques.  O Rádio Clube continuava a transmitir o apelo feito pelo Mocho, ex.capitão Gonçalo Fevereiro, ao Bravo, Belchior, para estabelecer contacto com os comandos que se encontravam dentro da emissora desde o dia anterior.

Manuel Gomes dos Santos. O popular locutor Manuel
Esta era uma boa justificação, achou o Belchior, para se apresentar à civil no Rádio Clube e lá dentro, depois de  escutar os ocupantes , avaliar a situação e ver o que seria mais conveniente fazer para terminar a ridícula situação, tal como classificada pelo Menezes.
O general Barbosa, como já descrevi, concordou logo com o "Plano Belchior" mas, o meu "amigo" Menezes ainda não estava convencido. Foi ali que o Belchior jogou a última cartada.
-- Tenho informação -- disse ao general -- de que no aeroporto de Lourenço Marques estão centenas de  ex-comandos moçambicanos, com as famílias dos actuais comandos da CCMDS 1ª/74  e outras, que vão tentar evitar a nossa acção contra a emissora. Desembarcar em Lourenço Marques com uma ou duas companhias de Comandos para desencadear uma qualquer acção no Rádio Clube vai resultar numa confusão muito grande.
Foram as última palavras do Belchior antes de regressar à pista de Nampula no mesmo jeep da Secção de Apoio Logístico aos Comandos.
Assim, depois de ter deixado os seus homens devidamente apoiados na Beira, Belchior voou paraa capital numa avioneta fretada.


Lourenço Marques
Domingo, 8 de Setembro de 1974

Eram nove da manhã quando o MFA lançou a partir de Lourenço Marques a sua ofensiva psicológica. Utilizava para isso o emissor regional de Nampula, com que divulgava a sua própria contra-informação.
Em Lourenço Marques, os revoltosos pensavam controlar todas as emissoras de rádio. Estavam enganados. Apenas o emissor principal estava controlado pelos revoltosos. Os outros emissores, os que transmitiam programas em língua nativa, não estavam em rede e continuavam a dar notícias e música à revelia da estação principal.
Assim sendo, a acção psicológica do Exército escolheu o Rádio Clube de Nampula para interferir com a chamada Rádio Moçambique Livre, utilizando o mesmo comprimento de onda para desmentir o que os revoltosos divulgavam.
Para espanto, dentro da mesma estação era possível, sem conhecimento uns dos outros, escutar o MFA "infiltrado" nas frequências de Nampula a retransmitir alguma informação que assim lhes chegava. Da mesma forma,em Nampula, muitos tinham sintonizado as emissões transmitidas de Lourenço Marques 

Lourenço Marques
Domingo, 8 de Setembro de 1974

)...
O Menezes não queria novas manifestações . Sobretudo neste momento. Depois de verificar que havia sempre a  possibilidade de movimentos rebeldes se manifestarem, o coronel requisitou a CCMDS 2045ª, que ficou instalada no aeroporto de Nampula aguardando as suas instruções. 
Por volta das 10h30, a calma da cidade foi interrompida com a chegada de um táxi aéreo proveniente da Beira que transportava os jornais das edições "piratas" que tinham sido feitas em Lourenço Marques por elementos ligados ao Movimento Movimento Livre. Com a aparição da imprensa vinda da capital onde se podia ver fotografias do que estava a acontecer em Lourenço Marques, começaram a correr rumores do que era necessário fazer o mesmo em Nampula. Temos que tomar conta da emissora local... 
Todos para o Rádio Clube!  eram estas as palavras de ordem que se ouviam nas esquinas e cafés da "Capital do Norte".
Elementos militares às ordens do MFA estacionados na gare do aeroporto de Nampula, julgando que a circulação dos jornais poderia aumentar a tensão, decidiram confiscar o carregamento. Os homens da  CCMDS 2045ª, ansiosos para tirarem a limpo as suspeitas de que alguns camaradas seus estariam envolvidos com os manifestantes de Lourenço Marques, ofereceram-se para o seu confisco e destruição. E assim o fizeram , com o agradecimento dos tais oficiais milicianos da Acção Psicológica e do MFA de Nampula..
O que se passou a segui ninguém conseguiu descobrir. Mistério? Meia hora depois, os jornais " revolucionários" estavam a circular no centro de Nampula e não chegavam para as encomendas, chegando um exemplar a custar uma "pipa de massa".


Com a ajuda do Jorge Cruz, Luiz arranjou um exemplar. Na capa havia uma fotografia aérea do Rádio Clube onde se podia ver milhares de pessoas a ocupar todas as artérias que circundavam a zona. Nas páginas interiores, muito mais fotografias com a cobertura total dos acontecimentos verificados desde sexta-feira  (6 de Setembro) até às 00h00 de domingo (8 de Setembro). Uma edição histórica, disse eu ao Luiz .
Os nampulenses estavam em ebulição. Os alferes da 5ª Repartição do coronel Passos, tinham razão. Os jornais foram a faísca que fez transbordar as emoções e que encorajou os  civis a libertarem a  sua cidade. Uma hora mais tarde já circulavam centenas de carros civis por todas ruas de Nampula. O edifício do Rádio Clube estava guardado por soldados do Batalhão de Engenharia. Pouco antes de eu regressar ao meu "quarto de hotel" , por volta das 12h30, ainda pude ver a forma como os civis tomaram conta da emissora: centenas de pessoas juntaram-se à volta do edifício, ocupando cada centímetro de espaço e assim encurralando os militares contra o prédio.
A certa altura vi alguns militares da CCMDS 2045ª, vestidos à civil, misturados com o povo na linha da frente . Foi ali que um dos "soldadinhos" da Engenharia, na tentativa de criar espaço à sua volta, resolveu dar um tiro para o ar,, convencido que a multidão recuaria. Enganou-se!
Dois "civis" que protestavam mesmo à sua frente e que afinal se revelaram ser elementos da CCMDS 2045ª, desfardados, sacaram-lhe a G3 da mão e deram-lhe coronadas até dizer chega. Os colegas não poderiam fazer nada pois estavam rodeados de mulheres, crianças e velhos que dali não arredava pé. Os minutos que se seguiram foram de assalto e tomada do edifício do Rádio Clube de Nampula. Cerca das 13h15 ouvia-se, através da emissora local: Nampula está livre! 
A multidão que tinha conquistado a estação de Nampula estava eufórica. Não havia já qualquer razão para eu continuar a dormir no chão do quinto andar de um prédio em construção. Recolhi tudo o que era meu e voltei para o meu quarto no hotel Portugal onde tinha o conforto de uma boa cama e água quente para tomar um bom banho.
Seriam umas cinco da tarde quando voltei a ver o Luíz que me veio procurar no meu quarto, A  confusão em Nampula era total!

Domingo, 8 de Setembro de 1974
17h30
Eu estava de volta ao Hotel Portugal e o Rádio Clube de Nampula continuava  nas mãos dos rebeldes, protegido do iminente assalto e resgate das Forças Armadas por uma multidão que não arredava pé. Luiz, depois de ter ajudado a transferir-me de novo para o Hotel, despediu-se de mim e partiu em direcção ao QG. Queria inteirar-se da reacção do coronel perante mais esta afronta dos nampulenses.
O tenente-coronel Nuno Alexandre Lousada, um oficial do MFA que participou nas negociações de Lusaka, tinha chegado a Nampula e trazia consigo a notícia que Samora Machel estava furioso com a atitude da população na capital. Numa emissão rádio de Dar-es-Salam, Machel teria feito um apelo, e uma ameaça, de que se a revolta não fosse imediatamente suprimida, iria solicitar o apoio das Nações Unidas e da Organização de Unidade Africana (OUA) para resolver o problema.

Lusaka, 7-9-1974. Machel a acusar o Ten.Cor. Lousada após o golpe do 7 de Setembro
~
Pouco passava das 17h00 quando saímos da recepção para a esplanada do Hotel Portugal. Pedimos dois cafés duplos e o Luiz afirmou:
-- O fim está próximo aqui em Nampula!
-- Que fim ?, perguntei.
-- O fim desta bagunça, Giancarlo. Daqui a exactamente dez minutos, dois helicanhões vão sobrevoar a zona à volta do Rádio Clube para dispersar o povo e acabar e acabar com o ajuntamento!.
-- Não posso acreditar! Quem será suficientemente louco para ordenar uma acção dessas contra civis desarmados?
-- O teu animal de estimação, meu amigo.
-- Queres dizer a besta do Estado-Maior?
-- Giancarlo, já te esqueceste do nome desse homem?
-- Dá-me nojo pensar nele e mais ainda pronunciar o seu nome!
-- Está bem Giancarlo ... Este "senhor" deu instruções para acabar com a fantochada. Não permiteque a sua "cidade" esteja na mão do povo nem mais umm minuto que seja.
-- Então, tu dizes quede um momento para o outro vão aparecer hélis sobre a cidade?
-- Sim, dentro de minutos...
Luiz não teve tempo de acabar de dizer o que tinha em mente. Nesse momento já se ouviam os rotores dos Alouetts a voarem tão baixo que quase tocavam nas antenas da Rádio Clube. Com o ruído, parámos de conversar e dirigimos-nos para o local. Ainda chegámos a tempo de ver as centenas de punhos erguidos em atitude de desafio quando os hélis fizeram a segunda passagem sobre a multidão..
Um dos helicópteros baixou aida mais e a multidão produziu um enorme ruído de desaprovação e raiva. Imediatamente ouvimos o som cadenciado dos tiros de canhão. Foram curtas rajadas feitas a uma altitude de cerca de vinte metros. Enquanto isso, o outro helicóptero fazia chover granadas de gás lacrimogéneo sobre os civis.
O efeito além de aterrador , foi eficaz. A multidão estava concentrada no pouco espaço que havia e o efeito  foi imediato. Viam-se com nitidez os canos dos canhões em brasa, com os projecteis a sair continuamente e o som a sobrepor-se ao ruído dos rotores. Metia realmente muito medo sentir as balas a passarem a escassos  centímetros das nossas cabeças. O povo correu em fuga sem olhar para trás. Perante as circunstâncias essa era a decisão acertada. O Luis que na debandada se atrasar um pouco em relação a nós, pode ficar para confirmar o que depois seria dito. O apontador do helicanhão tinha como alvo um pequeno campo desportivo que ficava na mesma direcção em que era supostp ter feito cair os projecteis destinados aos manifestantes!.
O estampido aumentou quando uma unidade da Polícia Militar, que estava escondida numa viela próxima, carregou sobre o povo.
Aos gritos, os PM atacaram em força os que mais se tinham atrasado na fuga. à coronhada e cacetada progrediram rapidamente contra homens, mulheres, velhos e crianças, para única "vitória" que tiveram na Guerra do Colonial.

Polícia Militar em Nampula

Quando já não havia ninguém em quem bater, os PM abraçaram-se e fizeram o sinal de vitória. A grande maioria da companhias de Polícia Militar de Moçambique, durante os dez anos de guerra não fez nada de importante a não ser prender soldados inebriados , mal fardados ou sem a necessária dispensa para sair dos quarteis. Agora, nesta única "batalha campal" que fizeram por ordem do coronel Menezes vingaram-se nos civis desarmados que tinham reagido à venda da terra que também era sua!.
-- O que estamos a presenciar -- disse o Luiz quando ficámos a sós --, é o princípio do ódio ... não vai parar aqui! Assim nunca poderá haver um futuro verdadeiramente democrático e multirracial em Moçambique. Sempre trabalhei para ajudar a construir um país onde pretos e brancos pudessem viver juntos...
-- Achas que vai haver uma guerra civil? -- perguntei eu.
-- Não digo isso ... mas as clivagens começaram agora e ASSIM as ferida não podem sarar. A actuação da PM , guarda pretoriana do Menezes, foi repugnante. Porcos !



Lourenço Marques
Domingo, 8 de Setembro de 1974
À tarde
Quando o Belchior chegou, a aerogare de Lourenço Marques continuava ocupada pelos manifestantes que esperavam a chegada  dos Comandos vindos de Nampula. Belchior encontrou um ex.fuerriel da 5ª CCMDS de Moçambique que lhe disse que se encontravam ali muitos amigos e familiares, vindos na esperança de ver os  comandos a chegar, pois tinham a "certeza" de que também estes não estariam satisfeitos com a entrega de Moçambique apenas à Frelimo.
Na messe dos oficiais, o major Manuel BELCHIOR Pôs de lado o camuflado e os galões e vestiu-se à civil. E assim foi para o Rádio Clube.

7 de Setembro. A multidão junto ao Rádio Clube

Quando lá chegou, misturou-se com a multidão e aproximou-se da porta principal. A determinada altura viu o ex-alferes Almeida, também da 5ª CCMDS de Moçambique (que até Fevereiro de 1974 estivera sob o comando do capitão Luciano Garcia Lopes) que estava dentro da emissora  mas que tinha vindo Á saída do edifício tratar de alguns assuntos. Este ofereceu-se para conduzir o Belchior ao local onde estavam o Mocho e o Daniel Roxo, o caçador que foi o chefe das "Milícias de Intervenção do Niassa".
Venha aqui meu comandante. O Mocho está farto de chamar por si.
Não terá qualquer problema para entrar ... são eles que o estão para estabelecer contacto! -- disse o alferes, forçando a passagem para chegar à fala com o segurança que controlava as estradas no edifício.

Francisco Roxo

Pouco depois, o verdadeiro "Cavalo de Troia" Belchior encontrava-se com o Fevereiro e com o Roxo e contactava os dirigentes dos "partidos" neo-formados. Estes tinham aproveitado a oportunidade que lhes fora dada para divulgarem a sua existência e o programa que desejavam implementar caso houvesse eleições livres para escolher um futuro de reconciliação nacional de Moçambique. Iniciou-se assim um diálogo "múltiplo" que durou praticamente oito horas e que só terminou quando todos compreenderam e "aceitaram" o "Plano Belchior"! Este estabelecia que o general Barbosa, que aguardava já em Lourenço Marques, deveria autorizar um prazo de 24 horas para que todos os que desejassem abandonar o país se aproximassem da fronteira com a África do Sul. Entretanto, na emissora, mantinha-se uma presença fictícia para despistar os inimigos, que já eram muitos.
Missão cumprida pelo Belchior! O general Barbosa concordou com este esquema e assim se pouparam muitas vidas. Na tarde de segunda feira (9 de Setembro de 1974), enquanto se mantinha a aparência do statu quo que no Rádio Clube, milhares de pessoas famílias inteiras, começaram o triste e trágico êxodo da capital de Moçambique para a fronteira da África do Sul.Ali os vizinhos do apartheidconfinaram a maioria deles aos campos de refugiaos, perto de Nelspruit para os fazer passar pelo "crivo"!

Aspecto da debandado sos  portugueses de Moçambique

Foi o princípio do fim de Moçambique e de qualquer possibilidade de entendimento. Quem beneficiou com esta situação? Não teria havido tanto ódio racial se, todos unidos,tivesse sido possível fazer uma reconciliação que permitisse que muitos brancos nascidos em Moçambique, famílias com três ou mais gerações, tivessem ficado para apoiar a construção do novo país.
Quem beneficiou com a destruição do Moçambique verdadeiramente livre?

                                                                     ***

Lourenço Marques
Final de 8 e início de 9 Setembro de 1974
Na altura da "libertação" do Rádio Clube de Moçambique pelas Forças Armadas do coronel Menezes, tiveram início na Avenida Craveiro Lopes (que ligava o aeroporto ao centro de Lourenço Marques) as cenas de intimidação levadas a cabo por habitantes do "Bairro do Caniço" contra as viaturas que transitavam na avenida.
Nem eu nem o Luiz Correia, estávamos em Lourenço Marques mas quem testemunhou o que se passou na capital fê-lo com bastante precisão e num relato minuto a minuto. O contacto dos radio amadores de Moçambique com o CR7 Jorge Cruz, dava-nos notícias ininterruptas do que se passava. Foi através deste rádio AM que recebemos informações sobre outro grave incidente no aeroporto de Mavalane. Ali, o comandante da AB8, tenente coronel piloto Cardoso, alvejou à queima roupa o Drº Carmo, radiologista do Hospital da Universidade, que esperava a esposa vinda de Tete no avião da DETA.
Não havia outra forma de chegar ao aeroporto sem atravessar o "Caniço", um dos bairros periféricos. Foi desta área suburbana, povoada por bairros de lata, que arrancou a "matança". Começou cpm barricas e obstáculos erguidos nos acessos a um dos lados da avenida. Logo depois, viaturas começaram a ser controladas,  revistadas e saqueadas.
Grupos de negros drogados, conscientes da sua superioridade numérica, começaram a atirar pedras contra  os carros ocupados por europeus. Não demorou muito mais tempo até que o primeiro branco fosse assassinado. 
Um táxi foi mandado parar ; levava uma pequena bandeira portuguesa. Não foi necessário mais nada ; arrastaram o condutor para fora e mataram-no à pedrada.

Lourenço Marques. 7  de Setembro de 1974

Depois deste episódio. o "Caniço" de Lourenço Marques endoideceu. O frenesim parou apenas na noite de terça feira, 10 de Novembro. "A Avenida do aeroporto", relatavam os radio amadores que comunicavam com o Jorge Cruz, "parece um cemitério a céu aberto".
Encorajados por agitadores comunistas que se misturaram com elementos universitários pró- Frelimo ( alguém reconheceu um estudante "maoista", um tal Dino Damasseno, que tinha pintado a cara de preto) que conseguiram organizar uma onda negra que era impossível parar. Outros estudantes e alguns "democratas" distribuíram aos habitantes do Caniço armas militares  do Batalhão de Caçadores 18. Isto passou-se na Rua de Nevala e com o consentimento do oficial de dia, ex-membro da Associação Académica e também maoista.

                                          
Reunião de estudantes Universitários em Lourenço Marques

Ali seria queimado vivo o conhecido Mario Lopes, técnico de radiologia do Hospital Miguel Barbosa, que me tinha examinado quando estive internado no hospital militar entre Junho e Julho.  
Os carros eram mandados parar várias vezes. Alguns não andavam mais de cem metros e eram novamente vasculhados. Quem escapou informaria mais tarde que muitos dos assaltantes pareciam drogados ou bêbados. Num acto de total barbaridade sujeitavam as jovens e suas mães às piores  torturas e sevícias, antes de as matar à catanada, ali mesmo, diante de crianças e maridos. Mais tarde, famílias inteiras foram queimadas vivas dentro das próprias viaturas. 
Mesmo dentro do "Caniço" as cantinas foram assaltadas e os empregados assassinados. Numa doidice sem limites saquearam tudo e destruíram tudo o que não lhes interessava. Não satisfeitos pelo tipo de "justiça" que estavam a administrar aos brancos, os bandos de extremistas da Frelimo voltaram-se contra outros negros, suspeitos de serem anti-Frelimo , matando-os aos milhares e "liquidando" mais umas centenas de "irmãos" cujo apoio  às forças "libertadoras" não parecia ser suficientemente forte. Era o reino do terror. Um reino que as autoridades civis e militares portuguesas nada fizeram para controlar! Estavam com medo!

Maria Leonor, analista da Faculdade de Medicina
   
Não foi só a PSP que não actuou, Foi também o Exército que, em muitos casos, se limitou a observar à distância o vandalismo e a crueldade da multidão, que em verdadeiro delírio, praticava todo o tipo de crimes.
Estou certo que milhares de vidas teriam sido poupadas se logo de início tivesse sido montadoa uma operação policial apoiada pelas Forças Armadas. Nada foi feito. Apenas ao MFA se poderá pedir uma explicação do sucedido, de tudo ter acontecido como aconteceu.
Exactamente quantas pessoas morreram nestas primeira 90 horas ninguém está habilitado a confirmar. Fontes oficiais segredavam que ultrapassara as 3500 vítimas, entre mortos e feridos graves. Já as notícias dos jornais sul-africanos aumentaram para cinco mil o número de mortos. Enquanto isso, as estimativas avançadas pelas polícias civil e militar apontavam para 9500 em todo o Moçambique, não incluindo claro, os desaparecidos!
O sangue de todos os mortos, negros e brancos, cria vingança.                                        

Uma das vítimas do 7 de Setembro. Quem seria?
                                                 
Nampula
9 e 10 de Setembro de 1974

Às nove horas tornou-se evidente que o comércio em Nampula não iria abrir nesse dia. A população da cidade estava fechada nas suas casas, "lambendo" as suas feridas. Embora mais tarde a PM tivesse 
apelado para que as lojas fossem abertas, os proprietários declinaram o convite e lojas e armazéns mantiveram-se fechados.
No Hotel Portugal, juntamente com o Luis Correia, fiz planos para abandonar Moçambique. Além de terminar as minhas notas, tinha de arranjar uma forma de enviar todos os meus documentos para a minha residência em Pretória.


Uma AML Panhard em acção

No dia seguinte (terça feira, 10 de Setembro), logo que amanheceu, uma longa coluna da PM avançou para a cidade e passou a circular escoltada por duas AML Panhard de Cavalaria. Era mais uma demonstração de força; o Menezes queria assim lembrar à população de Nampula quem era o verdadeiro "patrão" da "Capital do Norte". Durante a manhã, na recepção do hotel, tive um visitante que não conhecia. Vestia a farda da OPVDC e dissera que me tinha visto no dia anterior na companhia do Luis Correia quando o acompanhei ao Governo Civil, situado a uns cem metros de distância do Hotel Portugal.
Trazia uma mensagem verbal de uns comandos da 2045ª, ue se diziam "amigos especiais" e que necessitavam de me ver urgentemente. O "mensageiro" explicou-me que os comandos estavam escondidos na delegação sa OPVDC, situada no interior do edifício do Governo, e não podiam sair durante o dia.
Eram cinco. Dois deles reconheci da tarde do passado domingo, tinham estado entre a multidão que tentava conquistar o Radio Clube de Nampula.
Eram os mesmos que tinham desarmado o soldado da Engenharia que disparara um tiro para o ar. Ainda estavam vestidos à civil.
-- Obrigado -- disse-me um deles --, estamos muito agradecidos por ter vindo. Desculpe o incómodo, mas estamos com problemas graves. Esta  foi a razão porque pedimos para nos vie ver ... Para nós é extremamente difícil fazer qualquer contacto e só podemos sair daqui durante a noite ... A Polícia Militar anda à nossa caça!
-- O que é que eu posso fazer? -- perguntei-lhes.
-- Nós vimos o senhor no meio da população -- disse o outro, -- Sem dúvida que também notou a nossa presença na manifestação. Infelizmente não foi o único que nos topou. O nosso coronel Menezes também tinha lá os seus olheiros, vestidos à civil, que iam fotografando a multidão ... eu reconheci um furriel fotocine e ...
-- Então ?
-- Ontem à noite, quando estávamos na tasca da rotunda do hospital civil, o furriel estava na mesa ao lado. Reconheceu-nos das fotografias que já tinham sido reveladas e avisou-nos que tínhamos sido requisitadas pela PM para referenciar todos os suspeitos que fossem do movimento que assaltou a estação. A lista já deve ter sido feita e nós podemos ser referenciados por estarmos desde a meia-noite de domingo ausentes da companhia.
Eram cinco jovens mas só dois falavam. Estes representavam também os comandos que, em Nampula e em Lourenço Marques, tinham participado nas manifestações coM os civis. O que tinha falado prieiro, continuou:
-- O tenente comandante da OPVDC, confirmou que ninguém da Defesa Civil será preso pelos militares mas que já há uma centena de civis e militares presos no calabouço do quartel da PM.
-- Bom, o que quer que faça?
-- Oiça nós  conhecêmo-lo quando esteve no Batalhão em Montepuez. Aqui estaremos seguros por mais umas horas mas sem a sua ajuda não temos hipótese de sobreviver ... Não podemos regressar à 2045ª, seria uma loucura! Somos soldados e não temos nem dinheiro nem meios para escapar.
Símbolo da 2045ª Companhia de Comandos

Agora falavam todos ao mesmo tempo ! Fiz sinal para parare e disse-lhes que faria o que me fosse possível. Antes de nos despedirmos dei-lhes o dinheiro que tinha à mão  e uns cigarros. "Ficam aqui calminhos. Vamos ver-vos outra vez daqui a unas horas", disse-lhes eu, saindo do edifício governamental.
"Este é o tio de problemas que me preocupa. Vamos ver o que podemos fazer por eles" , disse o Luis Correia quando, na esplanada do Hotel Portugal, praticamente vazia, lhe contei o que estava a acontece. "São as perseguições quevão ter lugar, especialmente em Lourenço Marques, que eu mais receio, Giancarlo. Mesmo assim temos que fazer qualquer coisa por estes tipos ... Tenho pena deles. Que futuro podem ter em África  sem ninguém para os ajudar. Aguarda aqui no Hotel por um mensageiro... Vou ver o que é possível fazer".
Ao final da tarde tive a visita de outro desconhecido que me entregou um envelope fechado que eu deveria fazer chegar aos cinco comandos. Tal como me fora solicitado, fui entregar a encomenda. Não esperei que fosse lida ... 
Tinha a minha reputação de jornalista a  defender. Mas confesso que a situação era deveras interessante! Mais tarde soube o que se passou. Mal escureceu, os cinco comandos "encontraram" o Land Rover de sete lugares que os esperava do outro lado da praça, muito perto da residência do governador de Nampula. A carta que lhes entreguei era dum amigo do senhor Lapido Loureiro endereçada a este funcionário do Governo de Vila Pery, caso os cinco viessem a ter algum problema com os rodesianos na obtenção de asilo político.
O Governo de Salibury tinha muitos contactos com o Governo da província de Manica e ajudavam-se mutuamente como "bons vizinhos", 
Depois de ter brindado à saúdedos "cinco" da CCMDS 2045ª. Luis disse-me  que tinha falado ao telefone com o Belchior. Era curioso!
-- Queria saber se estava tudo bem contigo e perguntou se eu sabia que o Orlando Barbosa termina a comissão amanhã, quarta-feira.
-- Que telefonema estranho, Luis ...
-- Não, Giancarlo.. Cheira-me a aviso de que já não há mais protecção para ninguém depois de amanhã!
Chegara a hora de eu regressar a casa.
Passava das 21h00 quando o Luis se despediu. Teria ainda trabalho até à meia noite.~
Logo na manhã do dia seguinte (quarta-feira, 11 de Setembro), Luis informou-me que iria à Beira despedir-se do general Barbosa e que aproveitaria a viagem para visitar o seu amigo Drº Cunha e Sá, em Vila Pery.
Em Nampula disseram-me que "havia movimento" de Comandos em Montepuez. Mais tarde, em Lourenço Marques, em Outubro, recebi uma informação escrita relatando os acontecimentos tal como foram vistos pelo lado dos Comando



                                                               ***
 
Montepuez
 11 de Setembro de 1974
Às09h00, o comandante da CCMDS 2043ª recebeu a mensagem nº 6985/ C74 proveniente da 3ªREP/CC/QG/RMM. A 2043ª entra em situação "vermelha", estado de alerta para ser transferida para Lourenço Marques.
Os "justiceiros da2023ª" estavam à espera do cessar-fogo desde a última operação na picada Nancatari- Mueda, nos dias 2 e 3 de Agosto. Praticamente até 8 de Setembro, a companhia tinha ficado numa situação de "descanso-alerta-vigilância". Agora teve de se preparar nova missão que a tropa especial, Pára-quedistase Fuzileiros, mesmo a "pé" podia  ter feito. Tivemos que nos preparar rapidamente as bagagens para uma missão "especial" em Lourenço Marques.
Poucas horas depois, sob o comando do capitão João Ventosa, a CCMDS 2043ª foi levada em duas levas de DC3 Dakota da FAP para o aeroporto de Ancuabe e depois para Lourenço Marques, de Boeing 737. Ali chego cerca das 03h00 horas de quinta feira, dia 12, iniciando a sua acção a fim de repor a ordem na cidade, pois, disse-me o "Marroquino": a cidade estava num caos total.

Montepuez, o Cap. João Ventosa a receber o guião da 2043 CCMDS

A causa principal da ida dos Comandos seguindo a ordem do coronel Menezes que já estava aquartelado na capital moçambicana, foi, disseram no QG ao comandante da companhia , a "morte do único cirurgião e também do único anestesista que havia disponíveis na cidade de Lourenço Marques". Os dois foram queimados vivos no interior dum carro regado com gasolina e incendiado.
"Necessitaram de quinze dias  para reporem a ordem na cidade e cumprir a missão", disse-me um alferes da 2043ª. "Nunca dei  tanto tiro na minha vida, exceptuando na instrução durante o curso de Comandos!".
"Após termos cumprido a missão", contou-me o Capitão CMD Ventosa , "fui falar com um oficial de operações que já conhecia de Tete durante a nossa primeira intervenção, quando este estava colocado na famosa ZOT. Informei-o de que a nossa missão estava cumprida e lembrei-lhe a existência em Lourenço Marques, de duas Companhias de Pára-quedistas e dois Grupos Reforçados de Fuzileiros (GRF). Estes , fiz notar ao oficial, garantiriam a segurança e ajudariam o esquadrão da Polícia do Exército (PE) local, caso fosse necessário.O oficial fez orelhas mocas. Já passaram 36 anos! Ainda hoje não obtive resposta..
Na quita-feira (12 de Setembro) já se sabia que o novo alto-comissário não seria Melo Antunes, mas o marinheiro de águas turvas, almirante Victor Crespo. Foi a única satisfação que o MFA deu ao general Spínola.
Ouve uma razia nas estruturas das Forças Armadas em Moçambique e nunca se saberá o que realmente aconteceu. Regressaram a Lisboa o general Orlando Barbosa e o seu segundo comandante, brigadeiro Frade Gravito.
Ao mesmo tempo, levantaram voo para a metrópole o brigadeiro Eurico Gonçalves e as três pedras base do Estado Maior do Comando Chefe: o coronel Correia da Cruz, das Informações Militares, o coronel Seixas, da 3ª Repartição e o coronel Passos, da 5ª Repartição, guerra Psicológica.
De Portugal chegaram o brigadeiro Costa Pinto, novo comandante da Região Militar (Exército) que veio de Lisboa para Nampula. Com ele, os "famosos" colaboradores da Frelimo: o capitão de Infantaria Lopes Camilo e o capitão de cavalaria Lopes Baiã, que acompanhava o novo alto-comissário


                                                               ***
 
Sexta-feira
 13 de Setembro de 1974
Decidi que estava na hora de abandonar Moçambique. Tinha saído de casa a 21 de Maio e estávamos quase a meio de Setembro. Era muito tempo.
Decidi tomar a mesma rota que me tinha trazido quatro meses ants da Rodésia de Land Rover, via Untali até Nampula. Tinha já despachado uma grande quantidade de documentos através de amigos, pilotos de táxi aéreo. Em breve a Frelimo estaria a controlar os postos de fronteira e eu não queria ter qualquer problema com as bagagens que transportava, especialmente com a Leica e os últimos rolos de fotografias.
O meu Land Rover estava parqueado no Centro Hípico,, por especial deferência do Luis Correia desde que  eu tinha seguido com os militares para  Ilha de Moçambique. havia muito para carregar e a luz  no Centro era fraquíssima. Primeiro as malas, depois as lembranças, os sobressalentes para o veículo e, por último, a reserva de combustível, óleo e água nos respectivos tambores . Na actual situação de Moçambique seria difícil encontrar qualquer apoio em estações de serviço, se é que estavam abertas ... Eu sabia que a viagem ia ser longa e difícil.

CAPÍTULO 9

A entrada triunfante da Frelimo na Beira.
Saída de Nampula e regresso à África do Sul
Acidente com "terroristas" que bloqueiam a estrada para o rio Zambeze
Outra vez para a Beira, de comboio

Depois de me despedir dos meus amigos que ainda estavam em Nampula, deixei o Centro Hípico às quatro da manhã. Quase de imediato a viagem começou a complicar-se. Conduzia há menos de duas horas e meia, quando um dos pneus da frente explodiu, fazendo o veículo perder a direcção. Depois de se ter descontrolado durante um breve mas interminável espaço de tempo, o Land Rover, ficando de rodas para o ar.
O Land Rover tinha dado uma volta completa antes de aterrar sobre o tejadilho. Arentemente estava muito danificado. Regressei à estrada e, pouco depois, fiz alto a um carro que passava. Perguntei ao condutor se podia levar uma mensagem para a 8ª CCMDS, que eu sabia estar estacionada no Alto Molócué, a cerca de 60 Kms de onde tivera o acidente.
Três horas mais tarde, um grupo de Comandos da "Hatari" estava junto de mim. Vinham com uma Berliet e um reboque de socorro montado em cima de outra Berliet. Vinte minutos de manobras depois, içam o Land Rover para cimo do camião socorro e seguimos todos para o Alto Molócué.
Com a Frelimo a tomar conta do terreno, o nervosismo e quem sabe o medo, começavam a instalar-se. Uns dias antes de eu ali chegar, disse-me um dos alferes, alguns comandos da "Hatari" tinham-se envolvido numa aguerrida discussão com homens  dos GE, Grupos Especiais" que davam "vivas" à Frelimo. As palavras foram seguidas de insultos, daí terem chegado a uma troca de murros acabando a tiro.
Resultado:dois GE morreram. Uma investigação, disseram-me, foi iniciada e, como em tantos destes casos, mais tarde arquivada sem que quaisquer acusações fossem feitas.
A Frelimo tinha já chegado à Vila de Mocuba e Bonifácio Gruveta, um ex-mecânico que mais taede seria nomeado governador da província da Zambézia (território praticamente do tamanho de Portugal), era o representante da Frelimo

Bonifácio Gruveta

Quando chegou à Vila de Mocuba, a primeira coisa que Gruveta fez foi alterar as habilitações requeridas para obter uma licença de condução. As regras do velho regime estipulavam que os candidatos deveriam possuir um certificado de 4ª classe. Gruveta "relaxou" a lei de forma que quaklquer um que soubesse assinar o seu nome ficaria habilitado. Observadores politicamente incorrectos afirmavam que tal mudança se destinava a que ele também pudesse conduzir uma viatura.
Foi o major Moura, comandaste do Batalhão de Infantaria de Mocuba e conhecido apoiante do MFA., que, durante o jantar, nos contou a história do Gruveta. Tínhamos comido bem e bebido melhor. O vinho era razoável entre um copo e outro o major Moura descaiu-se, dizendo: como devem compreender, meusamigos, o que vou dizer é totalmente confidencial. Bom, sabem ... Recebi ordem de Nampula para para bloquear  todas as estradas e picadas que pudessem ser utilizadas pelas companhias de Comandos durante a revolução em Lourenço Marques.O QG exigiu que, além de bloquear estas passagens, devia fazer parar qualquer movimento de Comandos. Não fiques ofendido amigo Carvalho, continuou o major Moura, estas ordens vinham de Nampula e,  como sabes, eu sou um ferveroso executor das instruções que me transmitem.
Depois de regressarmos de Alto Molócué, carregados com comida e outro material logístico, não voltei a ver o capitão João Carvalho. No aquartelamento da 8ª CCMDS de Moçambique passei a maior pare do tempo à conversa com os alferes que, embora no início me tratassem com suspeição, começavam agora a relaxar e a falar abertamente.  
Depois de decidirem que podiam ter confiança em mim, confessaram que 70 por cento deles não queria regressar a Montepuez.
-- Estamos a pensar ir para o Malawi ou para a Rodésia  -- confiou-me um dos alferes . -- Naturalmente que levaremos todo o  armamento pessoal da companhia que pudermos. Tecnicamente falando, não teríamos problemas em cobrir a distância até à fronteira e, como somos muitos, teríamos facilidade em resolver qualquer encontro com a Frelimo caso esta nos tentasse bloquear.
-- Você é maluco -- disse-lhe.
-- Pode ser que  sim, disse o alferes, -- Mas vamos fazer isto de  qualquer maneira. Já está decidido!
De tarde o mesmo alferes chamou-me à parte e disse:
-- Olhe, nós tivemos uma reunião e ficou decidido que o melhor ea irmos para a Rodésia.
--- OK! --  disse eu -- E então?
-- Pode fazer-nos um favor? -- prosseguiu o jovem oficial
-- Se você acha que posso ajudar, com certeza!
-- Quando chegar a Untali, poderia avisar as autoridades rodesianas que nós vamos a caminho? Seria melhor que elas soubessem antes, pois o nosso grupo não é pequeno e iremos necessitar de tudo aquilo que seja possível.
-- Quantos serão? 
-- Seremos no mínimo 40, com quatro Berliet e seis Unimog com morteiros e metralhadoras.
-- O capitão Carvalho sabe disso?
-- Não. Não o queremos implicar.
-- Um telegrama para os rodesianos está bem para vocês?
-- Sim!
-- OK. Vou fazer isso.
-- Obrigadíssimo, Giancarlo
-- Nem penses nisso. É um verdadeiro prazer!
-- Ah! Mais uma coisa ... Se os rodesianos não souberem da nossa chegada poderá haver perigo na fronteira! Não nos queres enviar uma mensagem?
-- Correcto, vou fazer isso.
-- Obrigado mais uma vez, Giancarlo ... Ciao
-- Ciao.
O Major Jaime Neves a entregar à 8ª CCMDS o seu crachá
O mecânico da companhia acabou de reparar o meu Land Rover na tarde de 18 de Setembro e eu estava a empacotar quando o capitão Carvalho mandou formar a companhia na parada.
Homens, disse ele aos Comandos, esta manhã recebi uma ordem do alto--comissário em Lourenço Marques que diz o seguinte: Para acelerar o processo de descolonização, todos os Comandos e Forças Especiais, Grupos Especiais e Grupos Especiais Pára-Quedistas são ordenados a regressar aos respectivos Batalhões, onde serão desarmados e exonerados do serviço activo. É tudo, meus senhores. Obrigado!
A breve ordem de Lourenço Marques concretizou, no dia 18 de Setembro, o dia em que todos os soldados nascidos em Moçambique tinham "receado" desde o "golpe" em  Lisboa. Para eles significava que a sua carreira militar tinha acabado.
Da forma como viam as coisas, as suas vidas  em Moçambique tinham sido deitadas ao vento. Longede os proteger perante um emergente Governo da  Frelimo, os portugueses iria desarmá-los e ao mesmo tempo abandoná-los e líderes não queriam saber da sua "salvação"!!
Deixei Alto Molócué no dia seguinte (19 de Setembro) na companhia de dois comandos que, segundo me disseram, iriam de férias para Vila Pery e Tete. Dentro do Land Rover viajava eu e dois negros. Ambos estavam fardados e armados. Pela maneira como se despediram dos seus camaradas, percebi que nunca iriam voltar para a sua unidade ou para Montepuez.
Infortunados por uma série de furos, foram necessários dois dias para chegarmos perto da vila de Namacurra,, alguns quilómetros a norte do rio Zambeze.
Com a cidade à vista, não estávamos com particular pressa. Conduzia  a uma velocidade média quando, repentinamente, fomos confrontados  por três homens que saíram do mato e  pararam à frente do nosso caminho. Enquanto se movimentavam no meio da estrada, podíamos ver as silhuetas das armas que tinham nas mãos e imediatamente percebemos que se tratava de uma patrulhada Frelimo. No momomento que carreguei violentamente no pedal do travão, notei que já as suas armas estavam levantadas e apontadas na nossa direcção. Nesse mesmo momento, ouvi a voz do comando que estava junto a mima gritar "granada", ao mesmo tempo que surgiram os primeiros tiro.  Num instante o comando abriu a porta, deixando-se cair para fora do Land Rover. Automaticamente fiz como ele. Deixei o volante, e como em câmara lenta, atirei-me para fora  ... Vi a estrada chegar bem perto de mim enquanto o Land Rover continuava sozinho, percorrendo o seu caminho. Ouvi o som de outra espingarda e colei a minha cara ao chão. Fiquei assim pelo menos meio segundo, seguido pelo choque da explosão da granada. Fiquei de cabeça baixa até ao tiroteio cessar. Levante-me depois, assente primeiro nos joelhos e depois nas pernas que paravam de tremer.
O tiroteio tinha acabado. Levantei devagarinho a cabeça. Os três indivíduos jaziam no chão, com os corpos cheios de sangue. A granada tipo "defensiva" tinha-os morto. Neste instante não sabia o que fazer. Fui arrebatado pelo pânico e entendi que a nossa única esperança de sobrevivência estava em afastarmos-nos o mais possível daquela horrenda cena.
Enquanto os dois comandos, João e Fernando, arrastavam os cadáveres para forada estrada, acendi um cigarro e fui outra vez para dentro do Land Rover. que se tinha imobilizado a umas dezenas de metros, um pouco fora da picada.
Não tenhas medo, disse o João que tinha atirado a granada contra a patrulha da Frelimo. Antes do amanhecer já os animais e as formigas terão destruído tudo a ponto de ficarem só os ossos. Assim esperava.
Às quatro da tarde, sem outros incidentes, chegámos ao rio Zambeze e, bendito seja Deus, ninguém estava lá para nos confrontar. Quando chegámos a Inhaminga, fui directamente para o bar.. Os meus companheiros, como se nada tivesse acontecido, foram para o aquartelamento local.

                                                                     ***
20 de Setembro de 1974. Tomada de posse do Governo de Transição.
Na imagem, Victor Crespo e Melo Antunes com Joaquim Chissano,
O "amigo" Telles Gomes de óculos e sublinhado num círculo. 

No dia 20 de Setembro o Governo de Transição tomou finalmente posse em Lourenço Marques. O alferes "doutor" Teles Gomes estava presente como membro activo do MFA e ficou a actuar como conselheiro do tandem Menezes-Crespo. Do grupo do MFA também faziam parte o capitão Camilo (hoje General) que, com o desertor da FAP Jacinto Veloso, usavam os "famosos" poderes "democráticos" de prenderem quem queriam para "interrogatório". Vae Victis.
No mesmo dia em Nampula, chegaram de avião vindos de Dar-es-Salam, os "raptados" de Omar. num telefonema que fez ao governador de Vila Pery, Drº Cunha e Sá, o Luis Correia pediu notícias do seu amigo "jornalista" que há dois dias andava desaparecido! Ainda não tinha chegado a Machipanda. Apenas isso..

Em sublinhado a viagem de Giancarlo Coccia. 

Por volta das 16h00 de 21 de Setembro, depois de me terem reparado definitivamente o maldito pneu, cheguei finalmente a Vila Pery.  Mais uma vez, como tinha feito meses antes, o capitão Branco convidou-me a passar a noite no quartel de Cavalaria.
A vitoriosa Frente de Libertação de Moçambique ainda não controlava o posto de fronteira de Machipanda onde cheguei na manhã seguinte. Os funcionários no posto da Alfândega  e Migração nem fizeram as normais formalidades. "Centenas de pessoas vão correndo para a Rodésia", disse-me um deles, "Muitos não têm nenhum documento e nós ... nós já não controlamos nada. Neste momento a nossa tarefa humana é ajudá-los  a fugir desta terra que já não nos pertence a nós, portugueses.
Passar na parte portuguesa foi muito fácil, como para todos os portugueses continuava a ser do lado rodesiano mas, não foi assim para mim com os rodesianos.
Na madrugada do dia seguinte parti para a Beira em carruagem de "primeira classe"
Pelos 250 quilómetros de distância entre Machipanda e a capital da província de Sofala, o comboio levou dez horas de viagem, parando a cada 20 minutos para carregar passageiros e mercadorias. Não gostei nem de todas as paragens nem dos contínuos controlos em tandem pela tropa portuguesa e pelos ex-guerrilheiros da Frelimo. Quando cheguei à estação da Beira, na tarde de segunda-feira, dia 23, fiquei muito feliz pelo fim daquela agonia. Tomei um táxi e fiz-e transportar para o Hotel Moçambique.
Do quarto telefonei para a Embaixada de Itália em Pretória e, como sempre, prometeram-me "fazer o possível" para acelerar o processo para obtenção do visto. Depois disto fui dar uma volta pela cidade.
Nas ruas sentia-se já a presença da Frelimo. O primeiro grupo de libertadores, comandados pelo "Cara Alegre" Tembee pelo famoso "Tigre", tinha-se já instalado no quartel da Polícia Militar. Alguns dias depois começariam a patrulhar as avenidas em jipes conduzidos pelos soldados da PM. Para estas excursões, os ex- terroristas iam sempre armados, enquanto a Polícia Militar portuguesa levava apenas bastões brancos.
À tarde, no restaurante do hotel, encontrei alguns colegas jornalistas da Rodésia e uma equipa da TV alemã. Tinham chegado para cobrir a entrada oficial da Frelimo na cidade da Beira, que coincidia com a tomada de posse, em Lourenço Marques, do Governo de Transição, que seria celebrada no dia seguinte (segunda-feira, 25 de Setembro), por data do décimo aniversário da luta da Frelimo contra os "colonialistas".

                                                                   ***
Texto escrito no diário de Luis Correia
Enquanto o Giancarlo regressava de comboio para a Beira, em Nampula, o major CMD Manuel da Glória Belchior andava à minha procura.  Só às 18h20 o Belchior voltou ao Hotel Portugal e deixou um recado escrito a pedir-me que o contactasse o mais cedo possível no Hotel Morgado.
Uma das coisas que o Belchior queria saber era notícias do Giancarlo.
Em Montepuez sabia-se apenas que o Giancarlo tinha sido socorrido pelos casmandos da 8ª depois de um acidente de viatura perto de Alto Molócué. Isto passara-se há mais de uma semana. As  últimas notícias do Giancarlo datavam de dia 19.
Liguei ao Jorge Cruz e juntos tomámos um café na varanda do Hotel Portugal. Foi ali que passou um furriel das Transmissões que nos conhecia e disse. o Mad Mike está na cidade ... está na cidade ... Bronca grande. Dizia-se que vários comandos se queriam pirar para a Rodésia de armas e bagagens. Seriam só os comandos da "Hatari", a 8ª CCMDS   de Moçambique do capitão João Carvalho?
Às nove da manhã de hoje, 25 de Setembro, encontrei-me com o Belchior no Hotel Morgado. O comandante do Batalhão de Comandos de Montepuez perguntou--me: Novidades? Onde etá o Giancarlo? O que se passa com os comandos que fugiram para a Rodésia? Respondi-lhe que deviam querer a combater o mesmo inimigo mas com outra farda.
Nesta altura, o alto comissário Victor Crespo e o brigadeiro Menezes são oficialmente as mais altas autoridades de segurança em Moçambique.

                                                                          ***
Nessa manhã, quando os jornalistas chegaram ao Estádio da Manga, já havia milhares de negros numa zona do recinto. quando foi anunciado que as tropas nacionalistas estavam a chegar, a multidão ficou frenética.  De todos os lados se ouviam os gritos de Viva a Frelimo e morte ao colonialismo ou, mais simplesmente, de vitória.

Quase fora da foto, à esquerda, observo os elementos da  PSP da Beira 


Na foto, à esquerda, o meu amigo Rui Martins, alferes Miliciano da PM. Junto encontram-se o capitão Restolho Mateus e comandante da PSP da Beira.

Antes dos discursos oficiais começarem, e enquanto os militares da Frelimo arrastavam os morteiros eas metralhadoras pesadas para os lugares designados, tentei contar o número de bandeiras da Frelimo que flutuavam no Estádio.Eram muitas, demais para serem contadas. Bandeiras portuguesas? Havia uma só, perto duma das tribunas especiais. Não tinha sido o único que tinha visto este único vexilo que ainda abanava ao vento. De repente, um grito de furor levantou-se e um grupo precipitou-se para a rasgar aos bocados. O oficial da PM que ali estava a proteger a paz ficou calado. Ver a sua bandeira destruída já não lhe dizia nada.
Em tudo aquilo que dizia respeito às celebrações, Portugal já não existia
Depois de observar o episódio da bandeira fiquei tão desgostoso que deixei a galeria da imprensa e regressei ao Hotel, sem ver o fim do espectáculo.

A multidão no Estádio da Manga na cidade da Beira

"A sorte protege os audazes" e, na manhã do dia seguinte, tomei o primeiro avião de volta a Nampula. Ainda não tinha percebido quanto a Rodésia e a África do Sulainda rstavam longe. Muito ainda estava para acontecer antes do meu regresso a casa.

Falando com a Frelimo em Nampula
Acampamento "terrorista" na fronteira sul-africanaComandos das CCMDS 2043ª e 2045ª envolvidos numa "gigantesca" bronca em Lourenço Marques
Conversas em Nampula com o "camarada" MPfumo
O Brandão da Liberdade "gigantesca"
O meu Land Rover desaparece
Prisão na Beira
Curta Liberdade
Prisão outra vez e, finalmente, casa

Depois de ter voado da Beira, passei dois meses e meio em Nampula. Lembrei-me que o coronel Manuel Souza Menezes, o demagogo ex-professor do Instituto de Altos Estudos Militares que em Maio fora promovido pelo general Costa Gomes a chefe de Estado Maior no lugar do brigadeiro  João Correia, tinha dado ordens para sair do país. Mas nunca tinha pensado que, envolvido com estava na "restauração" de Moçambique, lhe restasse tempo para pensar na minha pessoa.  Era, eu sabia, uma questão de "palavras". A confirmação disso mesmo veio  veio quando quando passei a notar que nem a PM, nem as outras entidades oficiais, queriam saber de mim e da minha presença em Nampula.
O Luis e eu encontrávamos-nos regularmente no Hotel Portugal. O senhor Marques já não estava em Nampula e a sua filha, a Gabriela, juntava-se às nossas conversas e connosco trocava impressões e informações. Foi ali que decidimos começar a ter lições de voo no aeroclube local! Pela mesma altura tinha organizado a transferência dos últimos blocos de notas e fotografias para fora de Moçambique. Os fantásticos pilotos da DETA encarregaram-se de entregar esse material no Consulado de Itália. O cônsul, tão amável quanto ao compreensivo, guardava todas essas encomendas.
O MFA tinha já transferido a sua base para Lourenço Marques, deixando a antiga capital militar nas mãos de 350 soldados da Frelimo e de um punhado de homens da Polícia Militar portuguesa. A principal responsabilidade dos PM era prender os colonialistas reaccionários que tinham participado na contra--revolução de Setembro e na tomada doR´ádio Clube de Nampula. Na maioria dos casos, aqueles que tinham sido presos eram libertados alguns dias depois do interrogatório, no qual obrigatoriamente se declaravam culpados! O facto de nunca de nunca sido declarados culpados por uma sentença de tribunal não fazia diferença alguma para a  Frelimo, que assim obtinha uma grande vitória, mostrando que podia mandar nos brancos,como e quando quisesse. 

Polícia Militar em Nampula

                                                                                 ***
Na última semana de Outubro, notícias que chegavam de Lourenço Marques anunciavam graves incidentes. No dia 20 de Outubro  chegou a notícia a Nampula de que um tal capitão Luís Fernandes, capitão miliciano dos GEP, fora preso no Hotel Polana, em Lourenço Marques. Vinte e quatro horas mais tarde, na capital de Moçambique, começou a grande bronca dos Comandos
A Nampula chegou-nos que duas companhias de Comandos as 2043ª e 2045ª, tinham aberto fogo contra elementos da Frelimo na baixa, a parte central da cidade. Tudo indicava que um determinado número de soldados da Frelimo tinham sido mortos durante este incidente mas, segundo o comunicado do alto-comissário Victor Crespo, a situação estava já totalmente controlada e as tropas poruguesas envolvidas tinham iniciado a sua viagem de regresso aPortugal. Para isso, seriam acompanhados por uma escolta própria para estes casos. Embora tivesse sido esse o comunicado oficial, Crespo, ou estava mal informado, confundido, ou escolhera mentir sobre este assunto. Pouco antes da meia-noite, nesse mesmo dia em que escutáramos o anúncio da decisão tomada pelos altos comandos portugueses em Lourenço Marques, aterrava em Nampula o primeiro grupo de comandos implicados nos tumultos. Não estavam a caminho de Lisboa mas sim de Montepuez.
Em Nacala foram acompanhados pelo capitão CMD Borralho e, na Beira, a 30 de Outubro, sob o comando directo do comandante do BCMDS o major Manuel da Glória Belchior. Vim a saber depois que o major Jaime Neves, enviado especial de Lisboa, estava na Beira para acompanhar as duas companhias até Luanda.
Tinham passado oito dias desde os incidentes da baixa da capital moçambicana. Só agora se iniciava o regresso ou, pelo menos a saída, dos implicados.
Por pura casualidade, eu estava no aeroporto de Nampula quando o Luiz me deu a notícia de que, em voos fretado da DETA, estariam para chegar elementos dos Comandos, vindos directamente de Lourenço Marques. No dia seguinte, na baixa da cidade, junto ao Hotel Portugal, tive oportunidade de conversar com o alferes Comercio da 2045 ª CCMDS.  Foi interessante observar que, enquanto os comandos se passeavam desarmados por Nampula, não se notava a presença de elementos das patrulhas ou simpatizantes da Frelimo.
Quando os rebeldes seguiram para Montepuez a situação em Nampula foi lentamente voltando ao habitual. Era como se uma lufada de ar fresco tivesse passado por aqui, disse alguém na recpção do Hotel Portugal.

Militares da 2045ª CCMDS

Em poucas palavras o alferes Comercio tentou descrever-me o que se tinha passado na capital moçambicana:

Um dos meus homens, parece-me ter sido o soldado CMD Diamantino ou um do 4º Grupo de Combate da 2043ª CCMDS, ninguém sabe ao certo, aproveitou a oportunidade para engraxar as botas no café Scala da baixa laurentina.
Quando terminou o trabalho que estava a fazer, o rapazito pediu 5 escudos quando o preço usual era 3. O nosso homem ficou furioso, mas o colega que o acompanhava conseguiu convencê-lo de  que era melhor pagar o que lhe era pedido para não causar mau ambiente ... E assim deu-lhe os 5 escudos. 
Quando se afastava do local reparou que o jovem engraxador vestia uma camiseta de propaganda da Freelimo e, perante isso, terá feito um qualquer comentário. Palavra puxa palavra, e o soldado,  insultou o rapazito. Este imediatamente chamou uma patrulha da Frelimo que esta ali próximo e que, contra o que estava formalmente estabelecido nos Protocolos Militares, era formado apenas por elementos armados da Frelimo.
Foi aí que tudo começou. Não era uma patrulha mista, como estava acordado desde a tomada de posse do Governo de Transição. Os nossos homens estavam devidamente fardados e desarmados e os Frelos, armados de AK47, tentaram estupidamente prendê-los.

Lourenço Marques, 21 Outubro de 1974, dois soldados da 2043ª CCMDS a desarmar um elemento da Frelimo

Não  se sabe o que terá realmente acontecido depois disso. Parece que os dois comandos arrancaram as armas das mãos dos gajos da patrulha e que dispararam contra eles, atingindo vários. Correndo pelo meio da avenida, conseguiram distanciar-se do local e chegar ao acampamento onde estavam aboletados as duas CCMDS.
Terão  seguramente tido a ajuda de alguém que, passando pelo local do tiroteio, os socorreu. É de espantar como tão rapidamente chegaram ao campo de golfe, a uns oito ou dez quilómetros da cidade, e como tão rapidamente regressaram para tirar desforra da Frelimo. Para isso trouxeram consigo, numa superlotada Berliet, todos os voluntários que conseguiram, armados até aos dentes, como o objectivo de acabar com a bronca.

DR. Fernando Vaz, médico de Samora Machel
Estava na minha clínica, disse-me 35 anos depois dos incidentes o Dr. Fernando Vaz, ex-vice ministro da Saúde e médico pessoal de Samora Machel. Vi chegar uma Berliet com os comandos. Alguns dos nossos soldados, de Kalashnikov apontada, mandaram parar a Berliet. O motorista parou e da cabine saíram dois comandos, desarmados. Ouve uma troca de palavras ... Depois, vi os comandos, como um relâmpago, desarmar os nossos dois soldados e limparem-lhe o sebo.

Lourenço Marques, 21 de Outubro de 1974 a CCMDS 2043 em acção

Continuando o relato, o alferes Comércio disse:
Não demorou muito até a notícia até  a notícia chegar à 2043ª, que logo se preparou para arrancarem direcção à última batalha desta já longa guerra em terras de Moçambique. A Frelimo, entretanto, tinha enviado reforços e assim se iniciou o último confronto entre os Comandos e os seus inimigos de sempre.
Aquilo é que foi dar neles. Até dizer basta! Poderia ter continuado por mais tempo, pois ninguém aceitava render-se a qualquer autoridade da Frelimo.

A CCMDS 2043, a caminho da última batalha contra a Frelimo

O cessar-fogo só foi feito depois de os Comandos receberem garantias de que ninguém seria castigado pelo que tinha acontecido e que, no futuro, quando  elementos da Frelimo tivessem de exercer  autoridade perante a tropa de Montepuez, deviam apresentar-se desarmados. Este confronto em Lourenço Marques foi, podemos dizer uma patética vitoria para os Comandos . Mataram 9 elementos inimigos armados contra apenas um ferido, o soldado comando Orlando da Costa da CCMDS 2043, ferido no dia 21 de Outubro de 1974 em Lourenço Marques.

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Este confronto em Lourenço Marques foi, podemos dizer, uma patética vitória para os Comandos. Mataram nove elementos inimigos armados contra apenas um ferido, o soldado Orlando da Costa da 2043ª CCMDS, ferido no dia 21 de Outubro de 1974.
Mas agora que a guerra estava oficialmente terminada há mais de um mês, esta bronca não teria qualquer resultado, além de desencadear a  fúria dos apoiantes da Frelimo contra a população branca da capital.


Regresso ao Batalhão de Comandos

Este não foi um regresso fácil..

Disse-me anos depois o capitão Ventosa

Fomos a última equipa a deixar Lourenço Marques para o aeroporto. Estavam comigo o soldado CMD Oliveira do 2º Grupo de Combate da 2043ª, o furriel miliciano de Transmissões Manuel Adérito Figueira, o 1º cabo rádio José Gomes Rodrigues e Faquir, o meu mainato.
Nos poucos quilómetros de distância entre a cidade e  o Gago Coutinho, o Oliveira esgotou dois tambores da HK21 e eu tinha saído com oito dilagramas, fiquei desarmado. Mas chegámos ao aeroporto são e salvos. Ali, na pista, o comandante do 737 disse-nos que não queria pessoal armado no seu avião. Ao mesmo tempo, tivemos notícias de centenas de europeus que tentavam chegar ao aeroporto para impedir que nos fossemos embora. Queriam que os Comandos ficassem para os proteger. Seria impossível!
Tive que apontar a G3 à barriga do comandante da DETA. Ou partíamos já para Nampula ou dava-lhe um ... Lá teve bom senso e todos entrámos no avião para rumarmos a Nampula. À chegada, encontrámos a escolta: dois grupos de combate que nos acompanharam até ao nosso quartel em Montepuez.

Ao centro o Alferes Frade da 2043ª ladeado pelos Furrieis do seu Grupo deCombate

Depois das Companhias estarem juntas estarem no Batalhão de CMDS, estava programado serem constituídos novos grupos de combate, utilizando pessoal de ambas  as companhias de Comandos de forma a tentar justificar o seu regresso  a Montepuez. Não sei o que realmente sucedeu nestacurta semana, mas tive várias notícias, algumas delas contraditórias .
Dizia-se que seriam todos transportados para Lisboa e detidos, ou no presídio de  Elvas, a cerca de 12 Kms da fronteira com Espanha, ou noutro  qualquer. Dizia-se que estas instruções vinham directamente do general Costa Gomes. A realidade é, de facto, sempre mais surpreendente do quea ficção. O brigadeiro Costa Pinto, comandante do minúsculo exército que restava a Portugal em Moçambique, mandou lavrar processos disciplinares contra os militares individualmente implicados nos incidentes de 21 de Outubro. Até à transmissão de poderes para a Frelimo terão sido feitas várias diligências. Depois, meteu os documentos debaixo do braço e em Lisboa os processos foram arquivados por ordem do General Costa Gomes
O pessoal das CCMDS 2043ª e 2045ª foi transferido para Luanda, onde ainda era muito mais necessário um reforço de segurança. A Polícia Militar, onde estavam já o Mário Tomé, Cuco Rosa e Campos Andrade, recusavam mandar mais militares da PM para Angola. A palavra de ordem ers: NEM MAIS UM SOLDADO PARA ÁFRICA.
As duas companhias regressaram mais tarde a Lisboa e foram desmobilizadas com toda a naturalidade.





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