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Livros da guerra colonial

Miandica terra do outro mundo


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

MEMÓRIAS DUM MECÂNICO DE ALOUETTE EM MOÇAMBIQUE POR ABDUL OSMAN

O Alouette III sobre a estepe africana
Fui ao jantar dos Índios (NR: Esquadra 503 - Moçambique) em Monsanto em 2004, o meu primeiro encontro com muitos elementos da esquadra que não via há muito tempo. Alguns havia 28 anos.
Entrei, começo a olhar. Quem é quem? É? Será?...
Alguns vou reconhecendo: Queiroga, Azevedo, Braga, Barbosa, Branco, Carreira (que já tinha encontrado em Sesimbra no Verão de 80 e nunca mais nos vimos), Branco que encontrava muitas vezes no cacilheiro) Magalhães, Tavares, Mourão, Oneto, Ferreira Neto e muitos elementos que não reconhecia...
Distribuímos-nos  pelas mesas e oiço o meu amigo Oneto a dizer : "Abdul, passaram-se muitos anos, procurei por ti e nunca soube onde paravas... queria dizer-te uma coisa, que ainda hoje está aqui guardado. Tenho a dizer-te: nunca vi uma pessoa com tanta coragem, como tu tiveste numa evacuação que fizemos na picada do Sagal. Ainda hoje estou a ver-te a andares na picada, com a maca debaixo do braço e debaixo de fogo. Os paraquedistas tinham caído numa emboscada e tinham um elemento ferido,  que foste buscar.  Com um "pára" que estava entrincheirado, os dois meteram o ferido na maca e carregaram-no até ao helicóptero. Nunca vi um ato de coragem tão grande."
Depois de ouvir o que ouvi, pensei "eu fiz isto?!" Fiz tantas evacuações, fui a tantos buracos, a tantas picadas fazer evacuações... Aliás nunca fui sozinho, tinha de ir com um piloto. O risco era sempre dos dois. Passados dias fui à minha caderneta de voo, procurei a data dessa evacuação que foi a 9 de agosto de 1974  (Mueda - Picada do Sagal - Mueda; 15 minutos). Está registado que no dia 9 de agosto fizemos voos operacionais (evacuações) de Mueda para Sagal e volta.
Meu amigo Oneto: se houve um ato  heróico da minha parte, esse ato não foi só meu, mas também teu. Meu por lá ter ido buscar o ferido e teu por estares dentro do helicóptero, à espera. Eras um alvo fácil e durante o tiroteio podias ter sido atingido. Felizmente nada aconteceu. "Alguém" nos protegeu e cumprimos com a nossa missão, que era salvar mais uma vida...
Tinha a minha caderneta de voo bem guardada. Quando lhe mexi, ao ler as datas e locais para onde voei, as recordações começaram a surgir e… vou passar para o papel todos os momento que posso recordar.
Novembro de 1971, estava eu em Lourenço Marques, depois de ter estado dois anos lectivos em Tomar. Na conversa com um dos muitos alunos da Escola Industrial, decidimos ir para a Força Aérea Portuguesa (FAP). Queríamos tirar o curso de mecânico de aviões. Esse era o nosso sonho.
Fomos buscar as papeladas e falei com o meu pai, dizendo que queria ir para a FAP pois queria ser mecânico de aviões. Como já tinha os papéis preparados, assinou mas foi dizendo que não gostava muito da ideia.
Em Dezembro desse mesmo ano, fui à inspecção e em Janeiro de 1972, partimos para a Beira para a BA10, onde estivemos uma semana à espera de embarque para Portugal. Depois de uma semana à boa-vida, embarcámos no Boeing 707 da FAP. Nesse voo, veio pessoal que já tinham feito a comissão, outros que iam de férias e uma série de feridos que estavam a ser evacuados. Chegámos a Lisboa de madrugada e numa carrinha, fomos para a Base Aérea nº2, Ota. 
Aí começámos a recruta e em Março fizemos Juramento de Bandeira. Entrámos uns dias de férias e no regresso, sei que não vou para o curso que tinha pedido. Enviaram-me para o curso de comunicações. Chumbei logo no 1º período, pois não conseguia apanhar morse, aquela coisa de traço ponto, ponto, ponto traço etc.

O curso de Mecânicos de Material Aéreo na BA2
Acabei por ir para o que queria, o curso de MMA (Mecânico de Material Aéreo). No fim do curso, em maio de 1973, venho a saber que tinha ficado em 45º lugar entre 60 elementos. Então não?! Pouco estudava, queria passar fins de semana em Lisboa e matava muitos" reforços" (serviço de sentinelas que os instruendos tinham de fazer). Assim ganhava umas coroas.
Tal como os últimos quinze elementos, tinha de ir tirar o curso de helicópteros. Fiquei magoado. Fiquei chateado. Não queria ir para os helicópteros, pois nessa altura ou um pouco antes, tinha sido abatido um helicóptero em Moçambique com seis comandos a bordo. Nessa noite, depois do jantar fui para o bar apanhar uma piela e só dizia "esses fdp querem mandar-me para a morte", até que tive de ir para a cama completamente "anestesiado".

De volta do Artouste IIIB na BA2
Passados dias, lá nos enviaram os quinze para as OGMA em Alverca. Já estava mais perto de Lisboa. Não sei porquê, comecei a gostar de conhecer o Alouette III (ALIII) e fui interiorizando o gosto pela máquina. Fiquei em segundo lugar e houve quem chumbasse, pois não queriam nada com essa máquina. Penso que fomos dez elementos estagiar para BA3 em Tancos. Uns foram para a manutenção, outros para a linha da frente durante uns tempos. Depois  trocávamos. Fui para a linha da frente primeiro, onde conheci muitos mecânicos que já tinham feito a comissão, por isso já tinham bastante experiência. Ouvi muitas histórias. Histórias do que o mecânico e o piloto passavam durante o voo. Comprei um bloco de bolso e "encostei-me" ao mecânico Raimundo, que ao princípio não queria ensinar os segredos da máquina, mas lá acabei por o convencer. Ensinou-me todos os segredos que sabia. Eu fartava-me de tomar nota dos tipos de avaria, o que deveria saber e as causas.
Geralmente as avarias eram no arranque.
Depois do estágio fui colocado no Montijo à espera de embarque para Moçambique. Acabei por embarcar no dia 9 de Outubro de 1973 e chegar (a Moçambique) a 10 de Outubro.
Com o curso de manutenção e linha da frente de ALIII e Artouste IIIB (motor) e com o meu bloco de notas, estava pronto e convencido que iria parar a Tete ou a Nacala. 
Entretanto, enquanto espero colocação e estou sem fazer nada na BA10, para matar tempo vou indo ao hangar onde estavam dois helicópteros e começo a conversar com o mecânico que lá estava, o Carlos Alberto, mais conhecido por Joe, a quem tinha dito que tinha o curso de helicópteros. 
Num domingo o Joe vem à minha procura e pergunta-me se queria ir voar. Fazer uma evacuação. Eu disse logo que sim e não pensei em mais nada. Fui voar. Estava nas "minhas sete quintas". 
Fomos para a Cabeça de Carneiro e depois para uma largada de tropas. Isto com dois helicópteros. Passado um bocado, vem um com um cadáver de um soldado, que tinha levado um tiro na nuca e a parte da frente do pescoço tinha desaparecido. Quando vi fiquei impressionado. O Joe veio ter comigo e disse para me ir habituando que isto não era nada. 
Trouxemos o morto até à Beira.



As evacuações de feridos e mortos em Alouette III

Passados alguns dias,  qual não é a minha surpresa: sou colocado na BA10 – Beira. Bem bom, longe da guerra... e a lavar os trens de aterragem dos Nord´s.
Não, não era trabalho para mim. Queria mais, queria viver as histórias que tinha ouvido em Tancos. Era jovem, queria aventuras, queria saber se era verdade o que tinha ouvido.
Por não saber estar calado, tinha mesmo que dizer a todo a gente que tinha o curso de helicópteros. Tinha saudades de voar e o "prémio" foi ir para a Esquadra dos "Índios". A 27 de Outubro de 1973 fui por isso transferido para a Esquadra 503.


Fui da  Beira  para Nampula e depois  Nacala, para apresentar-me. Voltei depois a Nampula, onde estava sediada a Esquadra 503. Dois dias depois estava em Mueda.
No dia que cheguei a Mueda, apareceram os mecânicos e o pessoal todo, para ver o Cheka que tinha acabado de aterrar e para dar as boas vindas.
Levo a minha tralha para o quarto e volto ao hangar. Assim que lá chego e sem tempo de conhecer o Aeródromo de Manobra (NR: AM51), vou com outro mecânico para ser "largado".
Ia com muita energia, cheio de muita vontade de saber e de ver. Curioso com o que ia encontrar. Todo operacional lá vou. Chegamos ao "buraco" (local onde se podia aterrar num matagal que era feito pelo exército). Ainda estávamos altos. Saltei com a maca enquanto o héli aterrava. Com a maca aberta e com o ferido, voltei a entrar no héli, quando vejo a cara do ferido. Tinha um lençol a tapa-lo e ao querer levantar-se, destapou a cara. Fiquei em choque. Via dois buracos no lugar onde em tempos foram os olhos. O cheiro de sangue, pólvora e vomitado. Fiquei sem energia.

Alouettes no AM51 - Mueda
Toda aquela vontade de ajudar que possuía, tinha desaparecido naquele instante. "Meu Deus onde me vim meter!"
Enquanto pensava nisso, agoniado, com vontade de vomitar, puxei pelo meu chapéu e tentei vomitar. Não consegui. Entretanto o ferido queria levantar-se e eu comecei a dar-lhe palmadas no braço, para acalma-lo, para ele sentir que alguém estava perto. Passado pouco tempo estávamos no hospital de Mueda. Enquanto tirávamos o ferido, ele estremeceu e penso que deve ter morrido nessa altura. Regressámos ao AM (mais tarde soube que tínhamos ido para perto de Mocímboa do Rovuma). Eu sem forças, desiludido, só pensava que tinha de passar dois anos naquilo. Eu tão novo, com 20 anos. A minha juventude a ser enterrada na guerra.
Nessa noite fui "julgado". Não tinha vontade de nada, mas tive de aguentar e pagar as bebidas ao pessoal. Habituei-me e depressa. Só tinha que aguentar, pois ninguém iria pôr a minha vida cor de rosa. Estava na guerra.
No dia seguinte, fui ao quartel do exército à procura do meu irmão mais velho acabei por encontrá-lo e a outros amigos da minha infância. Uma surpresa.
Com as voltas todas que tinha dado - Nacala, Nampula - acabei por deixar um par de botas em Nampula. Restavam-me as botas mais usadas, roupas e um par de sapatos. Em Mueda as botas começaram a abrir pela frente e não fui de modas. Toca a cortar a borracha da base e acabo por andar com meia borracha. Que esperteza!!! Tinha de esperar uns tempos até voltar a Nampula, mas não deixei de usar as minhas botas.
No sexto ou sétimo dia, fui fazer uma evacuação a uma picada e trouxemos um soldado morto. Olhei para o par de botas que vinham em cima da maca. Falei com o piloto, mostrei-lhe as minhas botas e não estive com meias-medidas, toca a trocar. Acabei por fazer a comissão com esse par de botas.
O jornalista italiano, Ciancarlo Coccia, vítima de uma mina
Muitas evacuações, reabastecimentos e muitos voos fiz até ao Natal. Voávamos quase todos os dias, era raro não haver movimento no AM. Lembro-me dum fotógrafo italiano que andava com os comandos e com a tropa no mato a fotografar. Várias vezes o encontrei nas evacuações. Numa dessas evacuações, na estrada que ligava Macomia a Chai, numa coluna, uma viatura tinha pisado uma mina anticarro e esse fotógrafo acabou por ser ferido e evacuado.
Quantas vezes estava a almoçar e como estava de serviço tinha de ir, tinha de interromper o almoço. Avisava o cozinheiro que não tinha acabado de comer e ele preparava um bife quando regressasse. Mas por vezes a comida…
A 31 de Dezembro de 1973, preparámos petiscos para a passagem de ano. Fizemos uma festa no nosso quarto, outros faziam festa noutros locais (no abrigo, no bar). Eram 6 da manhã quando tivemos de ir fazer uma evacuação (foram dois ou três hélis) perto de Mueda, numa picada que passava por Nancatari. Uns elementos do exército tinham saído de Mueda e tinham ido a Nancatari, levar coisas para os elementos do exército que lá estavam. De regresso foram apanhados por minas ou emboscada. Houve quem visse (Camolas) e mais elementos do AM, pois estavam em cima do depósito de água e conseguiam ver tudo à volta. Deram logo o alerta e aí fomos nós. No meu helicóptero, trouxe um morto. Um enfermeiro, que uma explosão tinha separado o braço do corpo, pelo ombro.
Depois desse dia, até eu sair de Mueda, eram baixas todos os dias. Nas picadas de Pundanhar, Nazombe, Tomba de Nairoto, Omar, Sagal, Mocímboa do Rovuma. 
Muitos foram os locais por onde voei, quer em evacuações quer em reabastecimento.

Voo em formação de AL III da FAP algures em África     
A 15 de Janeiro de 1974, o Cap. Castelo diz-me para fazer a mala, pois a minha parte dessa comissão estava feita e iríamos para a Beira. No dia seguinte iria com ele num heli. Dia 16 de Janeiro, partimos para Nampula, com uma aterragem em Porto Amélia, para reabastecermos. Chegámos a  Nampula onde estive uns dias. Dez dias volvidos, arrancámos para a Beira com mais quatro helis, para efectuarmos heli-operações em vários locais, perto da Gorongosa, Carneiro, Vila Paiva de Andrade, Vila Gouveia etc. Voltei para Nampula e pensei "lá vou de novo para Mueda".
Acabei por não ir. Dois dias mais tarde, partimos para novas operações, mas dessa vez fomos para Vila Cabral, zona do Niassa. Fui avisado que iria fazer um destacamento de um mês nesse local. Acabei por ficar mais tempo. Saí de lá em maio de 1974.
Depois das heli-operações fiquei em Vila Cabral a substituir o F. Nunes, que já estava com nó (anos mais tarde fomos vizinhos na Cova da Piedade).

As "Mamas da Gina" -  

Lá fiquei, fui conhecendo as áreas, as serras Cornos de Unango, Mamas da Gina (NR: existiam várias formações montanhosas na zona de Unango batizadas segundo as estrelas de cinema da época - Gina, Sofia e Brigitte). Fiz inúmeras evacuações, reabastecimentos e caça grossa. Como éramos mais finos, caçávamos de heli, quando vínhamos de alguma missão.

O transporte de caça no regresso duma missão em AL III      
Conheci o famoso Daniel Roxo. Voámos muitas vezes para a milícia dele. Fazíamos evacuações e reabastecimentos. Recordando o Daniel Roxo, vêm-me à memória duas evacuações que fizemos para a milícia. Estávamos sossegados no AM, quando aparece o Daniel Roxo, a pedir que fossemos evacuar um elemento da milícia dele que tinha sido mordido por uma cobra. Lá fomos, depois de nos terem dado as coordenadas. Não conseguimos encontrar a milícia, que estava no mato, nem conseguimos estabelecer contacto com essa milícia. Resultado: regressámos. No dia seguinte, o Roxo vem ter connosco e traz um milícia para nos indicar onde estava a vítima que tinham deixado para trás. Fomos ao hospital, buscar um enfermeiro para prestar os primeiros socorros. Quando descolávamos, reparei que o mesmo dizia adeus às enfermeiras todo sorridente e lá fomos os quatro: eu, o piloto, o enfermeiro e o milícia.
Localizámos o local onde a vítima estava, abri as portas, disse ao enfermeiro para se preparar enquanto íamos buscar a vitima. Saí, retirei a maca e sem pensar nas consequências, se havia minas ou outras armadilhas e meti-me com o milícia pelo mato adentro. Colocámos a vítima  na maca e fomos directos para o heli. Descolávamos, quando reparo que o enfermeiro está mal disposto. Olhei para a saqueta da injeção com instruções, enquanto o enfermeiro estava a injetar o anti-veneno ao milícia, à volta da mordida (que eram dois buracos), não fosse ele incapaz de aguentar… Passado um bocado, o nosso amigo enfermeiro vomitava para cima do soldado que estava na maca. Chegados ao hospital, enquanto esperava pela maca, pedi um balde com água e dei um banho no interior do heli. O resto, teria que ser limpo no AM.
Passados tempos, vejo o Roxo no AM e pensei "lá vem desgraça" (lembrei-me de Mueda do amigo sinistro - sempre que havia evacuações o nosso soldado aparecia).
Era mais uma evacuação. Tínhamos de ir ao mato com o Daniel Roxo buscar um ferido. Quando chegámos ao local, era um ferido e um morto. 
Mais tarde soube que a milícia do Roxo tinha entrado num acampamento inimigo e a baixa tinha sido por causa de uma armadilha. Tinham metido uma granada por baixo duma camisa, que estava presa a uma árvore. O soldado viu a camisa, puxou e... BUMMM.
Alouette III com T-6 em fundo 

Março de 1974   

Depois de um voo e de preparar o heli para nova missão, saímos para jantar, eu o Zé Grande, o Barbosa e o Azevedo.
Como era o nosso costume, íamos à cidade ao restaurante Miralago comer o “Frango à Miralago”, beber tintol e ir ao cinema. O mesmo filme era projetado durante uma semana e como todos os dias íamos ao cinema era um fartote. “A mania das grandezas “cujo ator era o Luí de Funés “. Era para a "desgraça". Até entravamos a marchar! Era um gozo. Era bom, descomprimíamos a tensão depois de um dia de voo.
Numa dessas noites estava eu a dormir e comecei a sonhar que estava na placa do AM (NR: Aeródromo de Manobra) de Vila Cabral e ouvia o som do helicóptero. Ouvia o bater das pás, mas não o via e de repente ouço uma explosão e não ouço mais nada. Acordo a transpirar e cheio de medo com o coração a bater muito depressa. Acabei por sossegar e dizer para mim que era um sonho. Não comentei com ninguém e deixei andar, tinha sido um sonho. Só consegui adormecer horas mais tarde. 

O helicanhão     
Passado tempos, fazemos uma nova operação em Tenente Valadim, pois a zona de ataque era numa zona chamada Serra Cortada, onde o inimigo estava. Dou saída ao helicanhão que era pilotado pelo Cap. Castelo e levava como atirador o Sarg. Vaz Carvalho (o sonho vem-me à memória). Durante a largada o helicanhão dava protecção à tropa e aos helis. Como tal, tinham de se meter no fogo do inimigo. 
O helicanhão é atingido. Ao retirar o atirador à chegada, sinto o cheiro de pólvora e carne queimada. É um cheiro característico. Penso de imediato. O Vaz foi atingido e queixa-se de uma perna. Foi evacuado para Nampula. 
Finda a operação voltamos para Vila Cabral. 
Há uma nova operação em Niassa. Quando soube que a mesma ia ser repetida e era para o mesmo local, preparei tudo que era necessário para a operação: óleos, massas, macas e ferramentas. 

Linha da frente de AL III em África         
Chegam quatro helicópteros e no dia seguinte, partimos para as novas operações para a Serra Cortada. Entretanto, surge o mau tempo e acabamos por ficar no aquartelamento em Tenente Valadim. 
Enquanto aguardávamos que o mau tempo levantasse, ficámos a jogar às cartas, então o que eu gostava jogar: à Lerpa. Não me recordo de todos os jogadores, mas era eu, o Mendonça e o Manel da milícia do Roxo, que estava a perder muito até à hora do jantar. Depois de bem comer e beber, regressamos às cartas. Nessa altura, a minha sorte mudou: comecei a ganhar. Consegui ter um saldo positivo. À meia-noite acabou-se o jogo. Não perdi, também não ganhei muito. Ficámos todos satisfeitos. Aguardávamos o dia seguinte. 
Que foi feito desse tal Manuel? Era engraçado quando contavam as histórias dele. Lembro-me que o queriam promover a alferes e ele recusou-se pois preferia ser sargento, que tinha mais riscos.
Às seis horas da manhã já estávamos no refeitório a tomar o pequeno almoço e depois fomos para a pista preparar os helicópteros e os T-6. Foi uma noite mal dormida, em cima duma espécie de colchão.
As minhas máquinas (helis) eram o helicanhão e um de  transporte que estavam em Vila Cabral. Começo por dar saída ao canhão que era pilotado por Cap. Fernando Castelo e o atirador era o V. Carvalho. Pensei que ia haver vingança da operação passada. Fizemos a inspeção antes de voo, depois de darmos a volta à máquina. O capitão senta-se e coloca o cinto de segurança e eu verifico e bloqueio o cinto. Digo que o cinto não estava bloqueado, o capitão faz um sorriso e pisca o olho. Desbloqueia como quem diz que "está tudo bem". Largo o heli depois de ver se tinha fugas, quer de óleo quer de combustível. Como estava tudo bem, por sinais digo ao Castelo que estava tudo bem e vou para outro helicóptero, faço as mesmas operações e dou o OK.
O heli do Castelo, é o primeiro a descolar. Depois vão todos os outros. Quando o último descola, ao ouvir o som dos helis, recordo-me do sonho que tinha tido. 

As evacuações de feridos e mortos em AL III       
Passados minutos, aterra um helicóptero a dizer que o Capitão tinha sido abatido. Eu não acredito! Afinal o sonho estava a realizar-se. Sou dos primeiros a querer ir para o local da queda. Não deixam. Vai um outro mecânico (Mendes) que é largado no local da queda e retiram o atirador mais uma vez ferido e o corpo do Capitão.
Retiro o corpo do Capitão do heli à chegada. A maca é colocada no solo. Olho para o corpo. Só se ouve o barulho dos helicópteros e dos aviões no ar. O vento sopra e agita a ponta dos bigodes do Capitão. Fico a olhar. Um fio de sangue seco no canto da boca. Uma raiva de revolta surge em mim. Penso em tudo. Quero vingança. O meu Capitão está estendido numa maca e morto. MALDITOS! Isso não vai ficar assim penso eu, mas não estava tudo nas minhas mãos…
Começo a voar com pistola e a minha metralhadora uma Pepshaware (arma capturada ao inimigo). Passado poucos dias, devolvo a pistola, pois só me incomodava. Preferia ter a metralhadora. Saio com o Barbosa para uma evacuação de “zero horas". A rapar as copas das árvores, passamos por Nova Viseu e vamos à procura do local para efectuarmos a evacuação, pois as coordenadas eram para algures perto de Nova Viseu. 
Voámos para vários sítios. Enquanto procurávamos a tropa, que estava no mato, bem os tentámos encontrar através de chamamento da rádio: "terra, terra é a Mosca". Não conseguimos localizá-los. Voltámos a Nova Viseu para nos confirmarem o local, mas não conseguiram dar mais informações.  Regressámos por isso para Vila Cabral, e passados três dias voltámos para o local, com novas coordenadas. Conseguimos localizar o pelotão, aterrámos e quando ia sair com a maca, entregam-me um saco de lona ensanguentado e com um cheiro horrível, pois foram três dias à espera de ser retirado do local. 
Regressamos a Vila Cabral com um cheirete dentro do heli. Como tinha levado o meu desodorizante pusemos o lenço que trazíamos à volta do nariz e comecei a pôr o spray. Passámos o voo a gastar o meu rico desodorizante. Tinha sido bem caro,  tinha-o comprado em Nampula. 
Aterrámos no hospital. Como de costume, apareciam muitos civis e militares a quererem ver o que o heli trazia. E nós "mascarados". Era um voo diferente. 
Aparecem os maqueiros para retirarem a maca e eu entrego-lhes o saco como mo entregaram. Assim que acabo de entregar o corpo despedaçado dentro do saco, uma mulher pergunta o que era aquilo. Eu por linguagem gestual digo "o corpo de uma pessoa". 
A mulher abriu a boca e caiu para o lado. 
Fiz sinal para o maqueiro, a indicar a mulher caída. 
Regressámos à base de portas abertas, para não termos de aguentar mais o cheiro.
Os "buracos" em que muitas vezes os AL III se metiam      Foto: Autor desconhecido
Abril de 1974
 Estava no hangar e na conversa com outros elementos que estavam em Vila Cabral em comissão, quando surge o Braga a dizer que tínhamos uma evacuação de “Zero Horas” para fazermos. Com o heli preparado, e com um T-6 a proteger-nos, lá fomos para mais uma missão de Soberania. 
Depois de hora e pouco de voo, chegamos ao local da evacuação. Preparo-me para dar indicações ao piloto, quando noto que o espaço era muito apertado para conseguirmos entrar no "buraco". Eram árvores altas, uma delas estava seca e representava um perigo se batêssemos com as pás principais.  Transmito ao piloto que não dava para aterrarmos, ele responde que dá, eu aceitei, abri a porta, pus meio corpo para fora do heli e comecei a dar indicações para aterrar.
Aterramos e qual não é o meu espanto, quando percebo que o ferido era um inimigo. Vinha com o soro metido no braço. Meti-o no heli e começámos a descolar. Estava eu a dar indicações para sairmos em segurança, quando de repente ouvimos um estrondo e sentimos o heli a estremecer. Tínhamos batido com as (pás) principais. Foram frações de segundo. Olhámos um para o outro e rapidamente perguntámos "que foi esta merda?"...
O Braga ficou pálido, a voz sumiu-lhe e eu a mesma coisa. Tivemos sorte, conseguimos sair do "buraco" e com um barulho esquisito enquanto voávamos, comunicámos ao piloto do T-6 que estávamos com problemas. Responde ele que estava a ouvir o barulho das pás. Pensámos em aterrar algures, pois o heli estava com muitas vibrações e lá fomos até um aquartelamento no mato, para “Nova Viseu”. Enquanto íamos, verifiquei que a agulha do soro tinha saltado. Eu com a minha boa-vontade voltei a meter a agulha no inimigo. Nem quis saber se estava bem ou mal colocado, pois ainda estava com a revolta, raiva, pois a morte do capitão Castelo era recente e o sentimento de vingança estava vivo.

AL III e T-6 em formação sobre África       Foto: Autor desconhecido
Aterramos em Nova Viseu e somos rodeados pelos soldados que lá se encontravam. Saio do heli e faço-os recuar. Começo a ouvi-los a quererem saber o que se passava eu digo que trazemos um ferido, sem referir que era um inimigo.
Entretanto, chega o Alferes e nós comunicamos que trazíamos um inimigo ferido. Abro as portas do heli, e os soldados com pronúncia dos Açores começam a dizer “olha um turra, deixem-me matar esse fdp”. Entretanto, o alferes manda retirar o ferido para a enfermaria.
Vou ver o que tinha acontecido e verifico que na ponta das pás os saumons  (ver a parte laranja  na foto abaixo) estavam completamente rebentados. Viam-se os veios com contra-pesos. Estavam  com as pontas dobradas. Chamo o piloto e digo: "nem imaginas a sorte que tivemos, mais 2 cm para dentro e a pancada tinha sido nas pás e tínhamos ido desta para melhor".


O nosso protetor T-6 seguiu para Vila Cabral. Nós passámos lá a noite. Mataram um galo que lá tinham para o jantar e durante a refeição vieram muitas conversas, muitas histórias. Soube que numa das evacuações que fiz, o corpo completamente desfeito que vinha num saco de lona era a de um soldado que era o relojoeiro dessa unidade. Nessa noite soube o que tinha acontecido:
Durante uma operação de reconhecimento, o Alferes Ribeiro ia à frente e quando iam a chegar ao rio, o relojoeiro disse ao alferes que ele iria para a frente. Deu uns passos e logo se ouviu uma grande explosão. Tinha sido uma mina antipessoal, reforçada com uma mina anticarro. Tiveram que recolher os bocados do corpo que estavam espalhados pelas árvores (fizemos a evacuação quatro dias depois do jantar, tivemos de ir para a pista, pois tinha sido pedido uma evacuação a uma empresa de táxi aéreo, que apareceu para levar o ferido (inimigo). Os soldados ficaram revoltados, pois se fosse com eles, tinham de aguentar que os helis ou aviões da FAP os viessem evacuar. A psicologia estava a funcionar. Os nossos militares tinham de aguentar e o inimigo não. Tínhamos de mostrar que não estávamos ali para os matar  (por isso o avião civil para evacuar o ferido).
Enquanto esperávamos pela manhã, ouvíamos as aventuras e momentos desse pessoal. Uma delas  ficou-me na memória, pois fartei-me de rir:
Eram os inimigos a gritarem para os soldados, a dizerem para irem embora, porque "a terra não era deles" e "o que estavam lá a fazer". Respondiam os nossos soldados com sotaque açoriano: "turras excomungados" que "largassem as armas", etc. Quando havia ataques à morteirada, os soldados só ouviam as explosões a quilómetros, pois o aquartelamento estava entre dois montes e o inimigo ao lançar morteiradas, atirava para outra colina e vice-versa.
Nessa noite, ficámos à espera de um ataque do inimigo, pois um heli destruído era sempre um troféu apetecido. Fui tentar dormir, não consegui, sempre com um olho aberto e outro fechado em estado de alerta à espera da manhã.
No dia seguinte, pela madrugada, depois de tentar tirar os restos dos saumons, para evitar muitas vibrações, o que era impossível. E eu a imaginar a porca e os contra-pesos a saltarem durante o voo e nós a batermos com o "focinho" no chão. O que vale é que foi só imaginação durante o voo. Chegados a Vila Cabral, passados dois dias, já o heli já estava operacional. Tinham sido enviadas de Nampula as três pás para substituir.
Nunca senti uma sensação como aquela. Foram uns segundos em que a minha vida esteve por um fio. Anos mais tarde vim a saber o que tinha acontecido: as árvores eram altas e a deslocação de ar, fez com que as copas das árvores fechassem e criassem um vácuo… e na descolagem o heli ia perder a sustentação.

Sempre com a protecção do T-6, dias mais tarde fomos fazer reabastecimento à tropa que estava no mato, perto de Tenente Valadim e de regresso, passámos pela picada que liga Tenente Valadim, Nova Viseu a Vila Cabral. Vejo uma série de inimigos na picada, digo ao piloto que podíamos fazer uma passagem e fazíamos fogo. Só que o piloto preferiu comunicar ao T-6, que fez uma rapada e disse que não viu nada.
Nessa noite em Vila Cabral e depois de um jantar bem regado no Miralago, fomos ao cinema ABC e qual não é o meu espanto, ao ver o Alferes Ribeiro de Nova Viseu e uns soldados. Fomos ter com eles que nos disseram que tinham vindo de coluna, buscar abastecimento para o aquartelamento. Disse-lhe que tinha visto uns inimigos na picada, em determinado local, perto de uma viatura Berliet, que estava destruída. Para estarem atentos. 
Passados dias tivemos de ir a Nova Viseu. Mal saí do heli, fui rodeado de soldados a agradecerem o meu alerta, pois tinham tirado da picada oito minas anti-carro!


Como sempre, o pessoal dos helis, tinha de estar continuamente de prevenção. Nunca sabíamos quando éramos chamados para uma evacuação, nem onde.
Eu, o Zé Grande, o Barbosa e o Azevedo mais conhecido por Zbdum (estes últimos eram pilotos), estávamos em destacamento em Vila Cabral.
Pela altura da Páscoa, estávamos a limpar o guincho do helicóptero, quando o Pimpão (piloto de T-6) diz que vai fazer acrobacia aérea e descola. Começa a subir, depois começa a exibição. Passados 5 minutos vemos o avião entrar a pique a rodar sobre si e dissemos "está a cair, ele não vai aguentar". Deixámos de o ver, ouvimos o barulho do motor e logo de seguida um violento estrondo.
Pusemos o heli em marcha, veio um piloto e com mais elementos fomos até ao sitio onde tinha caído o T-6. 
Cheguei perto, chamei pelo nome do piloto, quando vejo o capacete vermelho dentro da carlinga e um bocado mais atrás a asa por cima. Voltámos para ir buscar mais pessoal e a maca, o Zé Grande disse que era a vez dele ir…
Mais um amigo que tinha "partido".
Conheci o Pimpão em 1969. Estudámos na Escola Industrial e Comercial de Tomar. Ele no curso de electricista ou carpintaria, eu no curso de serralheiro. Foi nos anos 69/70 e 70/71, quando estive no Colégio Nuno Álvares e tinha aulas no exterior, pois queria frequentar o curso industrial.
A História não acaba aqui. Quem sabe se um dia mais tarde volto a pegar na caderneta de voo e…

Texto: Abdul Osman, Ex-MMA






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