Bem vindo

bandeira-portugal-imagem-animada-0007 bandeira-mocambique-imagem-animada-0006

Livros da guerra colonial

Miandica terra do outro mundo


segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

SETE e DEZ

Base da Frelimo Micuinha a arder
Aquele dia estava prestes a findar. Para nós.
O sol inclemente que durante toda a jornada nos tinha
castigado começava a dar tréguas.
O maldito saco que trazia às costas parecia pesar toneladas e
fazia que o casaco camuflado se colasse às costas ensopadas de
suor e poeira.
Com os olhos embaciados e molhados pelas gotas de
transpiração que qual nascentes desciam pela testa até aos olhos,
boca e pescoço para finalmente desaguarem no meu alagado peito,
olhei para o imenso mar de capim ondulante que nos rodeava.
Naquela época do ano o capim estava já amarelecido o que
me fez lembrar imensas searas de trigo maduro.
As poucas e raquíticas árvores que se mantinham de pé
pareciam fantasmas com grandes braços acenando para aquele
punhado de homens que indiferentes nem tinham vontade de
retribuir tal saudação.
Mais á frente a alguma distância dali descortinei algumas
árvores, estas com folhagem verde pelo que imaginei haver por ali
algum resquício de regato.
E havia.
Deparámos com o leito de um pequeno ribeiro onde restavam
uns pequenos charcos de água. Pela quantidade e variedade das
pegadas existentes à volta daquelas poças, muitos animais
certamente disputavam aquele precioso líquido. As árvores
formavam uma abóbada de verdura e frescura e após conferenciar
com os outros graduados resolvemos passar ali a noite.
O dia tinha sido bastante cansativo. Tínhamos sofrido alguns
esporádicos ataques e flagelações á distância e certamente
estaríamos a ser seguidos. Por isso todos estávamos tensos e a
noite seria boa companheira para aliviar tensões.
A segurança foi organizada e depois de me certificar que
estavam todos bem, finalmente sentei-me.
Era tempo de jantar….
À minha volta os companheiros tagarelavam animadamente
como era habitual enquanto se desenvencilhavam das tampas das
latas de conserva. Alguns trocavam entre si vários tipos de ementas
Jantar! Há quanto tempo era a mesma ementa? Porra. Que
saudades da galinha de churrasco das cantinas ….
Abri o saco, revolvi as várias latas que me restavam e fui
lendo os rótulos que eu já conhecia há muitos, muitos meses.
Algumas conservas eram compradas á África do Sul, e logicamente
vinham em inglês….”Corned beef”…. “Stew vegetable beef”….

Estou farto destes enlatados ... mas tenho que os comer
Estava farto daqueles enlatados. Farto e enjoado, diga-se.
Encontrei uma carcaça, rija como corno e lentamente fui
trincando pequenos pedaços do pão. Para ajudar ia bebendo
pequenos goles de água. Sempre ajudava a ensopar.
Enquanto mastigava olhei para aquele grupo disperso. A boa
disposição tinha voltado passado que foi a dureza da jornada. Ao
olhar para aquelas caras tisnadas pelo sol de muitos meses, as
barbas de vários dias por rapar, dei comigo a pensar, “Que é feito
daqueles rapazinhos que um dia nos reunimos em Penafiel para
constituir a Companhia?”
Desses rapazinhos, nada restava. Passaram a homens de
uma forma cruel. Já nada restava da juventude perdida. Perdida
naquelas matas do norte de Moçambique. Recordei um dia em que
o Dias, um rapaz que estava a passar por grandes dificuldades
psicológicas me olhou fixamente e perguntou: - “ Furriel… és
casado?” – Respondi não. – “Tens namorada?” – Voltei a
responder, não.
Continuou a olhar, abanou negativamente com a cabeça e
disse, - “ Estás velho! Depois desta merda, já não vais encontrar
ninguém que te queira… “
A alguns metros de mim, o Ruben Chongo, um dos africanos
do meu grupo tinha tirado do saco todas as latas que lhe restavam.
E reparei que eram todas de salsicha. O rapaz olhava para elas
com um ar desiludido. Lembrei-me que a sua religião proibia o
consumo de carne de porco. E as salsichas eram de …. Carne de
porco!
Interroguei-o com um aceno de cabeça como quem diz, “ que
se passa pá?”. Encolheu os ombros, resignado. Ele nos dias
anteriores foi comendo as de carne de vaca e restavam-lhe as
“proibidas” pela religião.
Dei-lhe as que tinha.
Acabei a “refeição” bebendo uma lata de leite com chocolate.
Para acabar mesmo em beleza, chupei um dos grãos de café
que vinham numa pequena embalagem na caixa da ração de
combate.
Verdade!
Cada unidade de ração trazia os dois grãos de café. Um para
o almoço, outro para o jantar. Ah! Além do papel higiénico….
A noite já era uma realidade.
Sentia-me cansado. Não me apetecia falar. O Alves, perto de
mim, ainda tentou conversar, mas não estava com disposição.
Olhei para o relógio. Marcava seis e meia.
Os meus pensamentos naquele momento voaram para muitos
milhares de quilómetros dali.
Lá longe, na Metrópole, como se dizia, as pessoas
começavam a regressar a suas casas. Daí a pouco seriam horas de
jantar e nas cidades e aldeias os pais iam chegar a casa e abraçar
as mulheres e os filhos.
E nós ali, perdidos algures no meio do Niassa, longe de casa,
da família, dos amigos, sei lá, longe de tudo!
E novamente me senti cansado.
Aconcheguei a velha manta em redor do corpo e aspirei
profundamente. Chegou-me às narinas um odor azedo de
transpiração. Já nem me lembrava há quanto tempo não tomava um
banho. Água só para beber. E pouca.
Com a esperança que tivessem passado várias horas
consultei novamente o relógio. Eram sete horas e dez minutos.
-“Sete e dez! Bolas… nunca mais passa a noite. “ – Pensei.
Tentei adormecer e fechei os olhos.
Mas naquele momento tudo se transformou á minha volta.
Vinda não sei de onde a metralha começou a fazer-se ouvir. Á
nossa volta as “costureirinhas” rugiam. Percebia também o
matraquear de metralhadoras pesadas.
O inferno estava a cair sobre nós. Os longos riscos das balas
tracejantes passavam por cima de nós e perdiam-se para lá das
árvores.
- Ninguém faça fogo! – Gritei
Não podíamos dar a conhecer a nossa posição.
A meu lado, o Alves segredou-me com o ar mais natural deste
mundo,
- Furriel, não sei das minhas botas!
- Vai-te foder ó Alves! Para que queres agora as botas? Diz!
.- Queres ir atrás deles agora? Aguenta-te como estás.
A metralha continuava e aquele gajo preocupado com as
botas….
O matraquear das armas parou tão de repente como tinha
começado. Agora só o silêncio nos rodeava. Até os sapos e outros
animais nocturnos se tinham calado. Pudera!
- Alguém está ferido? – Perguntei.
Não. Estavam todos bem. Felizmente os gajos não sabiam
onde estávamos e fizeram tiro ao acaso.
Aos poucos as conversas recomeçaram.
- Os filhos da puta, não têm sono…. – Dizia o Alves
- Foi para ver se nós respondíamos á fogachada – dizia o
“professor” – D´asse! Aqueles riscos das balas até me puseram o
cabelo em pé. Nunca nos tinham visitado de noite… filhos da mãe –
concluiu o rapaz.
Virei-me para o Alves.
- Já tens a merda das botas?
- Já estão calçadinhas…. Estava a sentir-me tão bem. Filhos
da puta!
Estava tudo a voltar ao normal.
Foi então que o “professor” me chamou
- O que é agora, caralho?
- Parece que temos ali ao fundo uma fogueira….
- Uma fogueira?
Levantei-me e olhei na direcção indicada.
Com efeito o capim estava a arder.
-Porra! Para que querem eles uma fogueira? – Fui dizendo
para os meus companheiros.


De súbito do outro lado do improvisado acampamento alguém
gritou que havia fogo.
Olhei á minha volta e observei melhor. Com efeito,à nossa
volta o capim estava todo a arder. Já se ouviam os estalidos das
canas a arder como se fossem tiros muito fraquinhos
- Ai os filhos da puta… querem-nos queimar. Agora, furriel é
que estamos fornicados de verdade – comentava o Alves.
A intensidade do fogo aumentava e a ligeira aragem trazia até
nós o cheiro característico de erva queimada.
O vento não era muito forte e isso estava a nosso favor. Por
enquanto. Ainda estávamos a algumas centenas de metros das
chamas, mas a verdade é que vinham mesmo na nossa direcção. E
se chegassem até nós, então sim. Estávamos mesmo fornicados. O
pequeno riacho não nos dava grande protecção porque o capim
seco era abundante.
Opiniões não faltavam. A certeza que eu naquele momento
tinha era que estávamos verdadeiramente tramados.
Foi então que o Alves me gritou:
- Furriel, tenho uma ideia!
Pensei logo, “Vai sair merda….” Aquele Alves tinha por vezes
umas tiradas que nem ao diabo lembravam.
- Que raio de ideia é a tua, ó Alves?
- Uma vez lá minha aldeia vi os bombeiros atacarem um
incêndio com outro incêndio… Não me lembra como eles diziam
mas que o fizeram, eu vi.
Então lembrei-me.
A ideia do rapaz era fazer o que se chama “contra-fogo”.
O tempo era escasso e tínhamos que avançar com a ideia.
Eu e alguns voluntários fomos rastejando até o mais próximo
possível das chamas, lançámos fogo ao capim em vários locais e
retirámo-nos novamente a rastejar.
Rezei para que os deuses que dominam o fogo estivessem do
nosso lado.
Observámos as chamas que nós tínhamos ateado a
aproximarem-se das outras e quando as labaredas se juntaram
houve um ruído surdo. As chamas entrelaçaram-se, subiram mais
alto na noite escura e para nosso espanto e alívio foram diminuindo
de intensidade, lentamente, muito lentamente até se extinguirem
totalmente.
O Alves tinha sido nessa noite o nosso deus do fogo.
Foi abraçado por todos
-Bom trabalho, Alves, disse-lhe eu com uma pequena
palmada nas costas.
-Pessoal, vamos dormir. Amanhã cheira-me que vai ser um
dia muito mais quente. E tu, Alves, faz favor de não te descalçares.

Nota: “costureirinha” – termo utilizado pelos combatentes para designarem os tiros
provenientes das automáticas Kalashnikov, arma de origem soviética.

Dedicado a todos os que viveram este acontecimento na noite de 23 de Setembro de 1971

TEXTO e FOTOS de:

Samuel Peixoto
Furriel Miliciano da CART. 2785











quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

O RAPAZ ESTAVA FRACO


Samuel Peixoto em Messenguece

O RAPAZ ESTAVA FRACO

Daquele céu cor de chumbo a água não parava de cair inclemente há vários dias.
O silêncio era quebrado apenas pelo chapinhar das botas pisando o tapete verde do capim que após a época seca, começava a brotar da terra fértil e virgem.
O furriel Duarte limpou com a mão a cara molhada da chuva, olhou á sua volta ao mesmo tempo que consultava o relógio. Faltavam alguns minutos para as quatro da tarde.
Aproximava-se a hora de procurar um local para passar mais uma noite. Mais uma noite chuvosa para não variar…
Avistou uma elevação no terreno e acelerando o passo ultrapassou os dois camaradas que seguiam á sua frente e ordenou ao guia que se dirigisse para aquele local.
Alguns minutos depois alcançaram o local referenciado.
Como era habitual, o grupo instalou-se em círculo. Depois de observar os arredores, o graduado fez a
distribuição dos turnos de sentinela, redigiu uma mensagem breve para o aquartelamento dando as coordenadas daquele local e que o Azevedo telegrafista se encarregou de enviar. Por vezes, Duarte gostava de ser ele a entrar em contacto com o comando, mas naquela tarde deixou que fosse o companheiro a fazê-lo. Depois atirou para o chão com violência o saco que trazia às costas e que continha uma manta e várias embalagens de ração de combate. Duarte não se encontrava nos melhores dias. Depois sentou-se num tronco de uma árvore caída talvez pela acção de qualquer vendaval ou derrubada por algum grupo de elefantes.
À sua volta o restante pessoal começou por abrir os sacos. Estava na hora de enganar o estômago.

Em Muram à chuva que caía copiosamente
“ Merda de tempo!”, Resmungou o Duarte ao sentir os pingos da chuva que caíam em bica sobre o seu nariz através do encharcado “quico”.
O rapaz sentia-se cansado. Cansado física e psicologicamente. Não conseguia compreender o que há
quase vinte e dois meses andavam a fazer. Aliás, há muito tempo que não compreendia nada.
Apesar da chuva, o ar estava quente. Alguns companheiros despiram mesmo os casacos camuflados e de tronco nu, parecia que estavam a ter um duche na melhor das casas de banho.
Duarte sorriu.
Sentia-se também quente. “ Estarei com paludismo?” –
Pensou o rapaz. Nunca tinha sofrido daquela maleita e por isso não sabia os sintomas que aquilo dava Abriu o saco e começou a remexer nas latas da ração que ainda restavam. Desistiu. Tinha fome, mas
paradoxalmente não lhe apetecia comer.
Notou então um vulto que se mantinha em pé à sua frente. Olhou e reconheceu o “professor”.
-Posso sentar-me? – Interrogou o recém-chegado.
Duarte olhou à sua volta, voltou a olhar e por fim, respondeu:
- Estás a ver alguma tabuleta a dizer “ reservado”?
- Não….
-Então, senta-te e pede a ementa. Está na hora de jantar…ou – olhando para o relógio continuou – ou do lanche?
O rapaz olhando de soslaio para o graduado, sentou-se torcendo o nariz.
-Ó Duarte… não o estou a conhecer….
-Porquê? É por ter a barba crescida?
-Ora… parece-me que está com um humor do catano…
- Não… estou feliz! Diz-me lá, não estás feliz também?
O “professor” não respondeu. Olhava para as embalagens da ração e avaliava se iria comer “carne guisada com vegetais”, ou “sardinhas em azeite picante”.
-Quando regressamos à base, furriel?
-Porquê?
-Porque não sei se coma uma ou duas latas…. Mas, que coisa é essa de estar feliz?
-Deixa lá… não penses nisso. Devemos regressar daqui a dois dias…
-Dois dias?!
- Sim, a menos que queiras caminhar dia e noite…
-Isso não… bem, eu não me importava muito, mas com esta chuva…
-Olha lá ó “professor”, já tiveste paludismo?
O rapaz olhou para o graduado e sorrindo exclamou:
- Paludismo? Se tenho tido… paludismo…. Cagufa….Tefe-tefe… sempre que saio lá do aquartelamento, fico sempre“doente”…
-Porra! Não é desse paludismo catano! Paludismo mesmo! Doença! Tás a compreender?
-Ah! Não. Desse nunca tive. Tomo sempre aqueles comprimidos que o furriel enfermeiro distribui. Sabe, há por aí malta que os deita fora. Depois… lixam-se.
-Pois…acho que estou com isso.
-Porquê?
-Sinto-me quente. Não sei se estarei com febre…
O “professor” levantou-se, aproximou-se do furriel, e…
-Com licença!...- colocou a mão na testa do camarada de
armas.
-Ná! Não me parece…
Também és licenciado em medicina, é?
-Não…. Chamo já o “Yazalde” enfermeiro…
-Deixa estar, isto não é nada de certeza. É de estar cansado.
-Como queira… mas eu achava melhor pedir ao enfermeiro para o ver. Ele deve trazer na mala um
termómetro e veria se está ou não com febre…
- Que se lixe! Isto passa.
Samuel Peixoto na Macossa

O “professor” olhou novamente para o graduado e abrindo uma lata de ração começou a mastigar. As gotas da chuva pingavam do “quico” e misturava-se com o molho das sardinhas.

Duarte olhou à sua volta e viu os vultos dos companheiros esbatidos por entre a neblina que começava a aparecer, parecendo fantasmas. Um ou outro conversava, mas a maior parte comia em silêncio. O que pensariam aqueles seus camaradas? Não estaria certamente enganadose dissesse que os pensamentos daqueles jovens se situariam a muitos milhares de quilómetros dali.
Abriu o saco, olhou para as embalagens mas desistiu.
Olhou para o “professor” que entretanto depois de ter despachado as sardinhas, se atirava agora á carne guisada. E pela maneira como comia, dava a ideia que não iria ficar por
ali.
- Ó “professor”… estás mesmo com fome, cum catano…olha que ainda temos dois dias pela frente, se não houver merda por aí…. Comes tudo hoje, depois lerpas com fome.
-Nem pense nisso. Tenho aqui muito material…
-Como é isso? Já andamos aqui há quatro dias…
- Tenho aproveitado o que aqueles gajos não querem – e sorridente mostrou ao furriel a “reserva” no fundo do saco.
Depois sorrindo continuou,
-Sabe o que dizem na minha terra?
-Sei lá…
- Quem não é para comer, não é para trabalhar…
-Estou a ver…
Entretanto a carne guisada tinha desaparecido e uma lata de salada de frutas estava na mira do “professor”.
Duarte, talvez contagiado por aquele apetite devorador do companheiro, abriu uma embalagem de leite com chocolate e lentamente foi beberricando.
-Só vai comer isso? – Perguntou o soldado fazendo uma careta de admiração.
-Daqui a pouco se me apetecer como algo mais, não te preocupes comigo….
Depois de alguns momentos de silêncio durante o qual a salada também desapareceu, o “professor” voltou a falar:
-Ó Duarte… a sério, não o estou a conhecer…
-É pá! Outra vez essa conversa? Porra. Sou o mesmo.
Porque é que não me conheces ao fim destes meses todos?
-Porra furriel! Você depois de vir do hospital não parece
o mesmo Duarte. Ná! Está diferente.
-Impressão tua…
-Impressão minha, o tanas! Pergunte ali àqueles camaradas…. Vá! Pergunte. Todos comentamos que o furriel não é aquele Duarte que era antes de levar com os
estilhaços…
-Com que então a comentar nas minhas costas, hein?
-Não é a dizer mal… nada disso, sei lá, estranhamos.
Você era um gajo bem-disposto…sempre pronto a dar uma palavra de ânimo e agora, parece que quem precisa de ânimo é o Duarte.
- Achas?
-Acho. Quero dizer, achamos todos. Se não déssemos por isso, não falávamos.
-Andam a ver mal… “professor”… - ripostou Duarte.
-Não me lixe Duarte….
O furriel não respondeu de imediato. Olhou novamente para aquela chuva que não parava, viu novamente o vulto dos outros camaradas, coçou o bigode encharcado a fim de o limpar da água da chuva e depois de ter acabado de beber o leite, virou-se novamente para o companheiro.
- Vou confessar-te uma coisa. És capaz de guardar um segredo?
O soldado franziu a testa e abanou a cabeça num gesto de confirmação.
-É pá! Ó furriel… um segredo? Não me diga que… Não!
Não pode ser… engravidou a Julieta? É por isso que anda preocupado e…
O furriel não deixou o companheiro continuar, e quase gritou:
-Vai-te foder, ó “professor”! Vocês andam a pensar isso de mim? É isso? Seus…. Seus…. Não. Não é nada disso.
-Bom… pensei que era qualquer coisa do género…. Mas também não era nada de anormal, não é?
-Nada de anormal? Tu és maluco ou quê?!
O “professor” encolheu os ombros e continuou com um sorriso matreiro
-Todos sabem onde o furriel passa a maior parte do seu tempo livre….
-Mas vocês andam a seguir-me seus sacanas? Ando pensativo, mas não é por isso.
-Então porquê, furriel?
Duarte ia responder mas ao ver o companheiro meter a mão no saco, não se conteve.
-D asse! Vais dar ao serrote outra vez?
O “professor” encolheu os ombros.
-A conversa abriu-me o apetite… mas diga lá, Duarte, que segredo quer que guarde? Sou um túmulo para essas merdas. Já sabe.
-Estou a ficar com medo, “professor”…
O rapaz parou de mastigar, olhou para o graduado, arqueou as sobrancelhas num gesto de dúvida e sorriu:
- Está com medo? Agora sou eu a dizer, “não me lixe”…Porra, você, um gajo, desculpe o termo, um gajo que nunca virou a cara a nada, está onde é preciso e às vezesnem precisava de estar… levantou aquela merda de mina…
-Nem sabes o que me custou levantá-la…
-Faço ideia…
-Não fazes não… mas isso são águas passadas. E sabes quando comecei a ter medo?
O soldado limpou a boca ao lenço sebento e abanou a cabeça negativamente.
-Fiquei com medo depois de ter estado no hospital.
-Porra…. Não percebo. Depois de ter estado em Nampula é que ficou assim? Por onde andou? Arranjou uma namorada e está com medo de não a voltar a ver….
- Chiça! Só pensas em namoradas….

Regresso ao quartel em Marrupa

-Ora, em que posso pensar mais? É a única coisa boa que nos resta. Não vale a pena pensar na chuva que nos está a ensopar o pêlo…Não vale a pena pensar na porcaria das rações que comemos….
Duarte interrompeu o discurso do companheiro largando uma gargalhada.
-Porcaria de rações? Bem, pelo que tenho estado a ver, não devem ser assim tão más…
- Um gajo tem que comer, não é? Mas… ia dizer que ficou com medo depois de Nampula…
-Isso mesmo. Tu fazes ideia do que é o hospital?
-Não faço grande ideia. Bom quer dizer, deve estar cheio de malta como nós…uns feridos…outros a recomporem-se…
-É isso mais ou menos. Desejo que nunca possas estar naquele hospital. Depois de ver tudo fiquei com medo de ficar como muitos dos que lá estão. Não tenho medo de levar um tiro e… puff! …Lerpar! Tenho medo é de ficar como muitos deles. Tenho medo de ficar sem pernas, ou sem braços.
Tenho medo de ficar cego. O que vai ser a vida daqueles nossos camaradas? O inferno que vai ser a vida deles, e a vida dos familiares…Viram-nos sair de casa inteiros e recebem-nos estropiados, sem pernas, sem braços… alguns sem juízo…outros num caixote de madeira, como o nosso
Pereira….
Ao recordar o Pereira, o furriel Duarte parou de falar. O seu pensamento voou numa fracção de segundos até ao local onde a Catarina, mulher do Pereira, se encontraria.
Conseguia adivinhar o drama que aquela mulher estaria aviver. Estava a ver o filho do Pereira crescer sem ter conhecido o pai. E o que diria aquele miúdo quando lhe perguntassem pelo pai…
Duarte teve a sensação que algumas lágrimas teimaram em se misturar com as gotas da chuva que lhe caíam na cara.
Foi chamado á realidade quando a seu lado o “professor” recomeçou a falar.
-Ò furriel.posso também dizer um segredo?
-Tu? Segredos? Boa… conta…
- Neste momento estou a ter inveja dos “turras”…
Duarte olhou para o companheiro franzindo a testa interrogativo.
-Inveja? D´asse! Por causa deles estamos aqui encharcados, perdidos nesta imensa mata….
- Será por causa deles?
-Claro… Bom… não falemos disso. Diz-me porque é que tens inveja deles?
O rapaz suspirou comicamente.
-Olhe… neste momento devem estar nas palhotas deles, a aquecerem-se nas fogueiras, acompanhados das mulheres e…
-É pá! Logo vi. Já cá faltavam essas tuas ideias….
-E não tenho razão? Se fosse ao contrário? E se fossemos nós que estivéssemos numa palhota…uma
mulheraça na esteira e…
O furriel interrompeu o entusiasmo do companheiro.
-Chega! Chega!...
No entanto Duarte reconheceu que aquele rapaz tinha razão. Efectivamente seria muito mais agradável estar deitado numa palhota onde não chovesse do que estar ali sentado a apanhar chuva.
E mais uma vez os seus pensamentos voaram daquele local húmido, mas desta vez, porém, não foram para longe dali. Dirigiram-se para o aldeamento e imaginou-se deitado,não numa esteira, mas sim na cama macia da moça que ele visitava diariamente. E imaginou estar a acariciar aquele corpo cor de chocolate, muito macio e suave da rapariga e brincar com os mamilos escuros dos pequenos e firmes seios.
Duarte sentiu-se naquele momento extremamente excitado, mas voltou á realidade quando viu um vulto caminhar na sua direcção. Era o telegrafista Azevedo.
Leu com dificuldade o teor da mensagem recebida.
-Boas notícias, “professor”…
-Vamos para casa? Acabou a comissão?
-Nada disso. Vamos regressar ao aquartelamento amanhã. As viaturas vêm recolher-nos na ponte do rio Messalo….
-Estão muito generosos… não acha furriel? Bom, sendo assim vou petiscar mais alguma coisita…estou com fome. É servido furriel? Devia comer alguma coisa….
Duarte olhou para o companheiro e não pôde deixar de sorrir.

Texto e fotos de
Samuel Peixioto
Furriel Milicino da CART. 2785


                         


Páginas

Páginas

Armamento e comunicações

Clique em play-in memories dos camaradas falecidos.