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Livros da guerra colonial

Miandica terra do outro mundo


segunda-feira, 25 de julho de 2022

MANUEL NEVES SILVA -HISTÓRIAS DA GUERRA (8º EPISÓDIO) Picada Nancarari - Muirite

  -PICADA NANCATÁRI-MUIRITE (Zona de Mueda)

Estávamos naquele tempo, em Novembro de 72. Corriam as chuvas da estação quente. A paisagem exalava o odor a terra molhada, terra vermelha como o nosso sangue, matope forte, consistente, pegajoso, que prendia em si as nossas botas e diminuía a estuga das caminhadas.
Tinhamo-nos deslocado de Mueda para Nancatári , a sul, com a missão de substituir um pelotão deste aquartelamento, que tinha saído numa operação de patrulhamento com a duração estimada de vinte dias.
Aqui em Nancatári iríamos permanecer durante pelo menos esses vinte dias, aguardando instruções.
Foi pois ao terceiro dia de estância nestas paragens, dia cinco de Novembro que ordens superiores ditaram:
Iríamos abrir, limpar de minas o trajecto até Muirite, ainda mais a sul, para a passagem segura da coluna de reabastecimento logístico, vinda de Porto Amélia, a capital do distrito.
Assim foi instruído o Alferes Bonina, comandante do Pelotão e assim fomos informados, nós os comandantes de cada uma das três Secções: Neves Silva, Duarte e Lopes.
De Nancatári a Muirite são cerca de vinte perigosos quilómetros. Sim, os quilómetros aqui em Cabo Delgado, levam o adjectivo perigosos, porque são mesmo perigosos os perigosos caminhos do norte de Moçambique. Bonitos não fora a guerra, perigosos porque é a guerra.
O perigo aqui, já o conhecemos bem, por experiência vivida. Tem duas versões: as traiçoeiras minam debaixo do chão e as flagelações das Kalashes1, dos turras emboscados nos flancos.


O trajecto fazia-se em coluna de viaturas militares sempre atascadas, sempre atoladas no matope, sempre aos ziguezagues tentando evitar a lama. É assim quando chove nesta terra vermelha. Torna-se penosa a tarefa de fazer avançar os carros. Torna-se difícil descobrir as minas.
Os flancos do caminho alternavam entre abertas clareiras na savana e cerrados trechos de vegetação, misteriosos, enervantes e ameaçadores.
O calor era mais que muito e suava-nos o corpo, desidratava-nos a alma e secava-nos os cantis.
A minha secção, na frente das viaturas, vinha picando havia duas horas de trabalho monótono, repetitivo, cansativo. A progressão era lenta e pesada como o andar de um paquiderme. Todos os suspeitos palmos de terra, eram esquadrinhados, remexidos, com suavidade, com atenção, com medo, tentando sentir o toque do pontiagudo ferro da pica 3, no corpo da mina escondida.
Iam-se espetando as pontas de aço no solo aqui, além e mais além. Jogava-se a vida em cada metro de caminho.
Dura e perigosa esta missão de picador, de levantador de minas,de batedor, esta vida de morredor.
Estava na hora de se mudarem os jogadores desta “roleta russa”. Já nos doíam as botas atascadas na lama. Na ponta da vara dos pesquisadores os “pratos detectores”, obsoleta tecnologia sobrante da segunda grande guerra, iam incrementando o seu pesado peso com o passar das horas. Os ouvidos atezanavam com o silvo dos auscultadores. Nesta missão, o cansaço não é bom conselheiro, torna-se perigoso. Toda a atenção é sempre pouca. Era urgente a rendição dos meus homens.
O Furriel Avelino Duarte, o madeirense, na rectaguarda da coluna, ordenou aos seus soldados que fossem substituir a minha secção no batucar das picas e no manusear dos pesados detectores electrónicos de minas, enquanto fazia questão de ali continuar mais uns minutos, “mastronçando” ainda da sua ração de combate.
O Cabo Magalhães, nervoso, de espingarda descambada pelas descamisadas costas abaixo, pendurada na bandoleira, obedeceu reticentemente. Estava revoltado. O Comandante da sua secção, não o acompanhava no perigo. Não gostou de ouvir a ordem.
Marchou martelando as botas no pastel vermelho do chão, desabafando com a espontaneidade do que pensava ser sua verdade, a sua justiça:
Pois, vai lá atrás a lamber a piça e eu aqui á frente a trabalhar!
O Cabo Magalhães tinha cuspido uma frase forte, feia, alarve, palavrosa, ofensiva. Teria sentido alguma razão no seu sentido de lógica, pois como se diz: “O comandante não deve abandonar o barco e quando o faz deve ser o último a fazê-lo”.
Não gostou o Furriel de se ver assim apodado de cão. E a sua raiva saltou furiosa, “foçando” o registo da ofensa.
Tivesse o Cabo dito: -Vai lá atrás a coçar os colhões- e talvez a cólera tivesse ficado calma, na cabeça do Furriel. Pois coçar os colhões era um chavão, um lugar-comum, era quase um bordão na gíria militar e por isso, talvez mais tolerável para o Furriel.
Nesta guerra havia de facto muitas comichões a coçar, desde a do célebre”feijão-macaco” 4, até às repetidas “Comichões de Serviço” dos Primeiros e Segundos Sargentos, entre outros “Chicos” 5. Mas não foi isso que o Cabo disse ou quis significar. E as palavras ditas, ditas ficam, e a ocorrência ficou lavrada no Relatório da Acção e viajou pelas vias das hierarquias, até acima, ao Comandante, que após todos os autos, agiu de acordo com o RDM (Regulamento de Disciplina Militar).
E assim no dia Sete de Março de 73, quatro meses depois dos factos, sairia na Ordem da CCAÇ 4140:

Ordem de Serviço Nº 19 de 07MAR73 DA R.M.M. (Região Militar de Moçambique)

“ Puno com 15 (quinze) dias de prisão disciplinar agravada o 1º Cabo N/M 03946770, José Teixeira de Magalhães da C,Caç 4140/BC 15, por no dia 05NOV72,no percurso de picada de Nancatári-Muidine não ter obedecido prontamente à ordem do Comandante da força Fur. Milº SILVA DUARTE para que prosseguisse o trabalho da picagem e detecção de minas, ordem que acabou por cumprir, mas ripostando à mesma em alta voz, nomeadamente exclamando “Vão lá atraz a lamber a piça e eu aqui a trabalhar”. Mais tarde de regresso a Nancatári e estando a esclarecer os factos com aquele Furriel e o Alferes Bonina ao ser-lhe ordenado que se retirasse saiu batendo com a porta.”

E lá foi o Magalhães para as “enxovias” da prisão militar do Batalhão de Caçadores 15 (BC15),em Mueda, “atolar” as ideias e refrear a língua num estágio de duas semanas.
Ufanava-se o Furriel com castigo dado pelo Comandante ao Cabo quando naquela tarde na Messe de Sargentos entre as jogadas de King e as cervejas, comentava:
O cabrão deu-me rodas de cão. Agora vai ele quinze dias lamber a piça para a prisão.
Passaram-se mais tempos, e mais perigos e mais guerra, e mais minas, e mais mortos, e mais feridos, e mais dor e mais… e mais….Foram mais quatro meses de mais “tanto sofrer”.
E o Furriel Miliciano Avelino da Silva Duarte, o madeirense, meu camarada e amigo, iria ler quatro meses depois, na Ordem da mesma Companhia:

“Que agravo para 10 (dez) dias de prisão disciplinar agravada, a pena de 05 (cinco) dias de detenção dada pelo Snr. Comandante da C. Caç. 4140, ao For. Milº N/M 17135871- João Avelino da Silva Duarte por em 28Fev73 tendo por missão conjuntamente com o seu grupo de combate de efectuar uma picagem à pista de aviação de Mueda logo pela manhã, não o ter feito, alegando não ter acordado por motino de se ter deitado às 04H00 da manhã em consequência de uma festa, só vindo a fazê-lo quando chamado à atenção pelo seu Comandante de Companhia.”

O que terá feito nesses dez dias de pildra o Duarte Furriel? Terá lido o Regulamento de disciplina militar?
Ironias, outras histórias de guerra, a um tempo à margem e dentro da guerra.
Não duvidaria, nem por instantes, que em situações de perigo e foram muitas as que juntos vivemos, o Cabo Magalhães, perigasse a sua vida para salvar o Furriel Duarte e vice-versa.
De ambos estes homens eu guardo boas memórias.
Do Furriel, o facto de certo dia em Porto Amélia fazer questão de me acompanhar para minha protecção, num caminho que ambos desconhecíamos e “talvez” perigoso e que me propunha trilhar sozinho.
Do Cabo Magalhães, quando duma operação de assalto a uma base da Frelimo, e já na retirada e ainda flagelados a tiro pelos “Frelos” 6, sofremos um ataque de abelhas, ele deslocou-se junto de mim e debaixo de fogo me envolveu com o seu poncho 7, parando assim o cravejar dos ferrões. A guerra em Mueda também tinha estas guerras, estas nuances
Natal de 1972. Messe de Sargentos de Mueda. 
Furrieis Almeida, Gonçalves, Neves Silva, Camacho e Barata..

Quarenta e três anos se passaram. Nunca mais tive qualquer contacto com os então Furriéis do meu pelotão: Duarte e Lopes. Quanto ao Alferes Bonina, fui informado que se terá suicidado em Portugal, uns anos depois da guerra.

Notas

1. Espingarda automática russa.

2. Nome dado aos soldados da Frelimo. (Frente de Libertação de Moçambique).

3. Vara de madeira ou cana de bambu com um prego na extremidade, com que se picava o chão, procurando as minas.

4. Vagem parecida com a do feijão da qual se desprendiam pós irritantes para a pele

5. Militares de carreira.

6. Nome dado aos soldados da Frelimo´

7. Capa impermeável.
















segunda-feira, 11 de julho de 2022

MANUEL NEVES SILVA -HISTÓRIAS DA GUERRA (7º EPISÓDIO)

 

INHOCA* - A COBRA (Zona de Pundanhar) Norte de Moçambique - Memórias da Guerra Colonial

Corria o mês de Outubro, mês do Ramadão de 1973 e do caju maduro. O Sol queimava o aldeamento enquanto a tarde descaía em direcção ao ansiado frescor da noite. Protegendo-me da canícula, eu estava junto à messe de sargentos, uma casa de lama com telhado de zinco e onde os furriéis da companhia aqui aquartelada algazarreavam o jogo da sueca na mesa do bar, onde as cartas jogadas se misturavam com as laurentinas vazias. Passeava o meu olhar pelo renque arbóreo que circundava a aldeia, quando vindo do lado das cubatas, e acompanhado de mais alguns soldados macuas em passos lestos, martelados, decididos na minha direcção e de olhares postos em mim surge o Cabo Amidjai. Recostei-me na parede de lama da messe, acabei a laurentina fresca, deixei cair das mãos a garrafa vazia e esperei pelo contacto eminente, tentando adivinhar em vão qual grave urgência estava para urgir. Aparece então a palavra do Amidjai (o Mata Cobra, assim mesmo chamado pelos seus pares, por se recusar a usar botas de lona usando sempre e apenas botas de cabedal, mais seguras no mato e a que chamava, botas mata-cobra):-

-Siliva, nosso pai, nós quer ir em Palma ao Ramadão. Ramadão que é nosso natal.

Este aldeamento -aquartelamento de Pundanhar era partilhado pelo meu Grupo (GE214),cujos soldados nativos viviam com suas mulheres e filhos em cubatas na zona civil e por uma Companhia de Caçadores integrada por soldados metropolitanos e nativos comandados por um capitão miliciano

Manifestado o desejo de celebrar o Ramadão em Palma, o grupo esperava a minha decisão, que a bem de todos e da acção psicológica (APSIC) , teria que ser sim, afirmativa.

E assim mesmo e ali ficou decidido, não sem antes consultar via rádio o Comandante Geral dos Grupos Especiais (GEs) em Porto Amélia, Capitão Pessoa de Amorim que achou uma boa ideia. Seria ao mesmo tempo uma missão de patrulha e reconhecimento ao longo da picada Pundanhar – Palma. Partiríamos ao fim da tarde do dia seguinte. A noite seria para andar e descansaríamos um pouco durante o dia para podermos esconder as agressões do sol por cima das copas das árvores

Pundanhar dista cerca de 50 km de Palma, no litoral. É terra natal da maioria dos meus soldados muçulmano macuas, uma terra bonita, arborizada de palmeiras e coqueiros, beijada de modo suave e terno pelas águas do Índico. Já por lá tinha passado uns meses atrás em trânsito desde o Dondo na Beira até este aldeamento, onde fui colocado no comando destes homens. Seduzia-me agora a ideia de repetir uns mergulhos naquela praia e saborear à noite o marisco que generosamente aparecia nestas águas.

O percurso feito a corta-mato evitando assim pisar tanto quanto possível a picada e as minas que os Frelos nela semeavam, foi aparecendo pontilhado de sombrosos cajueiros ostentado aqueles bonitos e madurados frutos, uma delícia que fui provando, não sem o aviso avisado daqueles homens:

- Bah Siliva, vai ficar grosso.

Ignorando-os assim fui caminhando, colhendo e comendo aquelas “peras” de caju frescas, coloridas, sumarentas e doces. Um maná a calhar naquele fim de dia húmido e quente. Á medida que a tarde crescia e as árvores iam estirando mais e mais a sua sombra para o outro lado do sol, comecei a sentir na minha cabeça a quentura quente das bebedeiras. Afinal aqueles frutos tinham o poder das laurentinas, essas cervejas bazucas acompanhantes de luxo naqueles momentos em que tentávamos esquecer aquele inferno onde tínhamos caído.

E foi assim neste bem-estar induzido, nesta abulia anímica de pensamentos entorpecidos, enquanto avançava connoso, olhos postos no além e de cabeça agradavelmente oca, que os meus sentidos repentinamente despertaram com o som nervoso e desencontrado de várias vozes:



- Inhoca!…inhoca!…inhoca!…inhoca , baah! inhoca.

.Eram vocalizações num tom de susto e aviso. Segui com o meu olhar, os olhares daqueles homens, focados naquele ponto do mato, sombreado pela copa de um largo cajueiro e vi aquilo que eles há muito tinham descortinado: uma cobra de largo diâmetro e bom comprimento, num movimento lento desembrulhando-se. Passada a surpresa inicial de medo e respeito com tal bicho, num gesto impensado afaguei a G3,enquanto dirigia o ponto de mira ao dorso do ofídio. Preparava-me para premir o gatilho, quando de pronto num gesto vigoroso e seguro vi uma mão negra desviar-me o cano da arma, e bem perto de meu ouvido a frase nervosa, conhecedora e avisada, de quem sabe:

Baah Siliva,se mata nhoca,mata nhoca,agora se não mata nhoca é uma porra.

Depois do seu gesto consumado e de ter largado para mim o tubo, o cabo macua Amidjai foi dizendo, agora num tom bem mais calmo:

Lagarta não faz mal, agora se ferir lagarta ou pisar nos ovos da lagarta é uma porra

A cobra mirou-me, mirou-nos, desenroscou-se por completo e sumiu em ondulações lentas, rastejadas para lá do trilho, desaparecendo confundindo-se com o matizado verde do capim.

Foi um encontro fugaz. Inhoca seguiu o seu caminho. Nós retomámos o nosso, agora com os sentidos mais apurados e as armas ainda mais nervosas, não tanto pelas cobras, sim para evitar qualquer surpresa urdida pelos Frelos e pelo cantar irritante das suas kalashnikov.

E agora o Siliva já conhece o efeito analgésico da “pêra” do cajueiro.

* -Inhoca, significa Cobra na linguagem Bantu-Suahili


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