Bem vindo

bandeira-portugal-imagem-animada-0007 bandeira-mocambique-imagem-animada-0006

Livros da guerra colonial

Miandica terra do outro mundo


segunda-feira, 22 de abril de 2024

2ª PARTE (5º CAPÍTULO) DO LIVRO: O FIM DA LUTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL EM MOÇAMBIQUE. "OPERAÇÃO OMAR" 1 DE AGOSTO DE 1974 . LIVRO DE ATANÁSIO SALVADOR TUMUKE

8.3. Negociações Centrais e Locais

A partir dos finais do primeiro semestre de 1974, desfilaram várias negociações , em Lisboa, Lusaka, Dar-es-Salaam, Amesterdão, Mueda e Montepuez, estas duas últimas  em Moçambique. Estas conversações visavam a aproximação dos beligerantes, relativamente ao fim da guerra. Portanto, existiram negociações encabeçadas pelo MFA  Central, isto é, por emissários vindos ou representantes directos de Lisboa e as que eram da iniciativa dos comandos locais, entre interlocutores regionais e dos próprios quartéis coloniais.

8.3. Negociações Centrais

No que concerne às negociações, as primeiras movimentações neste sentido, tiveram lugar em Lusaka. Com efeito, a postura pouco clara manifestada por alguns membros integrantes da Junta de Salvação Nacional,foi considerada propensa às manobras de agentes  internacionais atentos, ao conflito entre Portugal e as colónias, dispostos a tirar partido, à primeira oportunidade. Recorde-se o contexto da Guerra Fria, em que a nossa Luta decorria e os novos desenvolvimentos políticos na Áfrca Austral. Aqui destaca-se o  regime do Apartheid, na África do Sul, e a DUI no Zimbabwe, em que seus agentes viam a nossa independência uma ameaça, cujos objectivos eram contrários ao racismo,tribalismo e todas as formas de segregação social, política,económica, cultural  e religiosa, em voga naqueles países.

foi na sequência desta leitura que, antecipando a muitos países africanos, a Zâmbia manifestou a sua disponibilidade para a mediação das negociações entre  FRELIMO  e o Governo português e,, tomou as devidas diligências, directamente junto do Governo americano e indirectamente, através deste, junto do Governo Luso. Para o efeito, o Presidente Kaunda mandatou ao seu conselheiro Mark Choa, contactar a  embaixadora americana na Zâmbia. A administração americana deveria advogar junto de António de Spínola, para este aceitar negociar com as colónias portuguesas. 

Abrindo parêntesis, cabe aqui uma questão: por que os acordos viriam a ser assinados em Lusaka? Na Tanzânia havia refugiados e combatentes da FRELIMO, ANC, MPLA; SWAPO, ZANU, ZAPU. Por razões de segurança, entre outras, não era salutar levar o inimigo para o bastião de acolhimento dos movimentos de libertação!

Em Lusaka realizaram-se dois encontros, um, a 3 de Maio de 1974 e outro a 27, do mesmo mês. estas acções iam sendo coordenadas entre os Presidentes Kaunda e Nyerere com o Presidente Samora Machel que, entretanto, não tinha ainda feito diligências junto do novo Governo Português.~

Presidente Samora Machel, ladeado pelos presidentes Nyerere e Kenneth Kaunda

A iniciativa negocial com a FRELIMO viria de Portugal, ao que parece, atravessando a ponte estabelecida  pelos Governos zambiano e tanzaniano, alicerçado pela administração americana. Com efeito, o Secretário-Geral do Partido socialista Português, Mário Soares, teria endereçado um convite à FRELIMO, para um encontro em Bruxelas, no dia 6 de Maio de 1974. Porém, este seria rejeitado pela FRELIMO, por alegada falta de transparência do dirigente português . Ou seja, para a FRELIMO, não estava claro se Soares formulava o convite na sua qualidade de dirigente político ou de membro do Governo, ao que se lhe pediu, inclusivamente,que clarificasse a agenda do encontro.  Sérgio Vieira resume a resposta da FRELIMO, do seguinte modo:

1. Que aceitamos com agrado um encontro com Mário doares

2. Que ignoramos a qualidade em que deseja encontrar-se connosco, se como:                                    a. Secretário Geral do Partido Comunista Português, partido com quem mantemos relações amistosas?                                                                                                                                                      b. Ministro dos Negócios Estrangeiros, de uma potência com quem nos encontramos em guerra?

3. Que mesmo entre partidos amigos, para se reunirem,  normalmente estabelece-se, por comum acordo, a agenda e igualmente, a data e o local do encontro.

4. Que, materialmente, e dada a distância a que  nos encontrávamos de um aeroporto não podíamos estar em Bruxelas dois dias depois.

Após essa celeuma, o encontro entre as partes (FRELIMO Governo Português), teria lugar em Lusaka, um mês depois, a 6 de Junho de 1974, preparado para Zâmbia e a Tanzânia. Há indicações de ter havido outros contactos prévios, estabelecidos por Soares com alguns movimentos de libertação e líderes africanos, tais como:

1) PAIGC, em Conackri;                                                                                                                              2) PAIGC, na pessoa de Aristides Pereira                                                                                                  3) Agostinho Neto, em Bruxelas                                                                                                                  4) Comité de Libertação de África, em Londres                                                                                      5) Comité de Libertação de África, na Holanda

As delegações a Lusaka eram encabeçadas, do lado da FRELIMO, por Samora Machel, integrando Joaquim Alberto Chissano, Mariano Matsinha, Óscar Monteiro, Saúl Mbaze, Jacinto Veloso, Guideon Ndobe, Fernando Honwana, Isabel Martins, Sérgio Vieira e Alberto Chipande. Do lado de Portugal, chefiava Mário Soares, acompanhado por Otelo Saraiva de Portugal e Casanova Ferreira. A delegação moçambicana tinha preparado as conversações, observando todos os pormenores protocolares, desde as saudações às intervenções, passando pela postura. Porém, tais procedimentos acabaram por não se observar, pois o chefe da delegação portuguesa quebrou o protocolo começando o encontro com um abraço ao Presidente Samora Machel. Para todos os efeitos, o gesto foi entendido como de  criação de um bom ambiente para o início das negociações.

No que diz respeito aos aspectos essenciais desta ronda negocial, é de se destacar o facto de ter sido antecedida por uma orientação militar do Presidente Samora, que consistia na intensificação de acções combativas, até que viessem ordens de cessar-fogo, uma clara intenção de buscas de vantagens políticas. Recorde-se que neste período eu já tinha recebido a missão de preparar o assalto ao Quartel de Omar.                                                                                                                      A outra questão consistiu na clarificação de posições, em que a delegação moçambicana declarou que a discussão do cessar-fogo não podia nunca, se separar da resolução da causa que implicara o início da guerra. Tratava-se de uma posição inequívoca da FRELIMO, face às manobras da delegação portuguesa que, apesar de reconhecer a acusação que lhe era imputada, de que não vinha devidamente preparada para estas negociações, insistia em não aceitar a FRELIMO como o único e legítimo representante da luta do povo moçambicano pela sua independência.

Por sua vez, vendo-se incapaz de satisfazer este ponto, a posição da delegação portuguesa consistia no pedido de adiamento das negociações, para a realização de consultas junto do seu Governo. No entanto, mostrou-se preocupada com outros aspectos, entre eles, a continuidade da guerra, face às declarações de Samora. Refira-se que para o Governo Português, este encontro não significava " negociações de facto, mas ensaio de um balão de oxigénio. Na verdade, estava empenhado na montagem de armadilhas políticas em que esperava que a FRELIMO caísse - aceitando um Referendo. A este respeito, em 1979, volvidos 5 anos da ronda negocial, Melo Antunes concedeu uma entrevista ao Jornal Expresso, em que consta o seguinte:

Spínola ao enviar Mário Soares a Lusaka não tinha feito mais do que tentar ganhar tempo, como um manobra dilatória (...) um compasso de espera necessário à organização de reformas plíticas em Moçambique que apareceriam oportunamente no tabuleiro, a reclamar a representatividade no diálogo com Portugal; e simultaneamente, ao enfraquecimento do ardor combativo das forças guerrilheiras, naturalmente desejosas também de uma paz rápida.

Do ponto de vista político, estas conversações foram consideradas um autêntico fracasso. Realmente, não tinham sido criadas as bases profundas para um diálogo profícuo entre as partes. Reconhecendo este aspecto, a FRELIMO tomou medidas estratégicas, procurando no seio do novo Governo Português saído do golpe do 25 de Abril, personalidades capazes de agilizar o processo negocial, ora em curso.                                                                                                                                 No que concerne a esta questão, Sérgio Vieira sublinhou que:

Na análise levada a cabo pela FRELIMO, sob a direcção de Samora Machel, após o fracasso das conversações de Junho de 1974, Lusaka I, deduziu-se que haveria em Portugal vários centros de poder e que importava detectar quem efectivamente, podia decidir sobre a questão da paz ou da guerra.

Foi na sequência desta compreensão que o Presidente Samora Machel enviou a Lisboa, o seu conselheiro Tomaz Aquino Messias de Bragança, mais conhecido por Aquino de Bragança.  Constituíram seus facilitadores, alguns moçambicanos que residiam em Portugal, entre eles Prakash Ratilal, Hermenegildo Gamito, Murade Ali e Leite Vasconcelos. Terá sido este último quem, através da amizade que tinha com um jornalista português , augusto Carvalho, conduziu Aquino de Bragança a Melo Antunes.Com efeito, as diligências deste mandatado académico e político reconhecido internacionalmente, revelar-se-iam frutuosos.pois, Ernesto de Melo Antunes e Almeida Santos, viriam ser preponderantes, em todos os processos negociais subsequentes.

TomazAquino de Bragança

Em decorrência dos contactos  encetados por Bragança, no mês de Julho de 1974, houve negociações de carácter secreto, em Amesterdão, envolvendo José Óscar Monteiro, em representação da FRELIMO. Do lado de Portugal participaram alguns membros da Comissão Central do MFA , chefiados por Ernesto Melo Antunes, cuja delegação integrava Almeida Santos  e o Embaixador Cunha Rego.                                                                                                                     A questão de fundo desta reunião foi a busca de consenso para a necessidade de se preparar cuidadosa e minuciosamente os encontros oficiais. Pretendia-se deste modo, criar maior transparência nos pontos de agenda, ultrapassando a situação que acontecera na reunião de Lusaka.

Matusse traz um excerto sobre os objectivos deste encontro, retirados da entrevista concedida por Melo Antunes, ao Expresso, a 17 de Fevereiro de 1979:

(...) tinha vista, em face do relativo malogro das conversações de Lusaka, assentar com a FRELIMO a metodologia mais conveniente para manutenção dos contactos, tendo-se chegado a conclusão que deveriam evitar-se mais  encontros formais do tipo do "encontro de Lusaka", enquanto não se tivesse avançado na remoção dos obstáculos que permaneciam após aquele encontro.

Os meses de Julho e Agosto de 1974 foram caracterizados por negociações simultânea, entre a FRELIMO e o Governo Português, porém envolvendo separadamente, a Comissão Central do MFA, por um lado e, comandantes de alguns quartéis portugueses, em Moçambique, por outro. Ao nível do MFA realizaram-se três reuniões, em que a primeira aconteceu a 31 de Julho a 2 de Agosto, em Dar-es- Sallam, chefiada pelo capitão Melo Antunes. A segunda , foi de carácter secreto, chefiada igualmente por Antunes e, a terceira, teve lugar a 15 de Agosto, liderada por Mário Soares.                                                                                                                                               Refira-se que Melo Antunes, acompanhado por Victor Crespo e Almeida Santos, chegou a Dar-es-Sallam, na tarde de 31 de Julho de 1974.  No mesmo dia a delegação da FRELIMO, chefiada por Samora Machel, integrando Marcelino dos Santos, Joaquim Chissano, Jorge Rebelo, Óscar Monteiro e Armando Panguene, concentrava-se na capital tanzaniana. Na mesma data decorreu a primeira sessão de trabalho, das 19h30 minutos às 21h15 minutos.

A essa hora tínhamos cercado o quartel de Omar, aguardando pela madrugada do dia 1 de Agosto para o ataque, assalto e ocupação. É  motivo para dizer que estávamos a cruzar duas frentes, por um lado a militar e, por, a político-diplomática, esta última que não era do meu conhecimento.

De acordo com Almeida Santos, paraaspectos,  que colocariam este  reunião, Melo Antunes tinha sido recomendado por Spínola a fazer uma série de concessões, mas salvaguardando dois aspectos que colocariam os moçambicanos numa condição de contínua dependência política de Portugal. De acordo com a proposta, deveria existir um período de transição de 4 a 5  anos e que o respectivo governo seria composto por três quartos de membros nomeados por Portugal e um quarto, designado pela FRELIMO.

A segunda reunião revestiu-se de um carácter secreto. O capitão Melo Antunes, acompanhado por Victor Crespo, encontrou-se com o Presidente Samora Machel, em Dar-es-Sallam, de quem recebeu a proposta do texto dos Acordos de Lusaka. Deste encontro depreendem-se duas leituras, complementares entre si. Uma, que evidencia o postulado português plasmado no Comunicado do MFA, pós golpe de 5 de Abril, o qual defendia claramente que o cessar-fogo dependia de uma solução política e não militar. A outra, indica que a FRELIMO tinha encontrado, de facto, as pessoas certas para um processo negocial frutuoso. Neste aspecto, o mérito vai, particularmente para o conselheiro Aquino de Bragança e em geral para todos os guerrilheiros.

A terceira reunião, chefiada por Mário Soares , integrando Melo Antunes e Almeida Santos, teve lugar no dia 15 de gosto de 1974, na mesma cidade. O Presidente português, António de Spínola, tinha dado outra recomendação à sua delegação - que a FRELIMO pedisse desculpa a Portugal, pelos distúrbios causados, em alusão ao assalto ao Quartel de Omar. Parece que a condição fundamental para a retomada das negociações. À semelhança dos encontros anteriores, este não chegou a nenhum consenso, porque a FRELIMO voltou a embadeirar-se no "Efeito Omar", não só para se contrapor ao Spinola, como também para reiterar o esclarecimento da Lei 7!74, de 27 de Julho acima referida.

Na verdade neste encontro, o "Efeito-Omar" colocou a delegação da FRELIMO numa posição vantajosa face à delegação portuguesa, que não tinha produzido qualquer resultado palpável, desde o início das negociações. Pelo contrario, ganhámos pelo "finca pé" na exigência do reconhecimento do direito do povo moçambicano à sua independência e na situação do princípio de transferência do poder â FRELMO . A adicionar a estas exigências ou ganhos contínuos, a FRELIMO mencionou que nas rondas negociais seguintes  deveria constar a data da Independência,  que seria fixada no dia 25 de Junho de 1975, coincidindo com o dia da sua criação, em 1962. Invertendo a proposta trazida pela delegação portuguesas, a FRELIMO exigiu que o governo de transição a ser estabelecido, fosse composto por três quartos dos membbros nomeados por si, e um quarto, por Portugal.

Refira-se que existe um debate ainda candente em torno de uma cassete respeitante à rendição  da Companhia do Quartel de Omar, havendo duas versões a respeito desta "encomenda". A primeira, sustenta que Antunes teria entregue a Spínola, que, no entanto recusou-se a escutá-la. A outra indica que o capitão, reflectindo sobre a gravidade da situação que encontrara nas negociações, sobretudo o conteúdo da gravação, alegadamente, em nome da disciplina militar, não terá tido a coragem suficiente para transmitir o sucedido ao seu superior hierárquico. Tudo fez para evitar trespassar-lhe aquela informação bastante pesada. A este respeito, Almeida Santos em entrevista ao Expresso, de 17 de Fevereiro de 1979, teceu o seguinte comentário:

Ele era .... Intelectualmente superior, corajoso e muito inteligente. Melo Antunes era também militar. E mesmo Ministro sem Pasta, não deixava de ser um Capitão que, naquela ocasião, se prepara para ir falar com um general.

Ernesto de Melo Antunes, junto a um helicóptero Alluet III, em Angola

Sobre este assunto,Almeida Santos concedeu uma entrevista, na qual destacou três aspectos relativos às negociações de 15 de Agosto, nomeadamente, a falta de apresentação de desculpas conforme a orientação presidencial, a reeixibição da gravação pelo Presidente Samora e a angústia e o desespero de António de Spínola, devido à humilhação do seu Exército. Referindo-se ao pedido de indulgência, assim se pronunciou:

Assim, fizemos. Mas com surpresa nossa, Samora Machel  começou por pretender desconhecer do que estávamos a falar.
Emboscada de Omar? Uma Companhia aprisionada?
Por fim fez-se luz no seu espírito:
O quê? Aquela entrega dos vossos soldados'
E voltando-se para um assessor da sua delegação:
Traz a cassete... 
Cassete? Íamos de surpresa em surpresa. Mas a verdade é que a misteriosa cassete veio, foi por nós ouvida e, ao ouvi-la ficou a constituir a maiores humilhações por que terá passado a delegação de um paés. É claro que não havia lugar à existência de desculpas. Limitámo-nos a pedir uma cópia da cassete para em Lisboa documentarmos isso mesmo. Mal chegados, a primeira coisa que o Presidente Spínola quis sa ber de nós foi se a FRELIMO tinha ou não apresentado desculpas.

Lamentamos informar que não era caso disso. Trazemos aqui uma cassete ...

Uma cassete? 
É verdade! Una cassete!

Logo se pediu um leitor de cassetes, Mas pouco tempo depois de ter começado a ouvi-la, o Presidente mandou abruptamente desligar a maquineta. Manifestamente perturbado. Não sei se invento dizendo que vi brilhar, por detrás so seu inseparável  monóculo, uma lágrima de comoção. Ou de raiva? (...) Diz no seu livro que se recusou a ouvi-la, bem como "aceitar que tão vergonhosa rendição traduzisse o espírito das Forças Armadas Portuguesas em Moçambique. Verdade é que recusou a ouv-la até ao fim. Mas o que chegou a ouvir bastou para ter escrito que essa gravação ficará aa assinalar uma das mais "vergonhosas façanhas do Exército Português, ao oferecer a Samora Machel, na mesa das negociações, uma arma decisiva. As afirmações  produzidas no acto a rendição, designadamente as saudações à FRELIMO, como libertadora de Moçambique e do próprio povo português, constituíram prova irrefutável do índice de prostituição moral a que haviam chegado alguns militares portugueses.



CONTINUA























                                                                                            



















segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

LIVRO: O FIM DA LUTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL EM MOÇAMBIQUE. "OPERAÇÃO OMAR" 1 DE AGOSTO DE 1974 . LIVRO DE ATANÁSIO SALVADOR TUMUKE



INTRODUÇÃO
A presente obra teve como motivação o interesse de contribuir para melhor conhecimento dos factores e acções que nortearam o assalto ao Quartelt de Omar, a 1 de Agosto de 1974. Mais do que isso, pretendi, sem excluir os camaradas que comigo combateram neste assalto, exteriorizar  o facto de ter sido eu, o seu comandante, uma tarefa que me fora confiada pessoal e directamente por Samora Moisés Correia. Presidente da FRELIMO  e Chefe do Departamento  da Defesa.

Durante vários anos, foi desanimador para mim, ouvir ir relevância do assalto ao  Quartel de Omar e, mormente, a falta generalizada do conhecimento sobre a sua relação com o fim da Luta Armada de Libertação Nacional. O objectivo deste livro, longe de heroicizar-me , é  o partilhar , além da Operação Omar, a dinâmica da Luta Armada, através da revisita aos seus aspectos marcantes. 

Do ponto de vista de relevância, esta obra tem o mérito de se apoiar profundamente em documentação primária e inédita, o que  cria espaço para o seu questionamento, mesmo no seio de combatentes da "primeira linha". Este aspecto prende-se com o facto de ter acedido a muitos documentos teórico-estratégicos, até então, de domínio restrito. No entanto, como se poderá constatar, pautei pelo cruzamento das fontes, respeitando os depoimentos dos combatentes, mas impondo criteriosamente, a força de que se revestem as fontes escritas, como se recomenda na produção histórica.

O trabalho está dividido em duas partes que se complementam entre si. A primeira aborda, em linhas gerais, o nascimento, a infância e a minha juventude, o contexto geopolítico internacional e nacional em que vivi, a génese e desenvolvimento da FRELIMO. Sem prejuízo de outros assuntos, ainda nesta parte , aflora-se a questão da opressão colonial portuguesa, o MASSACRE DE MUEDA (1960) e a OPERAÇÃO NÓ GÓRDIO (1970). A minha adesão `FRELIMO e actuação em várias frentes e missões na LUTA ARMADA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL, se constituem noutra notas relevantes.

A segunda parte da Operação Omar, nomeadamente o seu contexto político, militar e diplomático. Conto na primeira pessoa, as vicissitudes desta operação que precipitou o fim da Luta Armada, culminando com a Independência Nacional.

Nesta parte espelha-se o vislumbrar da Independência Nacional, destacando o posicionamento do Movimento das Forças Armadas ((MFA) face ao golpe de Estado de 25 de Abril de 1974 em Portugal; as rebeliões da tropa colonial; a reacção do Exército Colonial perante  a Operação Omar; as negociações centrais e locais; enxertos da correspondência entre a FRELIMO e o  exército colonial; Acordos de Lusaka e o surgimento de partidos oportunistas; ameaças do reacender da guerra; acção do Movimento Livre de Moçambique; ameaças do Jorge Jardim.

Debruça-se ainda sobre a religião no decurso da Luta Armada e apresenta os principais desafios político-militares e valores fundamentais da FRELIMO. Pretende-se, com este último assunto, dissertar sobre as deserções e traições; fuga das populações das zonas de conflito armado e o capital político da FRELIMO. Contempla, ainda, considerações finais e referências bibliográficas.

Em termos de técnicas de recolha de dados, ia e Juventude
utilizei as fontes primária e secundárias, baseadas na análise de obras literárias especializadas, artigos em arquivo de órgãos públicos e, documentos relevantes, como relatórios e cartas em torno da Luta Armada de Libertação Nacional. Optei por entrevistas não-estruturadas, dirigidas pelo historiador Fernando Dava. Além de Moçambique, o trabalho de campo foi realizado no Tanganyia (Tanzania) e e em Portugal.

1. Nascimento, Infância e Juventude
1.1 Minhas origens
O meu nome é Atanásio Damião Mtumuke, nascido em 1950, no Povoado Kuna-Mtumbe, cujos habitantes são tratados por Vana-Mtumuke. O povoado pertencia ao Posto Administrador  de Muidumbe, Circunscrição dos Makondes, Distrito de Cabo Delgado (actualmente Província). Sou o segundo e último filho de Damião Mtumuke e Cristina Madidi.

O meu nome de família é Indala, que, em Shimakonde, significa fome. Foi-me atribuído por Analikupya, a minha avó paterna. Este nome tem que ver com o facto de o meu nascimento ter coincidido com uma época de muita fome na zona de Kunkukutuka, no actual Distrito de Meluco, cujos habitantes esfomeados, eram conhecidos no Planalto dos Makondes por Vankukutuku. Devido a este flagelo (fome) muitas pessoas se deslocavam em massa à Muindumbe, para fachina, recebendo alimentos, como mandioca seca, actividade conhecida depreciativamente por shibalugwa ou ganho ganho.
A crise era enorme, a ponte de ter levado à morte a alguns concidadãos que procuram transpor montanhas para chegarem a Nangololo. Nesta região, estas pessoas eram conhecidas por vaindala, ou seja, gente esfomeada.

Pertenço ao clã Vamilanje, que, de acordo com a tradição oral, tem raízes na etnia Makhwa. Um dos traços distintos das pessoas desta origem são as tatuagens verticais, conhecidas por 111, diferentemente das dos Makondes as centrais.

O nome Mtumuke está relacionado com o espírito de passividade. 
Etimologicamente, significa afaste-se dos conflitos, ou seja, sempre que estiveres diantede uma situação conflituosa, procure distanciar-se dela.

Com o tempo, o meu clã que viria a miscigenar-se com a etnia Makonde, passando a fazer parte desta. Os Makondes, à semelhança de outros grupos étnicos do País, ocupa regiões transfronteiriças, distribuindo-se entre Moçambique, Tanganika (Tanzânia) (regiões de Tanga e Zanzibar) e Quénia (região de Mombaça).

A concordar com as fontes orais e, à luz da literatura produzida, o termo Makonde é associado à falta de água no planalto do mesmo nome, significando, deste modo, povos que habitam terras desprovidas de água, mas férteis, Kumakonde. No entanto, as origens territoriais deste grupo étnico ainda dividem os estudiosos, sendo mais consensual a região dos Grandes Lagos, donde teria migrado para se fixar na foz do Rio Lugenda. Com o tempo, seguiu por esta bacia hidrográfica até se estabelecer na região planáltica, que, no período colonial, viria a ser baptizada com o seu nome - circunscrição dos Makondes.



Persistem algumas dificuldades na reconstituição da história desta etnia, axioma explicado pela sua organização político-administrativa, baseada em pequenas, mas bastante centralizadas estruturas do poder.
Adicionalmente, ainda constitui um exercício complexo, a obtenção de memórias colectivas à existência de antepassados comuns entre os clãs, detentores de extensos territórios. Durante  as entrevistas, em Março e Outubro de 2018, este aspecto continuou a manifestar-se, o que concorre para a manutenção deste axioma.

Com efeito, antes da ocupação colonial portuguesa do Planalto dos Makondes (A ocupação ocorreu em 1920, com a derrota da resistência local), conhecido actualmente por Planallto de Mueda, a sua estrutura política tradicional estava centralizada na figura dos Va-humu. A figura feminina era representada pelas Mwano, que exerciam o poder ao lado dos Va-humu. na qualidade de esposa sou outro tipo de parentesco.
Em 1920, com a chamada ocupação efectiva do Planalto, foram introduzidas algumas alterações na centralidade e denominações das instituições político-administrativas locais, com o intuito de as submeter à administração colonial e romper com a sua história política e cultural. A indicação para os cargos de chefia passou a ter como principal critério, a subserviência ao regime colonial e não o direito consuetudinário, baseado, sobretudo, na primazia de ocupação territorial, conquista, carisma e grau de parentesco. A título de exemplo, na diversidade de povoações existentes em Nangololo, então descentralizadas, tais como os Vanamtumuke, Vanankunda, Vanasimba, Vanamwoho e Vanachiebo, esta última foi colocada numa posição hierarquicamente inferior às restantes.

O chefe dos Vanachiebo, porque se mostrasse desobediente e resistente à presença colonial, foi substituído por Ntxingama. De um modo geral, este tipo de situações ocorreu em várias regiões do território nacional.Desta forma, rompeu-se com o passado e surgiu uma nova centralização político-administrativa no Planalto dos Makondes.
Na estrutura política tradicional passaram a vigorar os Vakulungwa (régulos), no lugar dos Vahumu, continuando à semelhança destes com as funções de chefes máximos da estrutura centralizada.

De forma descendente, nesta hierarquia, introduziu-se a expressão aportuguesada "capitães-mor" (makapitamolo) os quais chefiavam cada um deles, um grupo de povoações. A seguir a esta figura, passou a existir o Wajili (chefe da povoação). Resumidamente, a nova estrutura passou a ser composta pelos Nkulungwa, capitão-mor (Kapitamolo) e Wajili. É de se ressaltar que, tal como acontecia noutras regiões do País, onde fora operadas fortes mudanças, as comunidades locais, por resistência, inconformismo e inadaptação, mantiveram a nomenclatura tradicional.

Depois da Independência Nacional, a 25 de Junho de 1975, o Governo Moçambicano procedeu à reposição da ordem histórico-cultural das  comunidades, trazendo de volta os nomes geográficos anteriores ao estabelecimento do sistema colonial. Igualmente, foram introduzidos outros nomes, resultantes de dinâmicas políticas, sociais, económicas e culturais
 nacionais e internacionais, directa ou indirectamente associados a Moçambique. Foi assim que o nome Nangololo passou a definhar-se, apesar de não estar associado a fortes conotações coloniais. Este deriva de Ngalolo (galinha de mato), tendo sido atribuído, primeiro, ao território do clã Vanachiebo e, mais tarde extensivamente aos territórios de outros clãs locais, já mencionados.

Do ponto de vista administrativo, Nangololo foi substituído por Mwambula, um rio local. Actualmente, o nome Nangololo, não obstante ser ainda ser usado por muitas pessoas, na toponímia, está mais ligado à missão do mesmo nome. 
Minha infância e escolarização inicial
A minha infância foi passada como a de qualquer criança da época.
Dos amigos desse tempo, lembro-me de Pedro Seguro, Fidélis Vicente, Maurício Bento Chuluma, Atanásio, Bento Chumula, Bernardino Gregório Anaiva, cujo irmão mais velho foi meu padrinho de baptismo, Romão Gregório Anaiva (Shindakukodya, significa "este incidente, um dia pode acontecer contigo também) assim chamado por ter caído de motorizada de marca Vitória Avante,

De entre as nossas brincadeiras, são de destacar algumas práticas sócio-culturais que se exibiam no Grupo Cultural de Vanantumuke,liderado pelo meu pai, tais como as danças rumba, mkala e mapico, sendo esta última, a da minha eleição. Outras práticas comunitárias eram o jogo de mapudi, para a aprendizagem de pontaria, a caça, em que fui reconhecido como exímio caçador de passarinhos (vyuni, expressão em Shimakonde), ratos (dimende, expressão em Shimakonde) e gazelas (dimala, expressão em Shimakonde), com o recurso a armadilhas, flechas e fisgas. Afinal, estava a fazer a minha iniciação como artilheiro da Luta Armada de Libertação Nacional.
Na verdade, o conhecimento tradicional é algo que marca o indivíduo para toda a vida, influenciando-o na sua forma de ser e de estar, especialmente, no seu profissionalismo. Este postulado seria evidenciado em mim, aos 24 anos de idade, quando comandei a Operação Omar, a 1 de Agosto de 1974, como veremos mais adiante.

As práticas tradicionais acabaram por me induzirem a entrar, ainda que superficialmente, np debate sobre as qualidades que se atribuem aos Makondes. Em geral, os aspectos religiosos são responsáveis pelos seus pelo seu espírito de  coesão, enquanto os ideológicos figuram como fonte dos segredos identitários desta etnia, valores que se adquirem nos ritos de iniciação masculinos e femininos, designados por  Likumbi e Ingoma, respectivamente. À minha passagem por este ritual, mudei de nome, como manda a tradição. Com efeito em lugar de Indala, passei a usar Ntavala, que significa "papa formigas"em em alusão a animais de pequeno porte. A adopção deste nome relaciona-se com o facto de ter sido submetido aos ritos de iniciação ainda em idade inferior, comparativamente a outros adolescentes mais velhos, que recebem nomes de animais de grande porte.

A minha escolarização, como a de muitos concidadãos , foi negativamente afectada pelas exigência do regime colonial, ao condicionar o sistema de ensino-aprendizagem, com o propósito de atrasar a formação dos moçambicanos. Depois de se frequentar o catecismo, durante 1 ano, seguiu-se mais um ano de catequese. Assim, o ensino primário que era de 4 anos para os assimilados,para nós, tratados como indígenas (termo utilizado de forma pejorativo e não de naturalidade), concluía-se passados 7 anos . porque, a 3ª Classe era feita em dois anos, pois existia a 3ª Classe Rudimentar e a 3ª Classe Elementar.

Frequentei a 1ª Classe na Paróquia do Sagrado Coração de Jesus de Nangololo. Esta missão foi criada em Novembro de 1924, por padres monfortinos, nomeadamente, José Jeanné e A. Le Breton. Estes missionários fixaram-se primeiro em Miteda, tendo abandonado esta região em benefício de Nangololo, por melhores condições geológicos e maior densidade populacional. Importa referir que o meu professor da 1ª Classe foi Zacarias Vanomba, excelente educador, que viria a ser substituído por Jorge da Costa Vadengenao.
De entre os meus colegas , lembro-me dos já citados Atanásio Bento Chuluma e Maurício Bento Chuluma, amigos de infância. Acresce-se, Bernardino Gregório Anaiva, Lázaro Vintam Chambal, Estevão Pio Pedro, João Focas Maeino, Cornélio Focas Marino, Maria Pedro Mualaka, Julieta Pedro Vakondyevana, Pedro Seguro, entre outros. As pessoas cujos nomes não foram mencionados continuam, outrossim, a granjear a minha simpatia e admiração, devido à convivência sã, com elas estabelecidas.
Frequentei o catecismo em Nangololo, na aldeia de Kunachapi, tendo sido meu professor, o seminarista Elias Pedro Mwakala, enquanto Dinis Anapakala exercia funções de inspector da Paróquia, Após o catecismo, recebi o certificado de Catecumeno, o qual confirma o domínio desta matéria religiosa, carta branca  para o ingresso à catequese, Fui baptizado, a 12 de Outubro de 1954, na Paróquia do Sagrado Coração de Jesus em Nangololo. De entre os professores da catequese, recordo-me do Rafael Pedro Mwakala, Em relação aos missionários, retenho o nome do padre Jan Guilherme Meels, carinhosamente tratado pelas comunidades locais por padili Malesse wa missa luba. Este ficou famoso por ter introduzido uma missão especial, em que se tocava magoma (batuques)
Paróquia do Sagrado Coração de Jesus de Nangololo; Padre Jan Guilherme Meels

Devido à morte do meu pai, em Maio de 1960, passei a residir, juntamente com a minha mãe, na zona de Kunajajalo, missão de Imbuho, sua terra natalícia, onde continuei a frequentar as aulas, desta vez, na Missão de Santa Teresinha do Menino Jesus do Imbuho, criada em 1940. Nesta, estudei a 2ª e 4ª Classe, tendo sido meus condiscípulos, entre tantos, da minha faixa etária, Agostinho Henriques Lidimu, Zacarias Lourenço, Victor Lourenço, Zacarias Julião, Marcos Mwashimwamba, Maria Ema Anshunala, Valério Fernando Anapulula, Martins Nkamati, Zacarias Nkamati, Lucas Vintam, Oreste Lucas, João Marino Focas e TeresaSimão.

Os meus professores foram Alberto Joaquim Chipande, na 2ª Classe; Raimundo Domingos Lourenço Pachinuapa, na 3ª Classe Rudimentar; Simão Carlos Virgilio Minga, na 3ª Classe Elementar e Atanásio Chitama, na 4ª Classe. Estes docentes viriam a ser meus camaradas -chefes, como combatentes da Luta Armada de Libertação Nacional. Recordo-me, ainda, do Cornélio João Mandanda e João Namimba, como mobilizadores políticos ; Maria João Muntope (mais tarde esposa de  Alberto Joaquim Chipande) professora de catequese e Marina Manguedye, auxiliar das irmãs Salesianas.

Saliente-se que a morte prematura do meu pai deixou-me numa situação de desconforto, o que me obrigou a procurar recursos para a sobrevivência. Foi assim que durante os 4 anos da minha escolarização em Inbuho, passava as férias nesta missão, a consertar livros rasgados pelos meus condiscípulos. Em contrapartida , recebia 2 calções de ganga e 2 camisas brancas, como uniforme escolar. Além disso , dedicava uma parte do meu tempo a colher mandioca em machambas abandonadas (maundo), que fazia secar para vender na loja do Santos, conhecido na aldeia Namaua por Sando. Das vendas, conseguia obter normalmente 50 escudos.

Novo edifício da Missão de Santa Teresinha do Menino Jesus de Imbuho,
O anterior, que funcionou até ao início da Luta Armada destruída

O meu sonho de infância era  o de ser padre, porém, este desiderato não se concretizou, porque vi-me na contingência de muito cedo contribuir para o sustento da minha família, já desprovida do seu chefe, como referi. Destarte, procurei seguir o professorado, a segunda opção profissional que se oferecia aos jovens do Planalto dos Makondes, em particular e, de Cabo Delgado, em geral. O curso de  professor era leccionado na Missão de Santa Isabel de Chiúri Novo - Escola Normal de Formação de Professores Indígenas. Tomada a decisão de ingresso nesta missão e, chegado o diada viagem, o amor de mãe falou mais alto. A Dona Cristina não aceitou separar-se de mim, seu filhinho, tendo ficado com a minha mala, exactamente na hora do embarque no camião que nos levaria para a missão. Sem esta bagagem, o padre João Brunet, responsável pela nossa viagem, respeitando e conformando-se com o desejo da minha mãe, deixou-me em terra, tendo dito que "a tua mãe  não quer que viajes, então vais ter que ficar!...".

Vendo o meu sonho profissional a desmoronar-se, fiquei muito triste.
Depois da situação inesperada, tomei a decisão de me dirigir à cantina do Cornélio João Mandanda, onde gastei uma pequena parte dos 50 escudos que levava para a viagem, adquiridos na venda da mandioca seca.
No entanto, tratava-se de um "mal que viria por bem" Alguns alunos do grupo que embarcou naquela viagem, tais como, Victor Lourenço e Fernando Anapulula, seriam sepois obrigados a ingressar no Exército Colonial, face às suas enormes necessidades em mancebos. Note-se que este problema colocou-se a este exército,  não só em Moçambique, como noutras colónias que estavam em guerra, nomeadamente, Angola e Guiné - Bissau

A explicação de fundo, em relação ao assunto em epígrafe, prende-se com o facto de o regime colonial não se ter preparado para enfrentar a guerra de guerrilha,pois orientava-se pelos princípios da Organização do Tratado do Atlântico Mor (OTAN), que na altura anteviam somnte conflitos nucleares. Foi com eclosão do conflito em Angola, a 4 de Fevereiro de 1961, que Portugal encetou medidas militares organizativas, tanto em  teorias estratégicas, como no recrutamento e treinamento de mancebos, apostando nos jovens dos territórios ultramarinos. Este assunto será retomado, quando se abordar a questão do início da luta armada em Moçambique..

2. Contexto geo-político internacional e nacional na minha juventude

2.1 Situação política a nível internacional


A minha juventude foi passada em Imbuho, nos meados de 1960. Nesse período, enquanto me divertia com os meus amigos, como Agostinho Henriques Lidimu, Cristóvão Muidingui, Estevão Dimaka,  Pascoal Dimaka e Josefat Dimaka, no  mundo, vivia-se uma situação política conturbada, caracterizada pela Guerra Fria e pela génese e desenvolvimento de movimentos independentistas. Naquele momento  não senti os efeitos destes fenómenos, por duas razões principais: uma, ditada pela tenra idade e outra, pela fraca exposição aos meios de comunicação social. No entanto, os acontecimentos desse período, associados à independência do Tanganika, em 1961, viriam a marcar a minha personalidade, especialmente a que ainda me caracteriza, de patriota
Por conseguinte, quando Mwalimu (significa Professor, em Kiswahili) Julius Kambaraje Nyerere se tornou Presidente do Tanganika (Tanzânia), muitos jovens do Planalto dos Makondes ficaram comovidos ao ver um negro dirigir o seu próprio país. Eu era um adolescente de 11 anos, por isso entendia este assunto de longe, mas quem o percebia melhor eram os mais velhos, de quem ouviamos alguns comentários. Porém, passámos a entende-lo com a vinda ao Planalto de Cornélio João Mandada e João Namimba, entre outros emissários da FRELIMO, para a sensibilização e recrutamento de jovens para a guerrilha.

Julius Kambaraje Nyerere

O surgimento da guerra- fria, depois da IIGuerra Mundial (1939-1945), conflito conhecido por "Guerra Quente), foi anunciado pelo Primeiro Ministro britânico, Winston Leonard Spencer-Churchill, com uma manifestação de desacordo entre as potências vencedoras do conflito Mundial. A 5 de Março de 1946, W. Churchill proferiu o seguinte discurso:

De Estetino, até Trieste, no mar Adriático, uma cortina de ferro desceu sobre o continente.              Atrás dessa linha estão todas capitais dos antigos Estados da Europa Central e Oriental.                Varsóvia, Berlim, Praga, Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sófia; todas essas cidades          famosas e as pessoas em torno delas estão no que devo chamar de espaço soviético, e todas              estão sujeitas de uma forma ou de outra, não somente à influência soviética mas também a          fortes, e em certos casos crescentes, medidas de controle emitidas por Moscovo.

Esta guerra surgia como um acontecimento nefasto, cujas consequências far-se-iam sentir em vários países. De facto, a seguir a este anúncio, assistiu-se à divisão do mundo em dois grandes blocos ideológicos antagónicos. o Ocidental (Capitalista) e o Oriental (Socialista). Esta situação levou ao surgimento de uma série de instituições, organizações militares e movimentos independentistas, a gravitarem política militar e economicamente, em torno de um dos blocos.

A minha motivação para partilhar os acontecimentos da Guerra Fria, prende-se com a premência de se perceber melhor a natureza dos alinhamentos e não-alinhamentos que aconteceram com os movimentos de libertação nacional, em geral, e com a FRELIMO, em particular. Neste âmbito, durante a Luta Armada e mesmo actualmente , é comum ouvir-se, entre od Combatentes da Luta Armada de Libertação Nacional, que um camarada treinou na Argélia, na China, na  União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS, actualmente Federação Russa), no Egipto, em Israel, por aí em diante. Ainda que não fosse importante, na altura, dominar estes assuntos políticos, presentemente, com o tempo de reflexão e  de produção de memórias, parece-me importante partilhara casualidade e relevância destes fenómenos da nossa luta epopéica.
Comecei a viver os efeitos da Guerra Fria nos anos 60, na minha juventude, especialmente quando ingressei no Instituto Moçambicano. em Dar-es-Salaam, e, na formação militar, no Centro de Instrução de Bagamoyo,  (de entre os meus instrutores, figuram Luís Muchanga e Arranca Tudo), bem como nos frequentes debates políticos entre os guerrilheiros.

Centro de Instrução de Bagamoyo
Com efeito, como se disse, havia por um lado, a URSS e seus aliados e, por outro lado, o Ocidente 
(países europeus liderados pelos Estados Unidos da América), ambos a manietarem a  formação de alianças político-militares ao nível de todo o mundo. Na sequência desta situação a 4 de Abril de 1949 surgiu a OTAN, do lado Ocidental, e a 14 de Maio de 1955.o Pacto de Varsóvia, do lado  Oriental. É  de sublinhar que as referências históricas do fim da Guerra Fria são a queda do Muro de Berlim, em 1989 e o desmoronamento da URSS, seguidamente, a 26 de Dezembro de 1991, através da Declaração nº 142- H do Soviete Supremo da União Soviética.

Outro acontecimento importante que vem dos finais da II Grande Guerra foi a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), a 24 de Outubro de 1945 e a consequente extinção da Sociedade das  Nações ditariam o pulsar das geo-estratégias político-militares internacionais e influenciaram, em larga medida, a génese e a actuação da FRELIMO, como movimento libertador No que diz respeito aos representantes de cada bloco, importa enfatizar as suas diferençaras ideológicas, que radicavam no facto de os Estados Unidos da América (EUA) se posicionarem como capitalistas, aspecto condenado radicalmente pelos fundamentos do marxismo-leninismo, doutrina defendida pela URSS. Explicitamente, as duas potências defendiam os direitos humanos e a autodeterminação dos povos, uma luta em que se digladiavam em embandeirar-se.

No mesmo período que estes blocos se configuravam, novos acontecimentos surgiam. A Índia, que se tornou independente a 15 de Agosto de 1947, mercê do sucesso da luta não violenta contra os britânicos, liderada por Mohandas Karamchand Gandhi, mais conhecido por Mahatma Gandhi. estimularia os movimentos independentistas, particularmente em África. Dois anos depois, na China, o regime do Partido Nacionalista liderado por Chiang Kai-Shek, era derrotado, a 1 de Outubro de 1949, pela Revolução encabeçada por Mao Tse-Tung. Assim, à semelhança da Índia, a China tornava-se num país anticolonial, passando a apoiar os movimentos de libertação

Mohandas Karamchand Gandhi

De 18 a 24 de Abril de 1955, realizou-se a conferência de Bandung, na Indonésia , um encontro que reuniu representantes de de 29 países asiáticos e africanos, cujo principal resultado foi a definição da política de não-alinhados, um posicionamento nem a favor, nem contra os dois blocos beligerantes da Guerra Fria. Tratava-se de uma experiência que viria a inspirar a política diplomática da FRELIMO, iniciada por Eduardo Chivambo Mondlane e continuada por Samora Moisés Machel. A propósito , na comunicação à imprensa, feita a 26 de Junho de 1964, a FRELIMO posicionou-se claramente, nos seguintes termos: " A Frente de Libertação de Moçambique adere ao espírito de Pan- Africanismo e da neutralidade da Guerra Fria".

Convém referir que as vantagens trazidas pela criação da ONU, sobre a Sociedade das Nações, residem no facto de a nova organização ter aberto espaço para a participação de novos actores, surgidos com a Conferência de Bandung, dando "a  voz dos que não tinham voz" parafraseando Adriano Moreira, diplomata português. Esta abertura ao nível da ONU explica o robustecimento dos movimentos de contestação ao colonialismo.

Consequentemente, interpretando muito bem os "ventos de mudança", a Inglaterra e a França procuraram dar fim à era do Eurocentrismo, libertando do jugo colonial alguns territórios "seus". São exemplos disso as independências concedidas, por parte dos franceses , ao Senegal e Madagáscar, em 1960; e dos ingleses, ao Tanganyika, em 1961; Quénia em 1963, Malawi e Zâmbia em 1964


Contrariamente, Portugal pautou pelo endurecimento de medidas políticas, ao quue se socorreu de subterfúgios político-jurídicos e religiosos. Politicamente, as décadas de 1950 e 1960 foram marcadas por várias incongruências por parte da corôa portuguesa, no seu relacionamento com as colónias. Por um lado, Portugal procurava justificar-se junto das Nações Unidas, como uma"Nação Portuguesa Vasta, mas Una, do Minho ao Timor" ; por outro, desenvolvia atitudes discriminatórias, recorrendo a  aspectos como a origem ou não na metrópole e, à raça, no acesso à educação, saúde, emprego e participação política, entre outros domínios da vida quotidiana.

Com o objectivo de justificar a referida vastidão e  unicidade da sua "Nação", Portugal lançou um repto contra a Carta da Organização das Nações Unidas, de 1945, e a Declaração Universal dos Direitos dos Homens (DUDH), datada de 1948, entre outros instrumentos que exigiam a concessão da autodeterminação  e independência aos povos que estavam sob jugo colonial. Dessarte,em 1951, revogou o Acto Colonial, que vinha vigorando desde 1930. Com esta medida, desaparecia a expressão "Colonial Português" e ressurgiam as "Províncias Ultramarinas". E, numa tentativa vã de ludibriar a opinião pública internacional , dizia que "não tinha nenhum território a descolonizar. Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo Verde já não eram colónias. (...) O Ministro da Colónias  já se chamava Ministro do Ultramar.

Decorrente desta situação, Portugal enfrentou uma série de instituições e dispositivos internacionais, que condenavam asua indisposição de conceder independência ás colónias, tais como as resoluções 1514 e 1807, da Assembleia Geral das Nações Unidas, ambas de 4 de Dezembro de 1960 e 1962, respectivamente. A nível continental, é de destacar o desacato da imposição da Organização da Unidade Africana de 1963, sobre a descolonização dos países africanos.
Além do uso deste tipo de manobras para perpetuar a colonização do nosso povo, Portugal socorreu-se fortemente da religião. A concordar  com Teresa Cruz e Silva, nos "territórios colonizados por Portugal falar de religião equivale muitas vezes a falar da Igreja Católica.

Diante do acima exposto, impele a seguinte questão: que fundamentos justificam a aliança  entre o Estado Português e esta Igreja? A resposta reside, em larga medida, no interesse de ambos pelo colonialismo, sobretudo na sua versão expansionista. Assim, enquanto o Estado se interessava pelo colonialismo para a pilhagem dos recursos materiais das colónias, a Igreja, perseguindo a "missão civilizadora" , recorria às mesmas colónias, em busca dos mais fieis para o alargamento do seu "império religioso". Em última estância, era na colónia onde a Igreja  obtinha também dividendos materiais, não pela vinda pilhagem, mas sim da fé, ao transformá-la em bufarinha. Estas são as razões de fundo que explicam que o Papado Romano tenha abençoado a "descoberta das colónias"
e, mais tarde, se associado a todas e qualquer tentativas de se acabar com o colonialismo.

Convém referir que as atitudes da Igreja Católica não devem ser vistas de forma unilateral,omo se se constituíssem, estruturalmente, numa aliança com o colonialismo português. Distinguem-se assim, duas facetas, uma, em que colaborou na agenda colonial e outra,em que se distanciou  deste sistema de subjugação dos povos e privação da sua liberdade.

A aliança da Igreja Católica com o Estado Português, data da Idade Média, quando ambos integraram as Ordens Militares no âmbito das Cruzadas, visando entre outros aspectos, a reconquista da "Terra Santa", ao que se associava, no contexto Europeu, a perseguição de interesses económicos. . Ademais, as época subsequentes são repletas de exemplos de forte colaboração, mormente, o período do expansionismo mercantil. Um dos exemplos marcantes deste estádio, por sinal, bastante documentado, é o que se refere a um missionário a comandar um enorme contingente militar para pacificar, ou melhor, conquistar o nosso Pais e parte do actual Zimbawe. Sobre este assunto, José Luís Cabaço traz o seguinte depoimento:

A 3 de Fevereiro de 1630 o dominicano Frei Luís do Espírito conta como comandou 15.000 a Luange, depois para Massapa e Zimbawe onde construiu a igreja Virgem do Rosário, e conspirou a favor da entronização do seu aliado Filipe Maavura contra o herdeiro legítimo Capramizine hostil à tutela portuguesa.

Os dividendos materiais obtidos pele Igreja são reportados com muita tristeza por António Enes, que foi Comissário Régio em Moçambique entre 1891 e 1894. Num outro desenvolvimento JoséLuís Cabaço realça:
 
Vergonhas têm sido, por exemplo, (...) as paródiasde culto e de instrução pública, exibidas em Moçambique perante estrangeiros como amostra dos meios de acção civilizadora do domínio português e aos olhos dos indígenas como representações de superioridade moral e intelectual da  raça branca (...) Desses pouco eclesiásticos alguns seriam exemplares, mas deram-me na vista um preto, que em cada noite era levado pela polícia das ruasda capital em estado comatoso de embriagues, um Europeu crapuloso, bufarinheiro de sacramentos, que encontrei em visita à Freguesia baptizando crianças pelas palhotas a 1.000 reis o copo de água ...

As relações entre Portugal e a Igreja Católica atravessaram  épocas baixas, especialmente durante o reinado de  D. José I (1750-1777), em que o seu secretário , Sebastião José de Carvalho e Melo (Marquês de Pombal), expulsou os Jesuítas, a 12 de Janeiro de 1759, através de um decreto vigoroso, com o seguinte conteúdo:

Declaro os sobreditos regulares (Jesuítas) (...) rebeldes, traidores, adversários e agressores que estão contra a minha real pessoa e Estados contra a paz pública dos meus reinos e domínios e contra o bem comum dos meus fieis vassalos (...) mandando que efectivamente sejam expulsos de todos os meu reinos e domínios.

No entanto, este conflito viria a ser amainado com a assinatura da Concordata, a 17 de Maio de 1940. Apesar disso, o Estado Português outorgou para si uma série de poderes, procurando monitorizar a actividade da Igreja Católica. Dentre tantas, deveriam passar pela apreciação ou aprovação governamental, matérias consideradas estratégicas, como a nomeação de Bispos, o acesso a subsídios pelos eclesiásticos e missões, bem como a submissão dos missionários estrangeiros  ao regime colonial.

2.2. Situação política a nível nacional

2.2.1. Ventos nacionalistas na Circunscrição dos Makondes

Depois da invasão portuguesa ao Planalto dos Makondes, esta região foi transformada em território agrícola para produtos de exportação. tais como sisal e o algodão, tendo sido integrada,parcialmente, na Companhia do Niassa. Assim, a população passou a servir à industria têxtil em detrimento da agricultura familiar, em que entre os principais produtos figuravam, milho, mandioca, amendoim, gergelim e mapira. Os produtos acima eram a base de troca nas lojas locais, espalhadas por Cabo Delgado. bem como em algumas regiões transfronteiriças com o Tanganyka. Com os recursos pecuniários obtidos, especialmente aquele país, a população adquiria bicicleta e armas (mais conhecidas  por espera pouco) e outros produtos industrializados, nomeadamente tecidos, açúcar, sal, etc....e ainda, fazia o pagamento de impostos.

A propósito de impostos ,refira-se que a implantação do sistema político-administrativo colonial no Planalto dos Makondesfoi bastante duro para as populações locais. O trabalho nas machambas de algodão, sisal e milho era pouco remunerado, o que exigia muito esforço na colecta do valor para pagamento do imposto, fixado na década de 1950, em Sessenta os (60$00), por adulto.  O Quilo do milho era vendido a Vinte Centavos ($20).  Este aspecto mostra que as populações tinham que de apresentar às lojas 300 quilos  para atingirem o montante acima exigido para o imposto. Assim, percorriam longas distâncias, cerca de 40 Kms transportando pesadas quantidades de milho. Outro exemplo era da venda de cabritos, avaliados em cento e vinte escudos (125$00),mas que aos criadores pagavam somente Dois Escudos e Cinquenta Centavos (2$50). O mesmo tipo de especulação acontecia na venda de galinhas e ovos.

As pessoas que por alguma razão não conseguissem pagar o imposto eram submetidas a várias sevícias; torturas nas cadeias, trabalho forçado, extorsões de bens alimentares, como galinhas e outros bens, atitude praticada pelos sipaios, régulos, entre os demais agentes do regime. A respeito das sevícias, de forma melancólica, a quase centenária Cristina Madidi, minha mãe, afirmou o seguinte:

No período colonial, tivemos uma vida dera e humilhante. Não éramos  considerados pessoas, mas sim macacos. Tínhamos de vender milho e amendoim para conseguirmos dinheiro para o pagamento de impostos. Ainda retenho na memória imagens de pessoas perfiladas, homens e mulheres amarrados, levados para a cadeia de Mueda, alegadamente por terem-se furtado ao  pagamento do imposto. De modo a nos identificarmos como não refractários, produzíamos colares, em que amarrávamos um pedaço de bambu, contendo a senha que confirmava o pagamento de imposto e circulávamos ruas com isso. Era assim que prcedíamos, para evitar os 
incómodos dos sipaios. Aliás, o mesmo acontecia com o sti sha masikeli. (Imposto de bicicleta), em que se pendurava o comprovativo no garfo dianteiro do quadro da bicicleta.

A entrevista a Cristina Madidi foi feita em Mueda a 10 de Março de 2018


António André Chukumene, meu primo, contribuindo na busca de memórias. referiu que os refractários eram encaminhados para o trabalho forçado, em MPanga, Mocímboa da Praia, na abertura de estradas e  plantação de sisal, por um período de 6 messes. Acrescentou que mais tarde as mulheres deixaram de pagar imposto, tendo asseverado que, em caso de fuga dos incumpridores, os seus parentes, especialmente maridos, esposas e filhos, eram encaminhados para a cadeia. Tratava-se, na verdade, de uma forma de pressionar os fugitivos a apresentarem-se novamente às autoridades administrativas.

Entrevista a António Chukumene realizada em Nangololo, Muidumbe, a 13 de Março de 2018

António André Chikumene

Musssa Chilangade Pilimita, ancião que em 1968 recebeu o Presidente Eduardo Mondlane, aquando da sua visita às Zonas Libertadas, especificamente aos povoado de Chlindi, afiançou que o cultivo do algodão servia para a aquisição de dinheiro destinado ao pagamento do imposto. A mesma fonte acrescentou, ainda, que havia casos de refractários submetidos ao cultivo forçado deste produto na Sociedade Algodoeira do Sagal.

Entrevista a Pilimita realizada em Chilindi, a 9 de Março de 2018

Referindo-se às humilhações apontadas por Cristina Madidi, o velho Pilimita frisou que  as autoridades coloniais, na sua política de"dividir para reinar", chegaram ao extremo de desencorajar casamentos entre indivíduos de povoados diferentes, tais como Mueda, Muidumbe, Nangade e NGapa (Mocímboa do Rovuma).

Com esta medida, pretendia-se controlar a expansão do movimento contestatário, cujo ideário ganhava contornos crescentes ao nível do  Planalto dos Makondes. Adicionalmente, os cidadãos eram obrigados a trabalhar de graça, na abertura de estradas e, sempre que reclamassem, eram barbaramente castigados, alegadamente castigados, alegadamente por desobediência ao sistema colonial. 

2.2.2. Principais reacções à exploração colonial

O movimento nacionalista do Planalto dos Makondes acabou por representar um marco histórico indelével na reacção ao sistema colonial em Moçambique. Como se referiu, depois da ocupação colonial portuguesa do Planalto, estabeleceu-se uma economia de plantações. A forte agressividade do regime colonial levou a que muitas pessoas abandonassem a região e atravessassem o rio Rovuma, para o Tangantika, fugindo do trabalho forçado, pagamento de pesados impostos e políticas discriminatórias, entre outras arbitrariedades. Por sinal estes, são os factores políticos e sociais, entre outros, que conduziram a massacre de Mueda. a 16 de Junho de 1960.

A par das questões acima elencadas, havia outro tipo de causas que obrigavam as populações a se deslocarem para Tanganyika, destacando-se a criminalidade. Com efeito, algumas pessoas saíam do Planalto fugindo da perseguição das autoridades administrativas coloniais, devido à prática de roubos, furtos, homicídios e rapto de esposas dos seus concidadãos. Convém realçar que estes aspectos consubstanciam os argumentos dos dirigentes da FRELIMO na análise das causas do desvio da conduta moral e deontológica, no seio dos guerrilheiros, como veremos adiante.

No que diz respeito à génese e desenvolvimento nacionalista do Planalto dos Makondes, são de salientar três grandes dimensões. A primeira, situa-se a nível associativo, a segunda, familiar e das lideranças políticas locais e, a última, na Diáspora. O associativismo político foi trazido pela Ligwilanilo, uma associação  fundada nos finais dos anos 50, liderada por Mzee (significa velho. em Kadministrativacolonial. Diferentementeiswahili) Lázaro Jacob Nkavandame. Nela militaram, entre ouros, alguns cidadãos que se revelaram excelentes comandantes e dirigentes, tornando-se assim, figuras incontornáveis da história da Luta Armada de Libertação Nacional. São os casos de Alberto Chipande e Raimundo Pachinuapa.

A Ligwilanilo funcionava como uma associação de cultivo de algodão, mas, na essência, tinha um carácter  nacionalista, pois dedicava-se, pois dedicava-se à mobilização de cidadãos para se rebelarem contra a ordem política e administrativa colonial. Diferentemente dos grandes centros urbanos, onde se podiam formar associações e actuar politicamente de forma discreta, a sua criação nos moldes agrícolas perseguia outros modelos de luta clandestina. Este modelo tinha sido aconselhado a Nkavandame por Julius Nyerere, Presidente do Tanganyka, considerando a grande dispersão da população rural  e as consequentes dificuldades de militância política, face à vigilância política das autoridades coloniais. Não obstante as cautelas observadas, a  Polícia Internacional e de Defesa do Estado, (PIDE/DGS) descobriu a verdadeira actividade e objectivos desta associação, tendo retirado o seu líder (Nkavandame) de Mueda para Mariri, visando o seu desmantelamento.

Com vista a colmatar essa situação e perseguindo os mesmos objectivos, os membros passaram a compor-se em pequenas em pequenas associações agrícolas, congregando 25 membros cada, em que, mais uma vez, Alberto Chipande e Raimundo Pachinuapa militaram. Vale a pena referir que 25 era o número máximo admitido pelas autoridades  coloniais. julgando que fosse suficiente para conseguir manter o controlo das actividades subversivas no Planalto de Mueda. Ultimamente, a memória popular a respeito do "Vinte e Cinco" remete mais à exploração agrícola das baixas de Mueda e, cada vez menos, ao carácter nacionalista por detrás da criação destas machambas. Propositadamente, 25 corresponde a importantes datas nacionais, "25 de Junho" e "25 de Setembro"!..

No Planalto dos Makondes assistiu-se a outras formas de luta clandestina, algumas com a participação de heróis nacionais, como Tomás Nduda e Romão Fernandes Farinha. Nduda, um exímio comissário político, operou na região de Nampanha, actual Distrito de Muidumbe, onde se infiltrou nos grupos coloniais de patrulhamento nocturno, alegadamente para efeitos de segurança. Na verdade, pretendia passar mensagens nacionalistas no seio da população. Por sua vez Farinha, actuou como professor na Missão de Nangololo, tendo proferido intervenções  emocionantes, visando chamar a atenção dos alunos para o seu engajamento nos estudos. Na essência, fazia a mobilização destes para as causas nacionalistas.

O exemplo da luta clandestina mais badalado é o  de formação de núcleos, com o objectivo de propagar as ideias da FRELIMO, e recrutar jovens para ingressarem nas suas fileiras. Este processo ocorreu em várias regiões do País, tendo havido porém, diferença entre as zonas urbanas e rurais. enquanto nas primeiras, os núcleos eram numericamente restrito (mínimo de 3 e máximo de 6); nas segundas, o número podia ser maior (25). No entanto, outros exemplos podem ser considerados, como o do Niassa, onde o número podia ser ligeiramente superior a 6 membros.

Ainda no caso das zonas urbanas, como da cidade de Lourenço Marques (actual Maputo), entre os 6 membros que acompanham um único  núcleo, somente 3 deles é que se conheciam, por razões de segurança . Importa referir que, tanto em Lourenço Marques, Beira,Nampula, Quelimane, como noutras cidades e vilas, alguns combatentes da luta clandestina entrincheiraram-se nas organizações artístico-culturais e realizaram um trabalho brilhante. Constituem exemplos, no domínio na literatura, José Craveirinha, Marcelino dos Santos e Noémia de Sousa; nas artes plásticas Reinata Sadimba, Malagatana Valente Nguenha, entre outros.

Existiram outros modelos de luta na clandestinidade, como o de pescadores. Com efeito, referindo-se ao domínio da pescaria o Coronel na Reserva, Eusébio Raposo, meu companheiro de trincheira durante longos anos de luta, partilhou a sua experiência, salientando o seguinte:

Ingressei na FRELIMO em 1968. Tal se deveu a um pescador de Macuse (Zambézia), onde nasci e cresci, de nome Capece Kumba, que levava os jovens para o mar e sob  pretexto da pescaria, os mobilizava para irem para a FRELIMO. Isso aconteceu comigo. Depois de anuir ao convite, foi ele quem me conduziu de Quelimane até Nsange no Malawi, onde me inscrevi na Representação da FRELIMO. Na altura. o representan era Binifácio Gruveta, coadjuvado por Ambrósio Labuquene. (Entrevista em Pemba a 13 de Março de 2018

Ao nível familiar  e das lideranças políticas tradicionais, assistiu-se a fortes campanhas de sensibilização As pessoas acediam às mensagens radiofónicas de várias fontes, entre elas, A Voz da Revolução emitida pela FRELIMO e, replicavam-nas no seio das suas famílias, amigos e vizinhos.(Entrevista em Pemba a 13 de Março de 2018

Também merece destaque o papel da RÁDIO Moscovo, escutada em Moçambique, A qual "denunciava o fascismo, denunciava a opressão colonial, denunciava a opressão colonial,denunciava a discriminação racial, desfazia a teoria da missão civilizadora de Portugal e informava o que se passava nas Nações Unidas, sobre estas matérias.

A respeito do envolvimento das famílias, gostaria de partilhr depoimentos de dois camaradas da Luta Armada de Libertação Nacional.

Mugalla, frisou que:

Na sequência do ataque à Missão de Nangololo, em 1964, que resultou no assassinato do padre Daniel, refugiei-me juntamente com a minha família, na região de Xivone, Foi aqui onde um charman, ao serviço da FRELIMO, recrutou a mim e ao meu irmão para servirmos a comunidade local. Enquanto eu leccionava, o meu irmãoprestava cuidadosde saúde. Passadopouco tempo, eu seria encaminhado para Bagamoyo e depois para Nachingwea, a fim de receber preparação política-militar, ingressando, deste modo nas fileira da Luta Armada

Mugalla natural de Muatide, distrito de Muidumbe

Por sua vez, Simão, referiu o seguinte:

Depois  de concluir a 4ª Classe, em 1964, fui colocado na Nova Missão de Xitolo, como professor, onde igualmente residia. Só que um dia, de visita à casa dos meus pais, em gozo de férias disciplinares, Simão Mabanda, meu pai, chamou-me secretamente para um canto da casa e exibiu-me um cartão. Ao perguntar-lhe do quese tratava, disse-me que era um cartão, e que a partir daquele momento eu deveria saber que era membro da MANU. Entendi rapidamente a mensagem, aliás, era professor! Na zona de Irimba, hoje Aldeia Pangero, andava um Charan, mais conhecido State Slaus, a vender cartões da MANU.  o que concorreu para a minha rápida compreensão do recado transmitido pelo meu pai. Eis que em 1964 arrebenta a guerra, os padres  abandonam a missão e nós fugimos para o mato. De volta à minha povoação não encontrei a família, porque também tinham abandonado a região. No dia 14 de Abril de 1965, apareceu-me um recrutador, conhecido por  Kalatasse, que me mobilizou e conduziu-me ao Comando de Destacamento de Tete, situado a 10 Kms do Posto Administrativo de Diaca, onde recebo o primeiro treinamento. Aproveitando-se das  minhas qualidades de professor, fui indicado secretário de Destacamento do Destacamento. Foi assim que ingressei na FRELIMO

Simão nascido em Diaca, distrito de Mocímboa da Praia

Quanto à Diáspora, importa sublinhar que depois de atravessarem o rio Rovuma, muitos concidadãos encontravam nos países vizinhos, como a Tanzânia e o Quénia, liberdades de associação, melhores condições de trabalho e de formação, o que provocou o êxodo de alguns moçambicanos. No que concerne a este assunto Dias e  Guerreiro citados por Cavaco afirmam:

Vários outros negros me disseram que lhes agrada mais a maneira de ser dos ingleses, do que a nossa. Dizem que os ingleses ouvem as razões dos pretos, pesam as queixas e levam a tempo a tomar uma decisão. Os portugueses, não; zangam-se logo, berram muito e dão muita porrada.

José Luís Cabaço nascido em Lourenço Marques. Foi Ministro de Transportes e Comunicações e posteriormente Ministro da Informação nos Governos de Samora Machel

José Luís Cabaço
Os factores abonatórios encontrados nos países vizinhos estimularam e cimentaram o espírito nacionalista em alguns trabalhadores sazonais e refugiados, formando associações. Algumas transformaram-se em movimentos políticos, tais como o Tanganyika- Mozambique Makonde Union e o "Zanzibar Mozambique Makonde and Makua Union", criados em 1958. Surgiu, igualmente, uma associação designada Sociedade Africana de Moçambique (SAM).
Esta última merece atenção especial nesta abordagem, dadas as características peculiares que se revestia. Com efeito, diferentemente das outra organizações, a SAM, conforme as revelações do seu líder e co-fundador, Simon Ntshusha, tinha uma visão política multiétnica e de dimensão nacional, contrariamemente à MANU que chegou a ser considerada não  representativa por alguns dos seu membros e simpatizantes.
Assim, foi criada a SAM, visando superar este défice de multi-etnicidade e, sobretudo, de representatividade nacional, Referindo-se a este assunto Cabaço sustenta que os aspectos que os movimentos nacionalistas da época comungavam, eram a oposição ao colonialismo e a necessidade da independência, porém pecavam por ser dominados por uma visão política focalizado somente para os seus territórios, assentes na sua cultura e na sua história.

Tomando como exemplo os estatutos da MANU, Cabaço refereainda que um dos seus objectivos é "promover um ambiente de laços fraternais e amigáveis entre os dócios e fomentar este espírito entre todos os membros da nossa tribo", Sérgio Vieira acrescenta que em "1960, em Mueda não se requereu a independência de Moçambique , mas dos Makondes,

No entanto, é chegado o momento de reanálise desta visão, se tivermos em consideração o protagonismo de Ntshusha, um cidadão Makonde. Com efeito, este "nacionalista anónimo", sem se desvincular da MANU , apresentou-se às autoridades coloniais, em Mueda, já despido desta visão baseada somente na sua etnia, liderando a missão queficou conhecida pelo Grupo dos 7, enviada para as negociações da Independência Nacional. Em torno deste assunto, Alberto Chipande refere que este grupo chegou a Mueda no dia 27 de Abril de 1960.Além do seu líder, Ntsusha, de 37anos na altura, integrava  Mariano Ndiwongo, Modesta Neva Cosme Paulo, Lácima Ndalama e Luísa Saba.

Por seu turno, Ana Mussanhane destaca que "depois do regresso de Faustino Vanomba para o Tanganyika, chegou o grupo dos 7 do Simão Nttxussa, mais conhecido por Simone, que incluía uma senhora, a Modesta Neva, com a missão de falar com os portugueses tendo sido presos e levados para  Lourenço Marques.

Uma vez em Mueda, as conversações durante dois dias e terminaram com a detenção de Simon Ntshusha. Este líder foi enviado para Porto Amélia (Pemba) e depois transferido para a Ilha da Xefina, na cidade de Lourenço Marques. Posteriormente, foi encarcerado na Cadeia da Machava, onde viria ser solto em 1974.
Nas negociações que Simon Ntshusha teve com o administrador de MUEDA, em Abril de 1960, destacam-se claramente as suas admiráveis qualidades de patriota, de homem corajoso e dotado de visão sobre o futuro de Moçambique. Por outras palavras, comparado a muitos nacionalistas da sua época. Ntshusha tinha um enorme diferencial político, por isso, digno de registo nos anais da História deste País. Este compatriota faz parte, indubitavelmente, da geração dos nacionalistas moçambicanos que depois da II Guerra Mundial começaram a exigir a independência nacional, em detrimento do acesso à cidadania portuguesa e aparente igualdade (assimilação)  Assim, à lista trazida por Sérgio Vieira, integrando Eduardo Mondlane, Marcelino dos Santos, Armando Guebuza, José Craveirinha, Noémia de Sousa e Ricardo Rangel, inclui-se Ntshusha. Vejamos o depoimento de Ntshusha:

Pergunta (P): Tenho conhecimento de que está  ligado às reivindicações ocorridas em Mueda. Qual foi o seu papel neste processo
Simon Ntshusha (SN): Eu vivia em Dar-es-Salaam e era membro da MANU, mas em Abril de 1960 fui a Mueda não para negociar a Independência em nome deste movimento. Eu, o Matola e mais elementos, perante muitas contrariedades dos outros membros da MANU, decidimos formar uma associação, a Sociedade Africana de Moçambique (SAM), para representar os moçambicanos de todo o país. Moçambique que é extenso e tem muitas tribos. Por isso, achamos mais correcto exigir a independência para todos os moçambicanos e não somente para os Makondes. Foi por esta razão que levámos cartões do SAM, para as negociações de Mueda.

(P): O que é que fizeste quando te encontraste com o administrador de Mueda?
SN: Tirei o cartão da SAM. Ele perguntou-me o que era aquele papel. Eu disse que era nosso cartão e que se ele quisesse também podia obter, passando assim, a ser membro da nossa associação. o administrador perguntou-me o que pretendia com aquele cartão, ao que respondi que queria independência para o meu país. Inclusivamente, convidei-o a não duvidar, porque era o dono do país. Aliás, eu disse-lhe que da mesma forma que nós tínhamos recebido bilhetes de identidade portugueses, ele também poderia receber o de Moçambique, tornando-se deste modo, moçambicano.

(P): Qual foi a reacção do administrador?
SN: O administrador disse  que eu não tinha estudado nada. Perguntou-me como iria conseguir governar o país. Onde iria buscar o dinheiro. Onde iria arranjar roupa para tanta gente, se não tinha fábricas. Você não está bom!  ... Disse ele.

(P): E depois, como é que reagiste?
SN: Respondi que os nossos antepassados não tinham estudado, mas viviam bem, tinham as suas machambas, o seu gado, entre outros bens, Sobre o dinheiro, eu disse que este assunto ficaria para depois, primeiro deveríamos tratar da independência. Quanto às roupas, perguntei-lhe se já tinha visto algum chefe tradicional nu.

(P): E como é que o administrador reagiu a estas respostas agressivas?
SN: Já ouvi, arranje um sítio para dormir, vai para sua casa e volte amanhã de manhã. Amanhã vou orientar-te sobre os passos que teremos de seguir.

(P): Então o que aconteceu no dia seguinte?
SN: Apresentei-me pela manhã e o administrador disse que tinha remetido o expedienteao governador do distrito de Cabo Delgado, em Porto Amélia e que devia voltar de novo para casa, que chamar-me-ia logo que tivesse a resposta. Antes  de eu abrir a boca, perguntou-me o que eu tinha andado a fazer durante a noite anterior na minha povoação. Acrescentou que eu tinha-me reunido com alguns régulos, como o Chilavi o Mbavala e outros. "Vocês fizeram reuniões, não dormiram". Acrescentou:"conheço o conteúdo dessas reuniões. Foi que, se estes brancos se recusarem a independência, vamos matá-los e ficarmos com as suas mulheres"

(P): Como te livra e que os poderia mandar para trazerem à administração destas acusações?
SN: Eu disse que todas aquelas acusações eram falsas. Que ele tinha sipaios e que os poderia mandar para trazerem à administração os tais régulos, de modo a confirmar a realizaçãodas reuniões.

(P): A seguir o que  aconteceu?
SN: O administrador ficou muito zangado. Levantou-se e, eu também levantei-me. Perguntei que se eu também me chateasse, lutássemos, quem iria vencer. Saímos do gabinete e ele mandou o sipaio Kassimula trazer a palmatória.  Eu advertia o Kassimula que se me batesse, eu iria também bater-lhe e, a seguir bateria ao administrado dele

(P): Então, entrou em pancadaria com administrador e o sipaio?
SN: Não, isso não chegou a acontece , porque a Modesta chamou-me a atenção para não responder à violência. Recorrendo a uma  parábola interessante, ela disse: "Você lembre-se que está como um passarinho à procura de mel. Sabe  que quando este bisbilhota a colmeia, as abelhas saiem e atacam-no". Acatei o conselho de Modesta. Apanhei inúmeras palmatoadas. A seguir fui encaminhado para Porto Amélia, onde fui sujeito a um novo interrogatório. Fui transferido para Lourenço Marques, encarcerado na Ilha Xefina, durante um ano e, depois, 13 anos na cadeia da Machava. Fiquei preso, durante 14 anos, tendo saído em 1974.

Simon Ntshusha
Quanto ao destino da sua camarada e "assessora", a Modesta Neva e outros membros do grupo, sabe-se  que foram também presos, mas muito poucas informações existem a seu respeito. Porém, especificamente sobre a Modesta, tem-se conhecimento que esteve encarcerada na Ilha do Ibo. A este propósito, Alda Saide chama a atenção para a relevância de se realizar "um estudo de caso" sobre esta nacionalista, como um dos exemplos do envolvimento da mulher na luta pela Independência Nacional.

2.2.3. Massacre de Mueda

O Massacre de Mueda ocorreu a 16 de Junho de 1960. De entre os factores que explicam este acontecimento, destaca-se a contestação popular contra a ordem político-administrativa colonial portuguesa e as tentativas do regime, de ludibriar o sistema tradicional de defesa da populações locais.

No que se refere à contestação, faz-se referência a uma série de emissários a Mueda, idos de Dar-es-Salaam, de entre eles, Domingos (1957) Simon Kunkhengam Samuli e Tiago (1958) e Faustino Vanomba (1959). No entanto a prisão de Simon Ntshusha e do seu grupo, associada aos factores supracitados, foi a "gota de água" que precipitou o Massacre. Este argumento prennde-se com o facto de Faustino Vanomba e Kibiriti Diwane, terem sido presos a16 de Junho, quando exigiam a Independência Nacional e a libertação Simon Ntshusha, encarcerado no mês anterior, pela mesma causa. 

O Presidente da FRELIMO, Eduardo Mondlane, que a princípio não chegou a relacionar-se com Ntshusha, partilhou  de forma indirecta da visão deste nacionalista, em dois aspectos. O primeiro é referente à visão deste nacionalista, em dois aspectos. O primeiro é referente à visão multiénica (para Mondlane, anti-étnica), e de dimensão nacional, tendo mostrado a sua inquietação pelo facto de os movimentos nacionalistas embrionários terem reflectido visões tribais. O segundo, é relativo ao uso da violência como alternativa incontornável para a conquista da Independência de Moçambique.

Com efeito, exteriorizando o seu pensamento, Mondlane enalteceu o uso da violência, associando-a, inclusivamente ao Massacre de Mueda, argumentando seguinte:

Estas manifestações, actuou como catalisador sobre a região e muitos daqueles que até então não tinham encarado bem o uso da violência, denunciavam agora a resistência pacífica como fútil

Comparando o Massacre de Mueda à série de reivindicações anteriores, havidas especialmentena Zona Sul do País, José Luís Cabaço destaca a primazia da consistência políticado idário nacionalista do Planalto dos Makondes.

Depois das greves nos caminhos de ferro de Moçambique, em 1947, no porto de Lourenço Marques, em 1949, os incidentes na açucareira  de Xinavane, em 1954 e na pedreira de Goba, em 1954, a primeira manifestação reivindicativa de autonomia ocorreu em Cabo Delgado, norte de Moçambique, e que seria afogada em sangue, em 16 de Junho de 1960, em frente do edifício da administração de Mueda,

No tocante à ludibriação do sistema tradicional de defesa das comunidades locais, refira-se que a administração colonial portuguesa recorreu a uma estratégia que viria a apanharas populações de surpresa. Na prática, no Planalto, as populações  tinham a tradição de andar providas de meios de suporte defesa, utilizando armas, tais como canhangulo, azagaias, catanas, facas, flechas, etc...adquiridos, em geral, na Tanzânia , em troca de produtos agro-pecuário, como foi referido.

Traindo o sistema de segurança, poucas semanas antes  do Massacre, aos Domingos, alguns padres, sob pretexto da civilização, começaram a pregar para que as pessoas não andassem munidas de instrumentos contundentes. Assim, longe de se aperceberem desta traição, acataram as recomendações dos clérigos. As consequências desta situação manifestaram-se negativamente no dia 16 de Junho,pois  as populações estavam completamente desarmadas. Contrariamente, o pelotão colonial que as massacrou, teria sido dizimado naquele dia.

A despeito deste massacre ter tido grandes repercussões a nível nacional e internacional, foi mantido em silêncio pelas autoridades coloniais, particularmente no seio das comunidades negras, aspecto facilitado pelo fraco acesso à informação, naquela época. Na esteira deste episódio, o Presidente Joaquim Chissano referiu que ele e Pascoal Mocumbi, ( Combatente da Luta Armada de Libertação Nacional. No período pós independência exerceu as funções de Director Provincial de Saúde na Província de Sofala, Ministro da Saúde e Primeiro-Ministro da República de Moçambique).

Local da mobilização popular para a reunião que culminou com o Massacre de Mueda
 Aldeia deMatambalala (Nandanga).

Fotografia original do Massacre de Mueda
Lino, antigo deputado da Assembleia Popular

2,2,4 Meu ingresso na FRELIMO

Acabo de partilhar o que considero ter sido o cenário político-estratégico internacional e nacional que vinha  formatando a minha personalidade na fase juvenil. Ademais, nos finais de 1963 e início de 1964, os efeitos da preparação da Luta Armada, fruto deste cenário, já se sentiam no Planalto. Os meus antigos professores, Alberto Joaquim Chipande, Raimundo Lourenço Pachinuapa e Simão Virgílio Minga, entre outros, tinham trocado o quadro e o giz, por armas do tipo MATTS (PPCH) que as exibiam nas nossas comunidades, em acções de mobilização.

Recordo-me que os camaradas Alberto Chipande, Raimundo Pachinuapa e Cândido Ayuba, vinham a Imbuho, às noites, onde se reuniam com o meu padrasto, Vintam Mbau, que era um chairman, para traçarem estratégias de mobilização e recrutamento de jovens. Eu e o meu irmão Mauro Damião fingíamos estar a dormir e a não acompanhar as suas conversas, mas, na verdade, captávamos tudo.

Os guerrilheiros traziam armas, cujos canos tinham vários furos lateralmente, e eles diziam que as balas saíam por aquelas perfurações. Calçavam botas grandes, conhecidas localmente por"Ben Bella", em alusão ao Presidente da Argélia, Mohamed Ahmed Ben Bella, que as tinha oferecido à FRELIMO. Era motivo de admiração para a juventude e, sobretudo cobiça, de um dia sermos portadores delas. Já  adultos, compreendemos que a informação sobre as armas não correspondia à verdade, mas também, passámos a entender que os emissários procuravam transmitir-nos mensagens de coragem e valentia.

De um modo geral, as investidas dos guerrilheiros na região de Imbuho servira de estímulo à juventude, a qual se ia aliando directamente à Luta Armada. Depois de iniciar a Luta Armada, lembro-me de uma emboscada contra soldados portugueses, na zona de Lipanyangule, entre a Missão de Imbuho e Namaua, na qual, entre outros guerrilheiros, estava Alberto Chipande. Outro acontecimento ocorreu na aldeia de Shilangolo, às 6.00 horas, entre 8 e 9 de Dezembro de 1964, protagonizado pela tropa colonial, tendo consistido no cerco e bombardeamento à base de Namachude (a distância entra a base de Nammachude e a aldeia de Shilangoloé de cerca de 6Kms). perto da aldeia Kunananguvo, empregando 2 bombardeiros Havards T-6

Nas altura da aproximação de uma das aeronaves, orientei aos meus familiares, nomeadamente a minha mãe, padrasto e irmão, para aplacarem, enquanto me mantinha de pé, observando os movimentos das aeronaves, Importa notar o facto de, ainda em criança, ter tido a capacidade de contrapor à intenção da aviação, o que na minha opinião só pode ter reflectido o espírito guerreiro que caracteriza os Makondes.

Um dos aviões foi abatido, num sábado, por um popular de nome Afonso, membro da Youth League  (miliciano), da Brandh de Mwanako, pertencente à jurisdição do chairman Simão Simon Silasi. Afonso, a partir de um xitala (alpendre), usou um canhangulo (espera pouco) com o qual atingiu a asa direita da aeronave. Quando a mesma caiu, os populares recolheram as raízes dos arbustos arrancados no embate, pois acreditavam no mito de que eram propícias para armadilhar gazelas. Refira-se que este é o primeiro avião derrubado durante  a Luta Armada de Libertação Nacional.

Harvard, primeiro avião abatido durante a Luta Armada, em Imbuho. por um
popular de nome Afonso, em 1964.

Face ao recrudescimento da Luta Armada, o regime colonial intensificou o controlo da população, assim como o recrutamento de jovens para as suas fileiras. Numa espécie de "caça ao homem", procurava capturar todos os jovens da minha aldeia, o que me pode conduzir a evocar, ainda que não taxativamente, o postulado bíblico  relativo à "caça" de Jesus Cristo pelo Rei Herodes que, para o efeito, acabou matando várias crianças do sexo masculino, da idade de Cristo.

Fugindo das incursões do regime colonial, escondíamo-nos nas matas, onde recebíamos víveres trazidos pelos nossos familiares, especialmente, então refugiadas na missão de Imbuho. Porém, quando as autoridades coloniais se aperceberam desta rede de ligações familiares, reforçaram as medidas de vigilância. Consequentemente, muitos jovens fugiram, ingressando na FRELIMO. Foi na sequência desta série de acontecimentos que decidi prestar de forma directa, o meu contributo para a libertação do povo moçambicano, rumando para o Tanganyka , filiando-me na FRELIMO, em 1965.

Para o efeito, aproveitei-me da viagem de uma tia minha, Basalisa, ia efectuar àquele país, acompanhada por uma amiga, esposa de um guerrilheiro, Henrique André. Era comum haver este tipo de visitas aos esposos/guerrilheiros, posicionados do outro lado do Rovuma, isto é,, no Tanganyka. Chegados a a Mtwara, por via Nchichira, permaneci por algum tempo, até que um dia, o Presidente Samora Machel, à altura, Chefe do Campo de Instrução Militar de Kongwa, visitou o local. Este tornou a decisão de se enviar os jovens que lá se tinham concentrado, para o Instituto Moçambicano em Dar-es-Sallam, onde fui, depois de uma paragem Bagamoyo, para treinarmos, mesmo em 1965. Este Instituto foi criado em 1963, como Centro Internato, para jovens moçambicanos. Era dirigido por Janet Mondlane, sendo Beth King administrativa. O mesmo visava "formar jovens para serem os dirigentes de amanhã". Como diz Jesus, era um viveiro de quadros da FRELIMO.

Quando estudava no Instituto Moçambicano tive muitos colegas, porém,
a minha memória retém nomes de alguns, como Smart Katawala, Teresa Simão, Deolinda Simango ( Deolinda Guezimane, depois do casamento) Rosália Tembe, João Focas marino, Josefat José Dimaka, Maurício Madebe, Fidélis Vivente Nkamalila, Martins Lijanga, André Masaite, Damião Cosme e Sabina Modesta Muma. De entre os meus professores , figuram Carlos José Lobo, deão Bernardo Ferraz, João Unhai, António Mpalange, João Munguambe e Vasco Campira.




D esquerda para a direita, Atanásio Mtumuke, Vicente Mussa e
Estêvão Pedro Pio lavando loiça, no Instituto Moçambicano em 1965

 3. Génese e Desenvolvimento da FRELIMO

3.1 Algumas organizações Políticas antes do surgimento da FRELIMO

A criação da FRELIMO e o início da Luta Armada de Libertação Nacional foram antecedidos pela existência de vários movimentos independentistas moçambicanos. Esta situação configura-se na resposta encontrada na altura, diante do outro, sofrimento do povo moçambicano, nos diferentes cantos deste País, vítima do colonialismo português. A caracterização comum de todos os movimentos, foi o facto de terem sido, por um lado, influenciados pela conjuntura política  e geoestratégica internacional e, por outro, acolhidos pelos países vizinhos, onde o ambiente político era fértil e aberto.

Deste modo, a génese destes movimentos está associada , grosso modo, à promoção de ideais de liberdade e autodeterminação dos povos do mundo inteiro. De forma específica, ao nível da África Austral, o país que inicialmente contribuiu para a elevação da consciência nacionalista foi a África do Sul, onde surgiu o Congresso Nacional Africano (ANC), a 8 de Janeiro de 1912. Este movimento foi criado não necessariamente para exigir a independência, mas sim, a liberdade para a maioria da população negra e o fim de todas as formas de discriminação naquele país.

Além da África do Sul, contribuíram outros vizinhos, cujo colonizador, a Inglaterra, tina uma política pacifista, o que permitiu a muitos moçambicanos entrarem para "o mundo da política". Com o efeito, o desenvolvimento da economia das plantações e o início da industrialização na Tanzânia, Rodésia do Norte  (Zambia), Rodésia do Sul (Zimbabwe) e Niassalândia (Malawi), acicataram o êxodo de moçambicanos para estes países.

Na Tanzânia, por exemplo, desenvolvia-se plantações de milho, sisal e amendoim, na Província de Mtwara, em regiões como Newala, Massassi e Mikindani, actividades que atraíram uma grande parte de moçambicanos. Nesta última praticava-se , predominantemente, a actividade piscatória. Obtinham dinheiro, como referi, para a aquisição de produtos que escasseavam no Planalto de Muueda, bem como para o pagamento do dote (mali) (pagamento de dote à família da noiva). Depois de cumprirem esta função ritualística, as armas eram empregues na caça.



Paralelamente à Tanzânia, a Zambia fazia a mineração de diamante, enquanto o Zimbabwe tinha grandes plantações de tabaco. Já a África do Sul, com a sua economia de plantações, reforçada pela descoberta de minas de diamantes em Kimberly (1867) e de ouro, em Witwatersand (1886) , constituiu-se um grande pólo de atracção de mão-de-obra da África Austral, em geral, e de Moçambique,  em particular, com ênfase para as regiões Sul e Centro.

O relativo clima de tranquilidade política nestes países, caracterizado pela abertura governamental pata a formação de associações e de movimentos políticos, impulsionou os moçambicanos a formarem os seus movimentos independentistas, Foi assim que em 1920, na Àfrica do Sul , surgiu o Congresso Nacional Africano de Moçambique, inspirado pelo ANC local. Militaram, entre outros, Jeremias Nhaca, João Tomás Chembene, José da Conceição Hobjana, Lindostrom Mathithe, Carlos Matsolo e Hassam Tricamo.

Por volta de 1946/47 surgiu, dentro do nosso País, a Organização Comunista de Moçambique (OCM), na qual figuravam como membros, João Mendes, Sobral Campos, Caciano Caldas, Henrique Beirão, e Maria Sofia Pomba Guerra. Este movimento tinha-se ramificado do Partido de Libertação de Moçambique, formado por cidadãos oriundos de Portugal. Todavia, por razões pouco claras, era considerado sem objectivos nacionalistas. Esta organização teve uma duração efémera, Porque a PIDE/DGS  prendeu os seus membros.

Em data pouco precisa, foi criado um outro movimento de nome Congresso Nacional Africano de Moçambique. (MANC) sigla proveniente do inglês, Mozambique African National Congress, liderado por Kamba Simango, inspirado, igualmente, na experiência sul -africana,. De acordo com o Presidente Joaquim Chissano, o MANC "não teve muita repercussão e quase desapareceu muito cedo, apagado pelo aparecimento de novos movimentos a UDENAMO e a MANU.

Em 1958/59 surgiu em Dar-es-Sallam, a União Nacional Africana de Moçambique, (MANU) liderada por Mateus Mmole, integrando cidadãos como, Lourenço Milinga Milinga, Samuli Ndyankali e Daude Atupale.

No ano de 1960, emergiu, igualmente, em Dar-es-Sallam, a Associação dos Africanos de Moçambique (SAM), encabeçada por Simon Ntshusha. Devido à prisão deste e de outros correlegionários na antecâmara do Massacre de Mueda, esta associação teve desaparecimento precoce.

No mesmo ano, 1960, foi fundada a UUnião Democrática Nacional de Moçambique (UDENAMO) em Bulawayo, liderado por Adelino Guambe. Foram membros deste movimento, alguns cidadãos que se iriam tornar figuras de relevo na FRELIMO, tais como Uria Simango, Feliciano Gundana, Mariano Matsinha, João Mungumbe e Lopes Tembe.

EM 1960, igualmente, foi criada  União Nacional Africana de Moçambique Independente (UNAMI), em Moatize, província de Tete, sob a liderança de Baltazar Changonga, Evaristo Gadaga e Inácio António Nunes. 

Há ainda indicações de que por volta de 1960 surgiu outro Congresso Nacional Africano de Moçambique (MANCO ou MANC), na Zâmbia, tendo sido seus líderes , Peter Balamanja e Jeque Tundumula.

Em 1962 foi formada a Convenção do Povo de Moçambique (CPM), na cidade de Durban, sob a liderança e Dinis Monjane e Tomás Betulane Nhantumbo.

Estes movimentos foram surgindo desde a década de 1920, apesar de incorporarem valores nobres dos seus antepassados, pecavam por possuir bifurcações quanto aos objectivos nacionalistas. Houve, por isso, a necessidade de criação de um só movimento que aglutinasse os ideais e os anseios do povo moçambicano. Neste sentido, entende-se que estas formações políticas viriam a "descarregar" as suas visões num único embrião, cuja gestação deu origem à FRELIMO.

Assim, diante destes aspectos, oferece-se inferir que a FRELIMO é o produto da congregação dos seguintes factores:                                                                                                                                       

-Tomada de consciência do povo moçambicano sobre a necessidade da sua libertação do jugo colonial.                                                                                                                                             - Amadurecimento do ideário nacional, que se se tornou  favorável à liberdade e à independência   - Irredutibilidade do regime colonial português,

                                                                                                                                                   

3.2. Constituição e Estruturação Político-Militar da FRELIMO

3.2. 1. Constituição e Estruturação Política

A origem geográfica da FRELIMO é envolta de um debate controverso, havendo, por um lado, afirmações que remetem a Acra e, por outro, argumentos que advogam Dar-es-Salamm, como berço do Moimento. O primeiro debate associado a dois dos três movimentos predominantes, que consubstanciaram a sua fusão, nomeadamente a MANU e a UDENAMO, aspecto referido por combatentes envolvidos na sua génese, entre outros, Lopes Temba Ndlana e João Munguambe. Estes sustentam que, em Junho de 1962, participaram da reunião do All Freedom Fighters (Congresso Pan - African, Laurence Mo), realizando em Acra, os cidadãos Adelino Guambe, Fanuel Mahluza e Calvino Mahlaieie, representando a UDENAMO e, por parte da MANU, Mathew Mmole, Laurence Milinga Milinga, Samuli Diankali e Daude Atupale.

No término do encontro, ainda em Acra, Adelino Guambe, falando numa conferência de imprensa, anunciou a criação da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), Esta notícia, veiculada por agências noticiosas internacionais, teve grandes repercussões no mundo. Refira-se que nesta mesma altura estava em preparação a reunião da Comissão Constitutiva da FRELIMO, a qual ainda não tinha tomado qualquer decisão sobre o nome do movimento a sair da fusão da MANU, UDENAMO e UNAMI. no entanto, acabaria por adoptá-o na Conferência Constitutiva, realizada em Dar-es-SALLAM, a 25 de Junho de 1962.

A segunda tese, verossímil, tem como paladino Joaquim Chissano, que entrou neste debate procurando esclarecer que a FRELIMO teve origem em Dar-es-Sallam. O anúncio deste nome em Acra, de forma precipitada, na sua óptica, visava o protagonismo por parte dos seus actores:

Quando ele (Eduardo Mondlane) chegou a Dar-es-Sallam, Guame e Mole estavam em Acra, Gana, convidados para uma reunião de Partidos Políticos , em Maio /1962). Mondlane teve que esperar pelo regresso deles. Mas, sabendo que havia um debate sobre a unificação dos movimentos de libertação, Guambe e Mole quiseram "puxar o tapete"  e assinaram à pressas um documento de criação da FRELIMO, em Acra.                                                                                                               E acrescenta                                                                                                                                                   (...) Portanto, é falso dizer que a Frente de Libertação de Moçambique foi formado em Acra. É formada em Dar-es-Sallam, porque os próprios concordaram em enviar as suas delegações para debaterem a unificação dos movimentos. E na verdade debateram e só a 25 de Junho é que  se chegou a conclusão de formar a Frente de Libertação de Moçambique.

De modo a legitimar o surgimento da FRELIMO, realizou-se de 23 a 28 de Setembro de 1962, o I  Congresso, evento no Hotel Arnatouglu, em Dar-es-Salamm, a mesma estância turística  que acolheu a sua Conferência Constitutiva. O Congresso foi um acontecimento deveras importante, porquanto definiu a imperiosidade da Luta Armada como alternativa principal para a libertação do povo moçambicano do jugo colonial. Para a prossecução deste desiderato, criou uma força militar como seu braço armado, que viria a ser designado Forças Populares  de Libertação de Moçambique (FPLM)

Membros do Comité Central saídos do I Congresso

 1) Eduardo Mondlane - Presidente da FRELIMO
 2) Uria Simango - Vice- Presidente
 3) David Mbunda - Secretário -Geral
 4) Paulo Gumane - Secretário - Geral Adjunto
 5) Marcelino dos Santos - Secretário para as Relações Exteriores
 6) João Munguambe - Secretário do Departamento de Defesa e Segurança
 7) Leo Clinton Aldrige (Leo Milas) - Secretário do Departamento de Informação e Propaganda
 8) Silvério Nungu - Secretário do Departamento de Informação e Propaganda
 9) Laurence Mallinga - Vice-Secretário do Departamento de Informação e Propaganda
10) Filipe Samuel Magaia - Secretário Adjunto do Departamento de Defesa e Segurança
11) Mateus Mmole - Vice-Secretário do Departamento de Administração
12) Baltazar Changonga - Secretário do Departamento de Saúde
13) Lucas Mbunde - Secretário do Departamento da Juventude
14) F. Dewase - Vice - Secretário do Departamento de Juventude
15) Lourenço Mutaca - Secretário de Finanças
16) Precilda Gumane - Secretária da Liga da Mulher
17) Jaime Msadala - Tesoureiro
18) John  Mauenda - Vice Tesoureiro

3.2.2.   Formação das FPLM

Aquando da tomada de iniciativas militares visando o desencadeamento da Luta Armada de Libertação Nacional, nas escolha dos parceiros  político-militares, a Direcção da FRELIMO orientou-se pelos princípios de  Não-alinhamento. Assim foram enviados homens para treinamento em países aliados e não necessariamente "alinhados" designadamente, Argélia, Egipto, China, Israel e URSS. A respeito do Não-alinhamento, Jacinto Veloso, um combatente que conviveu com Eduardo Mondlane , na Argélia e, sobretudo, na Tanzânia, presta a seguinte informação:
Para Mondlane, o conflito sino-soviético não deveria prejudicar a Luta Armada de Libertação Nacional. Era preciso obter o apoio de ambos os lados, em vez de estarmos contra um deles, como era o desejo e a pressão política exercida pelo outro. E assim aconteceu. O apoio à FRELIMO veio não só da China, mas da URSS, e também do Ocidente, à excepção de alguns Estados que acreditavam e lhes convinha promover a ideia de que a FRELIMO era teleguiada a partir de Moscovo. A Administração Kennedy estava com Mondlan e a FRELIMO, tendo, chegado mesmo a votar contra os interesses de Portugal colonial no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Esta visão era partilhada por outros  movimentos nacionalistas lutavam pelo derrube do colonialismo português, entrevistado em Roma, em Julho de 1970, afirmou que:

As organizações de libertação esperam tanto a ajuda do Leste como do Oeste e que não haveria risco de países africanos escaparem a um império colonial para caírem para um império ideológico: combateremos os soviéticos da mesma forma que combatemos os portugueses os portugueses, se um dia tentassem impor-se a nós.

Amílcar Cabral. Presidente do PAIGC (GUINÉ)
À data da sua criação, em 1962, como foi mencionado, o Departamento de Defesa  e Segurança (DDS) foi chefiado por João Munguambe, tendo como Adjunto, Filipe Samuel Magaia. Refira-se, porém, que existe uma zona de penumbra a respeito de quem terá sido o primeiro comandante das FPLM, se JoãoMunguambe ou Filipe Samuel Magaia!

Entretanto, o nome mais conhecido sobre a chefia inicial de DSD é Filipe Samuel Magaia, aspecto que decorre do facto  de este ter sido envolvido em 1963, na preparação do treinamento dos primeiros guerrilheiros, desde a Argélia e, sobretudo, na abertura e direcção das primeiras frentes de combate, até à sua morte em 1966. Com efeito, em 1962, Magaia treinara em Marrocas, com as Forças Nacionais de Libertação da Argélia (FNL) integrado nos guerrilheiros do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), e depois, na Tunísia, novamente com as FNL da Argélia, mas desta vez, inserido no grupo da União Popular de Angola (UPA).

Por sua vez, o histórico de João Munguambe, também conhecido por João Alfredo, está simplesmente  associado à sua eleição no I Congresso, como Secretário da Defesa e Segurança, não tendo sido envolvido em nenhuma acção militar. Aliás de acordo com o Presidente Eduardo Mondlane, ele esteve fora da FRELIMO por algum tempo porquanto saíra na mesma altura em que se expulsou o primeiro Secretário - Geral da FRELIMO, David Mabunda, em 1963.

Depois de readmitido, Munguambe representou a FRELIMO em Argel, por dois anos e, quando regressou a Dar-es-Salaam, tornou-se Secretário Adjunto de Relações Externas. Atente-se que a partir deste percurso, é evidente que Munguambe foi simplesmente um político e não chegou a comandar homens no teatro de operações, o que outorga, legitimamente, o título de primeiro comandante das FPLM a Filipe Samuel Mangaia

Em primeiro plano: Filipe Samuel Magaia

Na escolha dos países para o treinamento dos primeiros guerrilheiros da FRELIMO, os potenciais foram Gana e a Argélia. O Gana ascendera à sua independência em 1957, não por via militar. Porém, era um país de elevado gabarito político e referência de  liberdadepara todo o Continente Africano. Conforme realça Joaquim Chissano:

Parecia indiscutível o desejo de projecção do Ghana, como um dos centros de Movimento Libertador do Continente. Pois, então não era o Krumah o"dono" da ideia do Governo Continental, do Exército Continental, da umidade institucional de África?Não era o Ghana o Centro Africano do anti-imperalismo, anti-colonialismo,anti-neo-colonialismo e do Socialismo.

Acrescentando, Sérgio Vieira refere que o "Gana entretinha o mito de que um Exército Pan-Africano marcharia para a África Austral para a libertar. Apesar deste objectivos nobres, o Gana não atraiu a FRELIMO.

A Argélia terá pesado mais que o Gana, cuja oferta foi declinada pelo Presidente Mondlane, por razões que eventualmente se prendem com a elevada experiência argelina no domínio militar, mercê da luta pela independência, que a Frente de Libertação Nacional (FLN) da Argélia, tinha travado contra a França, durante 7 anos (1954-1961). 
Outro factor era o treinamento já em curso de guerrilheiros de colónias portuguesas, como o MPLA; Frente Nacional para Libertação de Angola (FNLA) ; Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), que terá sido uma vantagem, quer do ponto de vista de comunicação, quer de outra índole.

Convém enfatizar , no entanto, que as relações entre Eduardo Mondlane o Osagyefo, significa Redentor, na língua Twi. Kwame Nkrumah eram tidas como divergentes, num período em  que se apontava a existência de laços fraternos com os dirigentes argelinos e tunisinos. Esse dissentimento fundamentava-se na consolidação dos laços de amizade entre Mondlane e Ben Bella, são desagrado do Nkrumah. Como destaca Jesus:

A seguir ao I Congresso ´, o Embaixador do Ghana em dar-es-Salaam convidou  Eduardo Mondlane a ir a Acra. Certamente que oGhana se perfilava como possível candisato a fornecer treino militar aos guerrilheiros da FRELIMO. Mondlane sempre recusou a oferta pois preferia claramente os campos da FNL da Argélia, país que contactava directamente ou via Tunísia.

Ao lado do treinamento, outro desafio se impunha, pois era preciso encontrar um país vizinho, que servisse de baluarte baluarte para a Luta. A Tanzânia foi o que que assumiu o risco de nos acolher. Esta questão foi abordada por Gabriel Simbine, um combatente que conheceu profundamente Eduardo Mondlane, pois com ele privou, primeiro em Moçambique, e depois nos Estados Unidos da América e na Tanzânia.

Mondlane teve a grande vantagem de trabalhar na sede da ONU onde teve o privilégio de conhecer as políticas das potências colonizadoras, conheceu os dirigentes do III Mundo, dos países recém-independentes com que podia contar, conhecer os líderes dos países ainda em processo de alcançar a independência nacional, alguns dos quais sob a tutela da ONU. A Tanzânia de Julius Nyrrere pertenceu a este grupo de  tutela. Nyerere contou com o apoio de Mondlane na obtenção de informação sobre o processo de independência do Tanganyica e, Nyerere  veio a retribuir a Mondlane, oferecendo-lhe espaço e condições para  os moçambicanos se organizarem, a contarem com o apoio do governo e do povo tanzanianos.

Gabriel Simbine, à direita

De facto, como Mondlane explicou aos participantes do II Congresso da FRELIMO, o governo tanzaniano cedeu-nos espaço no seu território para a formação dos guerrilheiros, tendo sido Bagamoyo, criado em Agosto de 1963, o  nosso primeiro campo de treino político-militar. Depois de garantido este lugar, seguiu-se ao recrutamento cada vez massivo de guerrilheiros, em todo o País, estabelecendo-se o mínimo de condições para o início da Luta Armada. Bagamoyo seria substituído pelo Campo de Instrução Militar de Kongwa, em 1964. Em 1965 veio a ser criado o Centro de Preparação Político-Militar de Nachingwea, aproximando-se o comando político-militar ao nosso País, porém mantendo-se o comando político-diplomático, em Dae-es-Salaam.

O primeiro grupo de 50 guerrilheiros treinados na Argélia saíu da Tanzânia em Janeiro de 1963, tendo regressado para este país. em Julho do mesmo ano. Nesse mês, o segundo grupo, composto por 75 elementos, chegava a Argélia, tendo retornado, em vagas, entre 16 e 17 de Março de 1964. Por seu turno, o terceiro, partiu de Janeiro e regressou a 31 de Março de 1964, pois o seu período de treinamento foi somente de 3 meses.

Como foi referido, estava-se num período de preparação do início da guerra. Na Tanzânia ainda não havia infraestruturas para o acolhimento dos guerrilheiros moçambicanos. Neste âmbito, os grupos foram instalados provisoriamente, no quartel general, situado em Lugalo, antes designado kolitos Barrac , sob protecção de tropas nigerianas. A missão destasera supervisionar a criação do exército regular tanzaniano.

Nessa altura, a Tanzânia atravessava um momento conturbado, do ponto de vista político-militar. Era recém-independente e ainda com um exército que integrava transitoriamente oficiais britânicos, ocupando elevados postos de chefia. Esta situação, de pouco agrado dos oficiais tanzanianos, chegou a originar ondas de rebeldia e levantamento,  por parte destes, o que resultou uma forte instabilidade naquele país.

Face a este fenómeno, na óptica do governo tanzaniano, era de todo conveniente controlar-se os guerrilheiros moçambicanos, por questões de segurança. Porém, uma parte  dos camaradas nossos não entendeu esta situação e exigiu que fosse deitada fora do quartel, para repouso ou visitas aos seus parentes. A firmeza da decisão do governo de Nyerere, em coordenação com a Direcção da FRELIMO, foi endurecida, ao que  alguns guerrilheiros reagiram em deserções. A este respeito, Chissano prestou o seguinte depoimento:

Sei que depois de eu saír, Chissano foi quem os recebeu, idos da Argélia e os aquartelados, muitos deles fugiram do quartel, porque não queriam seguir a viagem para o centro de formação político-miilitar em Kongwa e diziam estar muito cansados e queriam descansar, queriam tirar algumas férias.

No mesmo contexto, Chipande explica que estaatitude se deviam à fraca maturidade política dos camaradas, manifestas desde o período de treinamento na Argélia, ao que Salésio Nalyambipano agrega as dificuldades logísticas, com que o Comité de Libertação da OUA se deparava, face  à turbulência político-militar vigente, Nalyambipano referiu que:

Passamos muito mal porque estávamos com fome e, no quartel de Lugalo onde passámos, eram os soldados nigerianos a comandar tudo. Não tínhamos acção. Na minha óptica, essa terá sido a razão que levou alguns de nós, pouco persistentes em sofrimento e menos acometidos com a causa nacional desertassem um por um, para junto dos seus familiares. 

Guerrilheiros da FRELIMO em treinamento

Depois de estabelecidas as bases políticas, militares e técnicas, incluindo o interior do País, onde se fazia a estruturação das células clandestinas, o Comité Central da FRELIMO decidiu, na sua sessão de Junho de 1964, pelo desencadeamento da Luta Armada, no dia 25 de Setembro do mesmo ano.

3.2.3. Início da Luta Armada

No âmbito da preparação das frentes de combate, os guerrilheiros foram distribuídos por quatro frentes, para acções de reconhecimento, nomeadamente, as províncias de Cabo Delgado, Niassa, Tete e Zambézia.  A Frente de Cabo Delgado foi desdobrada em três grupos, ficando chefes de cada um deles, Raimundo Pachinuapa, para o Posto Administrativo de Muindumbe, Alberto Chipande , Posto Administrativo do Chai e António Saide (Denominava-se por Kwandingwele, ou seja, onde foi o macaco, não volta sem algo), tendo pernoitado em Namatili, a 1 de Agosto de 1964. A Frente do Niassa era chefiada por Daniel Polela, tendo Oavaldo Tazama, como Comandante-Adjunto. Integrava,entre outros combatentes, Mateus Bernabé Malipa, Henriques Calumbaíne e Casimiro Malibane.

A Frente de Tete esteve sob a chefia de Lemos Gouveia, Lucas Elias Kumato (adjunto) e integrava, entre os demais, Benedito Gouveia, Raúl Casal Ribeiro, António Delepa e Artur Fole. Por sua vez, a Frente da Zambézia era dirigida por António Silva e Tomé Joaquim Naculangue (Adjunto), incluindo Eduardo Silva Nihia, Miguel Ambrósio Makwadju, Alberto Chingamuka, Gonçalves Pindula, Jacinto Vitam, Eusébio Damas e os enfermeiros João Luís Cumbitse e David Sithoi, entre outros

Uma vez consolidadas as acções de reconhecimento da situação do inimigo, foi decretada a insurreição geral armada, a 25 de Setembro de 1964, na voz do Presidente da FRELIMO, Eduardo Mondlane.
Antes, tinham sido indicados companheiros para contactar os diversos grupos, com vista a transmitir a orientação de Direcção  da FRELIMO, a respeito da necessidade dese efectuar os disparos simultaneamente, de modo a criar-se um grande impacto a nível nacional e internacional, sobre o início da guerra em Moçambique.Assim, os mensageiros foram José António Chaúma, antes conhecido por José Chulu, para o grupo de Cabo Delgado, Bonifácio Gruveta (Zambézia) e Luís Pequenino (Niassa). A seguir, vide o texto integral sobre o início da Luta Armada em Moçambique.


A Luta Armada iniciou com cerca de 200 guerrilheiros treinados e equipados. A primeira informação recebida pela Direcção da FRELIMO em Dar-es-Salaam a reportar o ataque às posições do inimigo, veio do grupo chefiado por Alberto Chipande, que disparou o primeiro tiro, a 25 de Setembro de 1964, no Posto administrativo de Cha, o qual, marca simbolicamente, o início da Luta Armada. Há um debate ainda em aberto, sobre o primeiro tiro, protagonizado por outros grupos, envolto em verdades e especulações, porém, constituindo-se em premissas para novas reflexões.

Há registos segundo os quais o grupo da Frente da Zambézia não cumpriu a missão no dia estabelecido, devido à chegada relativamente tardia de Bonifácio Gruveta que só se juntou aos camaradas no dia 23 de Setembro. Gruveta, chegou a referir que o seu grupo efectuou um ataque em Lugela (Tacuane), a 24 de Setembro. Sem confirmar esta informação, Miguel Makwadju, integrante desta Frente, salienta que o seu grupo só conseguiu realizar um ataque, na noite de 1 para 2 de Outubro, cujo alvo foi Mongwe.


Na Zambézia, a Luta viria a ser interrompida em Junho de 1965, dada à relutância do Presidente malawiano, Hastings Kamuzu Banda, em se usar o seu território para trânsito dos guerrilheiros, tendo se recusado, inclusivamente, à petição do Presidente Eduardo Mondlane. A este respeito do grupo do Niassa, há informações sobre intervenções nesse sentido, no dia 24 ou 25 de Setembro, tais como, o corte de estradas, picadas e linhas telefónicas, assim como o ataque ao Posto Administrativo de Cóbué. Sustenta-se igualmente, que no dia 26 foi atacada a lancha Castor, aportada na Base Naval de Metangula, uma operação comandada por Osvaldo Tazama.

Relativamente ao grupo de Tete, refere-se que este partiu de Tunduma, região situada nas fronteiras entre  Tanzânia, Zâmbia e Malawi, concretamente em Mbangwe, onde foi recebido ppor Dique Gaspar, então tesoureiro da FRELIMO. há referência a um ataque dirigido por Gouveia, em Charre. Porém, outras fontes afirmam que tal não chegou a acontecer, pois, os combatentes foram descobertos pela tropa colonial, antes de qualquer acção. Caíram numa emboscada, em que o camarada Artur Fole ficou ferido numa perna. Este, capturado pelo inimigo, em Doa, foi amarrado a um Jeep e arrastado até à morte. Aliás, foi nas mesmas circunstâncias em que o camarada Milagre Mabote perdeu a vida. Este, num Jeep Willys, foi arrastado da aldeia de Chiulica, até ao Posto Administrativo de Maniamba, Província do Niassa. 

A Frente de Tete viria a interromper a Luta devido às mesmas razões que as da Zambézia, ao  que se acrescentou, o posicionamento considerado ambíguo tomado pelo , Kennth Kaunda Presidente Zambiano (Incialmente Kenneth Kaunda apoiou a nossa luta de forma bastante tímida, ainda que não se tivesse declarado inimigo da FRELIMO). temendo na altura, a retaliação de Portugal, no uso do porto da Beira, para transacções comerciais com o exterior. Observe-se que a Zâmbia era hospedeira da Mozambique Revolution Council (MORECO) designado mais tarde por Conselho Revolucionário de Moçambique (COREMO) e, tudo fez, em vão, para criar uma fusão entre este movimento e a FRELIMO.  Sobre o fracasso de Tete , outras correntes adicionam a longa distância que separava a Frente, dos centros de reabastecimento logísticos. Esta foi reaberta a 8 de Março de 1968, tendo se mantido com sucesso, até à Independência Nacional, não obstante a continuidade de alguns problemas que tinham ditado o seu encerramento, especialmente deficiente relacionamento com o Malawi.

+++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++

No que concerne ao nosso inimigo,o sistema fascista português importa caracterizar, ainda que  sumariamente, o seu nível de preparação no início da guerra nas colónias. Este aspecto é de suma importância pois, ajuda a compreender a natureza brutal dos métodos de guerra que o regime colonial adoptou, violando grave e sistematicamente os direitos humanos. Em todo o período da luta nas colónias, Portugal socorreu-se dos métodos organizativos, estratégias militares e financiamento da OTAN, na qual se tinha filiado em 1949. Antes da eclosão do conflito armado nas colónias, o seu conceito de guerra era o das "forças massificadas", voltando aos combates somente contra o seu vizinho e então "inimigo histórico", a Espanha. Porém, quando surgiu a Guerra Fria, passou a guiar-se pelo conceito de "forças aeronavais", colocando-se em prontidão combativa contra o bloco socialista.   

Como referem Aniceto Simões e matos Gomes (militares portugueses)  o início das independências  dos países africanos terá alertado a Botelho Moniz, ministro da defesa português, (General portuguêsque substituíra no cargo Santos Sousa, em 1958, a buscar novas reflexões sobre a organização militar do seu país. Sob pretexto de se precaver para os "novos tempos", Botelho Moniz chamou para si a experiência adquirida como adido militar em Washington.

Com efeito, no mesmo ano da sua nomeação, iniciou a modernização do exército: intensificou-se o envio de oficiais portugueses para frequentar cursos em Espanha (pára quedistas), Bélgica (pára-comandos) , EUA ( pilotos, Estado Maior, informações, ranger) Grã-Bretanha  (informações, fuzileiros). na mesma toada, Moniz buscou os conhecimentos de guerrilha dos francesees, adquiridos aquando da guerra contra os argelinos, enviando para a Argélia, em 1959,duas missões militares, onde cursaram "Pacificação e guerrilha" 

Reunido este manancial técnico-militar, Portugal expôs publicamente as suas acções combativas, ara enfrentar a guerra em África, ao alterar o seu conceito estratégico, em que já não era mais o Bloco Socialista a sua principal ameaça mas sim, os territórios ultramarinos (Directiva de 1960)     A  seguir, publicavam-se estudos sobre a guerra subversiva, com destaque para "O Exército na Guerra Subversiva", cujos volumes foram lançados em 1963 e 1966.

De acordo com David Martelo, na década de 1960, Portugal continuou a inspirar-se nos modelos teóricos franceses, tendo os aplicados na sua Academia Militar. Aqui a base da literatura era a trilogia  de Jean Lartégury, "Os Centuriões; Os Pretorianos; Os Mercenários, que recria o ambiente das guerras francesas na Indochina e na Argélia!

Perante toda esta investida, a Direcção da FRELIMO organizou-se para contrariar esse conhecimento livresco, através da aplicação das experiências obtidas noutros horizontes, tais como, a China, Argélia, Egipto e URSS, alinhado-as com o conhecimento tradicional.

3.2.4. Evolução das Estruturas do Comando Político-Militar

As primeiras estruturas que criámos no interior do País, especificamente na Frente de Cabo Delgado, foram bases e destacamentos. Nesta Frente, abriu-se em 1965, a Base Central, também conhecida por Base Moçambique. Como ainda fosse de dimensão, foi tratada por destacamento. Era conhecida no seio da população por liguengue (guerrilheiro). Simão Vitgílio Minga acrescenta que se usava, igualmente a expressão madade para designar os guerrilheiros.

No mesmo período foi criado o Centro de Instrução de Lipelva, na baixa de Muidumbe. Este seria transferido para Nangade, passando a chamar-se Base Beira. A sua passagem para a zona planáltica é explicada por aspectos logísticos, sobretudo, os que se prendiam com a redução de distancia relativamente à fronteira do rio Rovuma, donde provinha todo o tipo de  reabastecimento das nossas forças.

Na Frente do Niassa , a primeira base a ser criada foi a de Ntumbi, em Setembro de 1964. Tratava-se  de uma base de concentração e desdobramento, que depois foi substituída pela Base Ngombe. Importa referir que a maior base que se viria a constituir em Niassa, foi Mbembe (Base Central), localizada numa caverna, entre Mandambúzi e Miandica.


No cômputo geral, com a criação das bases pretendia-se estabelecer posições de rectaguarda, reforçadas por aglomerados populacionais, os quais se viria a constituir em zonas semi- libertadas, a partir de 1965. A respeito desta última questão, o Departamento de Informação e Propaganda da FRELIMO,  em 1966, anunciou o seguinte:

As províncias de Cabo Delgado e Niassa constituem hoje regiões semi-libertadas, onde a FRELIMO está estabelecendo o poder político-administrativo moçambicanos, procedendo a reorganização da economia, a criação de  escolas, de hospitais, etc... Nestas províncias a FRELIMO está, em suma, a criar uma vida nova, em que o povo  começa a assumir, ele próprio, as responsabilidades do seu destino.

Alunos nas zonas libertadas

DE 1964 A 1966, A linha de comando político-militar das FPLMM possuía no seu topo, o Congresso e o Comité Central da FRELIMO, seguido pelo Departamento de Segurança e Defesa (DSD) que sua vez tinha sob a sua subordinação, os centros de formação político-militar e as bases centrais.  Era assim que funcionava esta linha, enquanto a guerra recrudescia.

Refira-se, porém, que com o aumento do número de guerrilheiros e das áreas operativas tornou-se inevitável a criação de um órgão que pudesse imprimir maior vigor e eficácia às actividades político-militares. Foi neste contexto que se iniciou com a organização dos comandos, a nível central, provincial e sectorial.

3.2.4.1. A nível Central

De 1966 a 1972 estabeleceu-se uma estruturação substancia, procurando-se superar os desafios operacionais anteriores, que se resumiam na ineficácia do fluxo de informação, sabido que este é fulcral em quais quer intervenções militares.  Presidente Eduardo Mondlane destacou três desafios, de entre os vários que existiam na organização inicial dos guerrilheiros da FRELIMO, nomeadamente.                                                                                                                                            1) a Estruturação Central de todo o Corpo Militar,                                                                                2) a Coordenação das Forças Armadas                                                                                                    3) o Abastecimento.                                                                                                                            Estes desafios eram realmente estruturantes e obedeciam, sobretudo, a uma hierarquia entre si, no sentido que não se podia resolver um, deixando-se os outros.

No que diz respeito à Estruturação Central de todo o Corpo Militar, esta acção surgiu da necessidade de se fazer face à inexistência, nos dois primeiros dois anos e meio  do início e evolução da guerra, de um órgão central que comandasse, efectivamente, os guerrilheiros. Existia o Departamento de Segurança e Defesa( DSD), o qual tinha um chefe, nesse caso um Secretário, à semelhança dos outros secretariados. No entanto, em 1966/67 o Exército da FRELIMO já não tinha uma estrutura preparada à altura da evolução da guerra, com 8 milhomens. Cefeito, em 1968, justificando a necessidade da estruturação operada a partir de 1966, Samora Machel pronunciou-se nos seguintes termo:

Podemos afirmar que até Novembro de 1966 o Departamento de Defesa funcionou sem estrutura. Praticamente, todas as responsabilidades estavam incorporadas no Secretário do Departamento, chefe do DSD. Este sistema, Com o desenvolvimento da Luta revelou-se ineficaz: a partir de certa altu, um Gabinete de ra começou a fraquejar , porque era  humanamente impossível ao Secretário do Departamento abarcar todas as tarefas relacionadas com a luta. É assim que em Janeiro e Junho de 1966, foi decidido numa reunião do DSD, em que participou o próprio secretário Filipe Samuel Magaia, que uma nova estrutura deveria ser criada.

A proposta inicial para a nova estrutura preconizava a criação de um "Conselho de Guerra" com ramificações no interior de Moçambique ao nível das províncias. Teria, certamente um Gabinete de Planificação quese chamaria por "Estado Maior" - o seu órgão operativo. Esta ideia por Magaia, (foi alvejado a tiro no dia 10 de Outubro de 1966, por Lourenço Matola, um camarada de trincheira e morreu na manhã do dia seguinte.) num debate em que ele própria envolveu alguns comandantes militares. Alberto Chipande, que esteve presente no encontro, referiu que Magaia pensou assim porque a Luta estava deveras avançada, necessitando de uma estrutura especializada e fortificada para organizar a logística e coordenar as operações.

Uma das medidas tomadas em 1966, tem que ver com a divisão do DSD em duas ramificações distintas, passando a existir, por um lado, o Departamento de Defesa (DD) e, por outro, o Departamento da Segurança (DS) De acordo com Samora Machel, o desmembramento do DSD visava a criação de maior eficácia na área da defesa, ao que se associavam, obviamente, as questões de segurança. Neste sentido, na relação com os factores que explicam esta divisão, Machel enumerou alguns desafios, tais como o reforço da disciplina militar, controlo das deserções, êxodo populacional, correcto enquadramento das raparigas nas fileiras dos combatentes e a definição clara das actividades produtivas dos combatentes.                      Buscando exemplos de constrangimentos com que a FRELIMO se deparava, Machel referiu-se acasos de indisciplina nos centros militares do exterior, nomeadamente, nos de Bagamoyo, Kongwa e Ilala, que se julgavam advirem da inexistência de uma política militar destinada à regulação de conflitos no seio dos comandantes, especificamente, face ao êxodo das populações para a Tanzânia.

Conforme Machel, ainda havia um elevado índice de deserções no interior  do País, aspecto evidenciado pela enorme concentração de guerrilheiros nos postos fronteiriços de Songea, Tunduru, Mbeya e Mtwara. O "fenómeno deserções" era entendido como derivado da falta de controlo, aspecto que justificava, inclusivamente, os casos de venda de armas ao inimigo. Retenho na memória o caso de um guerrilheiro de nome Mutuka que saído da Base Beira, vendeu uma arma tipo AKM-70 a um preço irrisório, de 25$00, 4 latas de sardinha (Bom Amigo) e 4 latas de canned beef (carne enlatada)

Nessa perspectiva organizacional, foi criado um órgão central de comando, tendo sido proposto nomes, alguns nunca adoptados, tais como Estado Maior General, Conselho Nacional de Comando, Comité Executivo, Alto Comando, Conselho Nacional do Exército, Comando Nacional e Escala Nacional. No entanto, desta lista de nomes, a Escala Nacional foi a designação mais divulgada entre os combatentes, tendo os restantes "sobrevivido" em documentos oficiais, como se pode depreender. De acordo com Rafael Rohomoja,  a Escala Nacional, tinha a seguinte composição de 1968 a 1974,

 1. Samora - Machel Chefe do Departamento de Defesa
 2. Alberto Chipande - Chefe-Adjunto do Departamento de Defesa
 3. Sebastião Marcos Mabote - Chefe de Operações
 4. Paulo Samuel Kankhomba - Chefe-Adjunto de Operações
 5. Anselmo Gregório Anaiva - Chefe de Material
 6. Pedro Gaivão Odallha - Chefe dos Serviços de Reconhecimento (SERECO)
 7. Rafael Rohomoja - Chefe de Efectivos e Movimento de Pessoal
 8. Osvaldo Assael Tazam - Chefe de Segurança Militar
 9. Joaquim Munheque - Chefe de Transmissões Militares
10. Fernando Guezimane - Chefe da Secção Administrativa

Membros da Escala Nacional Vs Estado Maior General em Nachingwea

Em Agosto de 1967, a nível central, foram criadas secções, integrando serviços operativos, tanto 
no Departamento de Defesa (DD), como no Departamento de Segurança (DS). Deste modo, no DD
passamos a ter:
 1) Operações
 2) Recrutamento e Formação de Quadros                                                                                                 3) Logística                                                                                                                                                 4) Reconhecimento                                                                                                                                       5) Comunicação e Transmissões                                                                                           6) Administração                                                                                                                                         7) Finanças                                                                                                                                                   8) Saúde                                                                                                                                                       9) Comissário Político                                                                                                                             10) Pessoal                                                                                                                                                    Por sua vez, no DS foram descentralizados os Serviços de Reconhecimento (SERECO) .

 3.2.4.2. A nível Provincial

No mesmo período da estruturação dos órgãos centrais (1967) estabeleceram-se os comandos provinciais. Assim tivemos a figura:
1) Comandante da Defesa Provincial
2) Comissário Político
3) Adjunto-Chefe do Departamento de Defesa Provincial (Chefe de Operações)
4) Chefe de Segurança
5) Chefe de Reconhecimento
6) Chefe da Artilharia
7) Chefe do Destacamento Feminino

A Frente de Cabo Delgado teve a particularidade de contar, com o Chefe- Adjunto do Departamento de Defesa, Alberto Chipande, como seu supervisor, Refira-se que centralmente, as províncias do Niassa e Tete foram por sua vez, supervisionados por Armando Emílio Guebuza e Sebastião Marcos Mabote, respectivamente.

 3.2.4.3. A nível Sectorial                                                             

A descentralização da linha de comando estendeu-se aos sectores operacionais, com o objectivo de reforçar a luta nas zonas de actuação do inimigo, ou seja, as povoações, o que fez emergir os comandos sectoriais. As frentes de Cabo Delgado e de Tete foram divididas em quatro sectores cada, e a do Niassa, inicialmente em duas regiões e depois em três.

Os sectores estavam delimitados, maioritariamente, por rios principais. Por exemplo, na Frente de Cabo Delgado, havia somente um único caso em que a estrada constituía o limite de referência. Assim, o Primeiro Sector era limitado, a Norte, pelo rio Rovuma; a Sul, pela Estrada Mocímboa da Praia -- Mueda; a Este, pelo Oceano Índico e; a Oeste, pela Província do Niassa. O Segundo Sector era limitado, a Norte, pela Estrada Mocímboa da Praia -- Mueda; a Sul, pelo rio Messalo; a Este, pelo Oceano Índico e; a Oeste pela Província do Niassa. O Terceiro Sector era limitado, a Norte, pelo rio Messalo; a Sul pelo rio Montepuez a Este pelo Oceano Índico e , a Oeste pela Província do Niassa. Finalmente o Quarto Sector era limitado, a Norte, pelo rio Montepuez; a Sul, pelo rio Lúrio; a Este, pelo Oceano Índico e; a Oeste, pela Província do Niassa,

As regiões da Frente do Niassa foram, Niassa ocidental e Niassa Orienta. Posteriormente, viria a ser criada a terceira região, designada Catur, mais conhecida por Niassa Austral.

Localização dos Sectores da FRELIMO em Cabo Delgado

 3.3. Desenvolvimento da Luta Armada

Na fase inicial da Luta, por vários factores, tivemos limitações no que se refere no que se refere ao equipamento bélico. De modo a inviabilizarmos o potencial do inimigo, no lugar de efectuarmos operações, como o ataque aos seus quartéis, apostávamos noutras estratégias. Realizávamos emboscadas e sabotagens, através da colocação de minas, obstruindo frequentemente as vias de acesso e infra-estruturas. Dentre os vários tipos de minas que usámos, destacam-se PDM (ANTI-ANFÍBIA), PMM e TM-46 (anti-carro) e POMZ (anti-grupo)

Estima-se que de Junho de 1965 a Junho  de 1970, tenham sido  colocadas pela FRELIMO, 5.290 minas, sendo que 1.894 foram accionadas. Data de 1965 o registo de accionamento ds primeiras minas pelo exército colonial português em Moçambique. A primeira foi accionada a 29 de Maio, em Nova Coimbra (Mitchumwa, Niassa) e, a outra, anti pessoal, no mês seguinte, a 14 de Junho, em Cóbué (Niassa). Na Frente de Cabo Delgado, a primeira mina foi accionada em 4 de Julho, em Nancatari e a segunda, anti-pessoal , a 10 de Outubro no Sagal, estrada Mueda-Mocímboa da Praia.

O tipo de pressão exercido sobre a tropa colonial faz-me recordar uma situação ocorrida na Frente de Tete, em que o inimigo reagiu ao encurralamento que fazíamos. Recorrendo a uma espécie de piada, um camarada nosso achou um panfleto atirado de um avião, com um texto que dizia o seguinte: "Vocês podem minar as estradas e impedir-nos de circular por elas, mas vamos a ver se serão capazes de minar o espaço aéreo, nós vamos começar a nos deslocar por ar"

Tipo de minas usadas pela FRELIMO

A respeito do encurralamento do inimigo, José Moiane, antigo combatente, também fez um pronunciamento bastante elucidativo, recorrendo ao episódio de um soldado colonial , aparentemente esvairado, mas que, no fundo, minimizava a capacidade dos guerrilheiros. Esta atitude viria a custar a vida a este soldado. Referiu-se nos seguintes termos:

Nós vimo-nos forçados a minar o cruzamento entre Maniamba e Metangula. Foi nesse cruzamento onde foi vítima de minas um capitão colonial português apelidado de pelo nome de Fanfarrão.. Esse capitão era tão arrogante, mas tão arrogante de tal forma que chegou a dizer que não precisava de armas para acabar connosco e que era um desperdício gastar balas com guerrilheiros que podiam ser mortos à mão. Acabou morto por uma mina colocada por guerrilheiros, aqueles a quem dizia serem desprezíveis (...) O carro em que viajava foi lançado para o ar pela força da mina e, o fanfarrão ficou desfeito em pedaços.

De um modo geral , era pelas via das sabotagens que conseguíamos, contrapôr o potencial do exército colonial. Inicialmente tinha armamento mais moderno, como Panhards, Fogs, carros blindados ou "granadeiras", meios aéreos e marítimos e, usava ainda, abrigos fortificados,

Panhard

No domínio da força aérea, Portugal recorreu a vários meios, tais como  helicópteros Alouette II e Alouette III, assim como Puma. Quanto aos aviões, utilizou Harvar T6, Fiat G-91, Dornier DO-27, Nordatlas e C-47 para apoio de proximidade, reconhecimento do terreno e transporte, respectivamente. 

Debruçando-se ainda sobre a capacidade militar do exército colonial e a resposta dada pela FRELIMO, Moiane acrescentou.

Depois da batalha que fiz referência em Mamdambuzi na Província do Niassa, os portugueses começaram a intensificar, inundando o espaço aéreo com os seus aviões Fiat, ao mesmo tempo que potenciavam os ataques com a Marinha de Guerra na via fluvial. eles bombardeavam tanto por via aérea como por via fluvial. Os nossos apelos foram ouvidos pela Direcção da FRELIMO  e foi-nos enviado armamento, Reforçou-se o já existente e também armamento novo. Para além do reforço do material bélico, foi-nos enviado também um reforço em meios humanos num total de três companhias. Dessas três companhias, uma deveria ficar em Mepoxi, outra deveria ir para Catur e a outra ainda avançar para a Província da Zambézia.

O aperto que fazíamos sobre a tropa colonial, no uso das vias terrestres levou a que esta recorresse, às suas boas relações com o Malawi, para o reabastecimento dos seus meios aéreos e marítimos, ao longo de toda a costa lacustre do Niassa, do lado de Moçambique. Estas operações contaram com a intermediação de Jorge Jardim que era, inclusivamente, o cônsul português naquele país. Este aspecto foi-nos trazido por um desertor das Forças Armadas Portuguesas que, durante muito tempo, esteve ligado à logística de combustíveis.

Destacou que o abastecimento do Gazoil para as lanchas vinha grande parte do Malawi, de um ponto chamado Chipoka. Neste ponto há instalações da SONAPO, autorizadas pelo Governo do Malawi, através do Engenheiro Jorge Jardim, porque a estrada estando minada, estando já impraticável, eles já deixaram de usar a estrada Vila Cabral (Lichinga) a Metangula, Esta ligação era feita por aviões. Um Cessna e um Dornier. É nesses aviões que nós fazemos o abastecimento daquelas coisas diárias, como legumes, frescos e pequenas embalagens e também o transporte de pessoas de Vila cabral.

Lancha de desembarque

À semelhança do Niassa, na Frente de Cabo Delgado, a Luta ia progredindo com maior intensidade. Esta situação era facilitada 
pela natureza geoestratégica desta Província, com realce para a existência de mais e maiores bolsas populacionais, sabido serem vitais para as guerras de guerrilha. A grande aposta nas acções operativas consistia, igualmente, em sabotagem. Caracterizando a evolução operativa nesta Frente, Josefina Daniel traz a seguinte citação:

De entre as acções que foram realizadas durante o primeiro ano de luta armada, destacaram-sea remoção de algumas pedras,que, geralmente, se encontravam nas bermas da estrada, e também a prática da sabotagem, que consistia, em abrir uma cova, pôr capim por cima, pôr um bocadinho de areia, como se estivesse completamente tudo bem, de maneira que,quando passasse um carro, pudesse cair na cova.

Nota-se que, em 1965, a situação político-militar na Frente de Cabo Delgado era de progressos, aina que tivesse retrocedido nos finais do mesmo ano. A racionalidade desta informação é testemunhada pelas constatações comuns, das partes beligerantes e ainda de missionários , Com efeito, em Janeiro de 1965, o Presidente Samora, em alusão à melhoria do ambiente político e militar, disse: "verificam-se sucessos imensos das nossas forças, que começam a actuar com bazookas, e peças, etc. Ampliam-se as zonas libertadas.

Por sua vez, o exército colonial justificaria a Operação Águia, salientando que com ela pretendia contrariar o sucesso que se registava na Frente de cabo Delgado, porque a "situação na zona era sintetizada do seguinte modo: Existência de um inimigo numeroso, fortemente mentalizado, bem armado, sem quaisquer privações ou restrições no emprego de munições e que se habituara a actuar com relativo à-vontade na zona"

De igual modo , o bispo D. José dos Santos Garcia, caracterizou os acontecimentos do mesmo ano, sublinhando que no "mês de Março, os ataques efectuados  pelos rebeldes (guerrilheiros da FRELIMO) revelaram uma direcção inteligente e apresentam um armamento bom e eficaz"


Era este o fenómeno que incomodava o exército português, razão por que decidiu realizar operações de grande envergadura, tendo as baptizado por Águia e Limpeza. A primeira foi realizada em 2 de Julho de 1965 e, de acordo com a sua projecção, no primeiro mês teria como objectivo destruir as nossas bases. Esta operação estender-se-ia até 6 de Setembro do mesmo ano, com a finalidade de de demonstrar forças às nossas populações, situadas entre os rios Lúrio e Rovuma. A missão destruidora e, sobretudo, contrária aos direitos humanos, está reflectida na sua ordem de operações. Esta pretendia:

realizar uma nomadização contínua no tempo e tão vasta quanto possível no espaço, na área entre os rios Rovuma e Messalo e desenvolver uma actividade destinada simultaneamente a exercer uma acção de presença junto das populações, destruir os elementos a se acoitam, destruir os elementos armados que entre elas se acoitam, destruir instalações caracteristicamente terroristas, furtantp `do assim aos bandos inimigos todo o apoio por parte das populações, comprometidas ou não.

Na verdade, soubemos contrariar as estratégias do inimigo e imprimir maior ímpeto à Luta Armada, mercê do aumento de efectivos, dada a aderência de mais jovens e  de particularmente mulheres, assim como do aumento de armamento. Doravante, a principal estratégia que passámos a utilizar, no lugar de atacar e recuar de imediato, passámos a atacar e ocupar. Enquanto isso, ia-se formando mais combatentes em várias especialidades, com particular enfoque para a artilharia.

Com efeito a 8 de Outubro de 1965, partiu um grupo de camaradas para Simferopole, na URSS, tendo regressado em Maio de 1966. Incluía, entre outros, Francisco Magumbwa, Raúl Casal Ribeiro, Artur Torohate, Erasmo Mulémbwe, Xavier Siiulila, Bernabé Kajika, Rui Fino Machado, José Simango, Jaime Amansi, Rafael Maguni, Matias Juma, Raimundo Simango, Inácio Murrebo, José Humberto, Fernando Mucavele, Domingos Fondo, Vicente Mahluza Mahluza Muyambo, Amândio Chongo, João Mangona, Cândido Jesse, Tobias Sigaúque, José António Sebastião, Alfredo Simango e Ernesto Sambo. Estes camaradas regressaram especializados no manejo de armamento sofisticado, como Canhão sem recuo 75 mm, Morteiro 82 mm e Metralhadora anti-aérea 12,7 mm (DCK)

3.3.1. Surgimento das Zonas Libertadas

A criação de estruturas organizativas no interior do País resultou da decisão do I Congresso da FRELIMO, visando o envolvimento de todo o povo moçambicano na luta multiforme pella conquista da Independência Nacional. Para o efeito,o Congresso mandatou o Comité Central para realizar uma profunda reflexão a respeito da situação política, económica e social, a nível de todo o País. Seguidamente, com os resultados desta acção, desenhar-se-ia um quadro político-estratégico que foi implementado através do Departamento de Organização do Interior (DOI).

Com o conhecimento da realidade social e política, tinha-se em vista encontrar mecanismos que permitissem uma rápida mobilização das populações, tendo em consideração as especfidades de cada camada social. Neste contexto, foram identificados três grupos, nomeadamente, os camponeses, os obreiros migratórios e o proletariado urbano. O primeiro, constituía a maioria esmagadora da população, vivendo sobretudo, nas zonas rurais; o segundo representa a população negra, que tinha domicilio permanente nas zonas rurais, derivado da mesma população camponesa, mas trabalhando nas minas de ouro, carvão e, nas plantações sul-africanas, assim como nas fazendas rodesianas. O último grupo compunha-se de trabalhadores em casas particulares dos colonos brancos e asiáticos e os estivadores dos portos.

O quadro político-estratégico saído desta reflexão recomendava a consideração do grupo de camponeses, como a plataforma da Luta Armada, aspecto que, segundo o Presidente Eduardo Mondlane, era fundamentado pelos "princípios modernos da luta revolucionária no terceiro mundo, em que a organização das massas camponesas mostrou-se a mais indicada". Esta permissiva assentava, entre outras dimensões, no facto destas estarem relativamente menos expostas à observação e vigilância permanente da máquina repressiva colonial.

Ainda relativamente ao grupo de camponeses, as estratégias incluíam o estímulo da sensibilidade ou aproximação às formas sociais de organização produtiva, cooperativas e associações, como aconteceu no Planalto de Mueda, com a participação de Mzee Lázaro Jacob Nkavandame, Jeremias Namashulua, Alberto Chipande e Raimundo Pachinuapa, entre outros nacionalista. Quanto aos obreiros migratórios, refira-se que muitos moçambicanos foram estimulados pela formação políticas nacionalistas dos países vizinhos, aspecto abordado na caracterização do movimento político que antecedeu à formação da  FRELIMO. Ao nível dos proletários urbanos, ao lado dos intelectuais emergentes, o movimento nacionalista entrincheirou-se nas associações de auxílio-mútuo, nomeadamente  as de índole juvenil, cultural, desportivo e religioso, de onde surgiram vários nacionalistas, tais como, no Sul, Eduardo Mondlane, Mateus Muthemba, Francisco Sumbane e Shaffrudin Kan e, no Centro, Samuel Dlhakama, Uria Simango e Silvério Nungu.

Como se sublinha no discurso de Mondlane, "só depois de se estabelecerem as condições sociais e políticas pelo Departamento da Organização no Interior que o Comité Central decide lançar o resto os programas de acção em cada região de Moçambique, culminando com a intervenção militar contra as forças armadas e policiais dos portugueses.

Em geral, foi esta a filosofia seguida pela FRELIMO, que o DOI actuou. permitindo que houvesse uma forte adesão à nossa Luta, envolvendo diferentes camadas sociais. Nas cidades e vilas crescia o movimento da luta clandestina, desfiando a PIDE/DGD. a qual respondia cruelmente, através de prisões em massa, assassinatos  e desaparecimento de muitos concidadãos, muitos dos quais, até então, não se tem pista. DE igual modo, nas zonas rurais recrudescia o movimento nacionalista. Como realçou o Presidente Mondlane, em alusão à época:

Os jovens ingressam nas fileiras do Exército da FRELIMO, os mais velhos alistam-se  nas milícias, o resto da população participa nos programa de apoio à Luta tais como a produção agrícola, o carregamento de material de guerra, de mantimentos e medicamentos, enquanto vigiam os movimentos do inimigo em toda a região.

É no contexto da valorização das zonas rurais, em quese insere o surgimento das Zonas Libertadas ea actividade significativa do DOI. Como foi referido, a partir dos anos de 1965 e 1966, os combatentes conheceram uma grande intensidade, sobretudo devido ao uso de bazookas,. Face ao abandono progressivo dos territórios por parte das instituições sócio-económicas e administrativas coloniais, impôs-se a criação de mecanismos de retenção imediata das populações. Era preciso repôr o funcionamento normal da vida de 8 mil habitantes, sob nosso controle, em Niassa e Cabo Delgado.

Estes pressupostos estão plasmados no relatório de 1968 do Departamento de Defesa, ao Comité Central, que temos vindo a citar. Neste sentido, Samora pronunciou-se nos seguintes termos:

1965, Janeiro: Verificaram-se sucessos imensos das nossas forças que começam a actuar com base em bazookas, peças, etc...Amplas regiões são libertas . Fim de 1965: Expulsão dos portugueses fez surgir problemas de alimentos, de medicamentos e vestuário. As populações não estão preparadas para aguentar e fogem para a Tanzânia.A saíde de populações cria problemas para os guerrilheiros.

***************************+++++++++++++++++++********************************
***************************+++++++++++++++++++********************************


No seu surgimento, as Zonas Libertadas foram dirigidas pelos chairmen, expressão inglesa utilizada nas lideranças políticas tanzanianas, que significa secretário, aplicado à realidade política moçambicana. A unidade territorial sob gestão do chairmen era designada por branch, termo também importado da Tanzânia. A produção fazia-se em moldes cooperativos, em recuperação de um modelo existente antes do início da Luta, a exemplo de Liigwilanilo.

A questão das Zonas Libertadas ao nível da Frente de Cabo Delgado fora descentralizada e confiada a Lázaro Nkavandame, como Secretário da FRELIMO para esta Província. Como se pode facilmente depreender, Nkavandame tinha funções de chefe máximo dos chairmen, ao nível de Cabo Delgado, a quem deviam obediência e confiança.

Mzee Lázaro JacobNkavandame Sinamwenda

Para se fazer face às dificuldades surgidas com a saída das instituições coloniais, a Direcção da FRELIMO havia conseguido apoio do Governo de Julius Nyerere, para a colocação  de lojas na margem esquerda do rio Rovuma, sobretudo em Mtwara, Mkunya, Sindano e Songea. Praticando uma economia de escambo, a população trocava produtos como castanha de cajú, gergelim, mel, etc..., por instrumentos de trabalho, nomeadamente enxadas, limas e catanas; produtos de consumo, tais como sal e sabão, e ainda,tecidos para a confecção de vestuário.

Supunha-se que os rendimentos adquiridos fossem em benefício dos camponeses e do desenvolvimento da L. Porém, em seguimento do espírito de ambicioso, Nkavandame chamou para si estas qualidades desabonatórias para a Luta Armada, usando o produto das vendas em proveito próprio.

O ponto de intersecção entre os comandos militares e as chefias do DOI, estas organizadas em distritos, residia na operacionalização do princípio "Programa Conjunta, Execução Dispersa", uma plataforma que nos permitiu realizar várias actividades, ao nível do processo de ensino aprendizagem, promoção de cuidados de saúde, assim como de organização de toda a cadeia produtiva comercial.

É de salientar que era esta esfera  produtiva do nosso povo que alimentava a base logística dos guerrilheiros. Nós não tínhamos centros de manutenção militar, como o nosso inimigo, que usava aviões-cargueiros, camiões e comboios para a distribuição de víveres/rações de combate. Este é um dos exemplos que espelha o funcionamento das Zonas Libertadas em todas as frentes de combate e, particularmente, do 1º Sector da Frente de Cabo Delgado. De entre as Zonas Libertadas que existiam neste Sector, mais concretamente no Distrito de  Nangade, figuram Kussku, Ngalonga, Chidwadwa, Mutamba dos Makondes, Kumwalele,, Kunangade, Namatili e Chilindi.

A série de sucessos obtidos no domínio político-militar e administrativo, inspirou o Presidente Eduardo Mondlane a encontrar em 1966, fundamentos para desenhar o prognóstico do fim vitorioso da guerra. Ele não viveu os resultados do seu exercício, cujos frutos obter-se-iam 

Palavras de Ordem da FRELIMO, reflectidas na bandeira Nacional:
Combater, Produzir e Estudar


 3.3.2. Prognóstico do fim da Luta Armada de Libertação Nacional em 1966

Decorridos 2 anos do início da Luta, o prognóstico efectuado pela FRELIMO já apontava vigorosamente para o sucesso da mesma, no seu principal objectivo, alcançar a Independência Nacional. Com efeito, as palavras do seu Presidente, aquando da preparação das cerimónias de celebração do II Aniversário da Luta Armada, mostravam uma forte convicção neste sentido. Provavelmente, terá sido essa confiança, consubstanciada por  mais factores que Mondlane terá pronunciado, a célebre e histórica frase de que "posso morrer feliz porque sei que a luta continua".

O prognóstico era essencialmente corporizado por dois aspectos, os ganhos conquistados até 1966 e a correlação de forças entre os beligerantes. A análise destes elementos assentava numa série de indicadores estruturantes, sobre os quais importa discorrer. Com efeito, enquanto nos indicadores dos ganhos se enumerava a conquista da liberdade, dignidade, instrução, progresso económico e reforço da Unidade Nacional; na correlação de forças salientava-se o número e qualidade dos soldados coloniais envolvidos na guerra, assim como o contexto internacional da nossa Luta.

A liberdade e o progresso económico manifestavam-se pela existência de zonas geográficas livres da administração colonial portuguesa. Trata-se das Zonas Libertadas, onde o colonialismo não se fazia sentir, A FRELIMO já tinha colocado as suas escolas, dispensários e as populações a produzirem, a exportarem e a comercializarem os seus produtos, na outra margem  do rio Rovuma, em lojas tanzanianas, como foi referido.

De um modo geral, neste período da Luta havia crescido o espaço para a produção agrícola, relativamente ao período colonial. A máquina repressiva, constituída pelos carrascos administradores, chefes de posto e sipaios, tinha sido desenraizada de algumas povoações de Cabo Delgado. Como referiam alguns combatentes, a FRELIMO conseguira estabelecera um "Estado", mesmo durante a Luta. Os ganhos ao nível da instrução foram caracterizados pelo aumento para milhares de estudantes que se encontram nas zonas controladas pela FRELIMO, uma situação que constratava com o elevadíssimo índice de anafabetismo existente anteriormente. De igual modo, muitos jovens que tinham aceite juntar-se à FRELIMO, alguns passaram a possuir, o nível secundário e, outros, o ensino superior, mercê das bolsas oferecidas.

No domínio cultural, os dois anos de Luta tinham sido suficientes para inculcar nos combatentes e nas populações, a consciência sobre a riqueza multiétnica e a importância da valorização das tradições culturais moçambicanas, como alicerce da Luta e factor propulsor da vitória sobre o colonialismo. Operacionalizava-se, assim, o postulado laçado por Amílcar Cabral, de que a Luta Armada era "um facto cultural".

Ao nível da correlação de forças, a balança pendia mais a favor da FRELIMO. Vários explicavam esta tendência, porém, merecendo destaque as contradições no seio o inimigo, caracterizadas por três elementos:
1) Política
2) Económica
3)  Militar
Na verdade, estas contradições interligavam-se, formando um sistema, em que a solução de uma, implicava irremediável e indissoluvelmente, encontrar soluções para as outras.

Do ponto de vista político, refira-se que mesmo em Portugal existia uma forte oposição à guerra colonial. Assim, António Oliveira Salazar, a cara mais visível do sistema colonial-fascista português, tinha profundos conhecimentos, a respeito do descrédito que pairava sobre ele, no seu próprio país. Este aspecto aparece nas entrelinhas do seu primeiro balanço sobre a guerra, cujo discurso foi proferido a 18 de Fevereiro de 1965. portanto um ano antes do balanço do Presidente Mondlane.

A nível interno, Salazar suavizava o destacamento popular e no contexto mundial, minimizava a condenação das Nações Unidas, face à recusa em conceder independência às suas colónias, afirmando que com o desenrolar da guerra, o Ocidente tinha passado a ter uma opinião favorável a Portugal. Em relação ao Ultramar, levantava dois pontos, por um lado, que as independências eram uma preocupação somente das minorias nos povos africanos e, por outro lado, que aos quatro anos de guerra, em Angola e Moçambique, teriam conduzido à moderação de atitudes nas acções dos africanos. Era exactamente o contrário, o fervor da guerra tinha galvanizado a todos os povos em luta pelas independências e, a nossa violência armada soterrava cada vez mais a dita moderação. Eis o excerto do infeliz discurso de Salazar.

Vamos em quatro anos de luta e ganhou-se alguma coisa com o dinheiro do povo, o sangue dos soldados, as lágrimas das mães?. Pois atrevo-me a dizer que sim. No plano internacional (...) acabaram muitos dos homens mais responsáveis por vir a reconhecer que Portugal se bate afinal não só por afirmar um direito seu, mas (...) em todo o caso, as dificuldades que a independência tão ambicionadapor poucos, trouxe a todos os mais e os dirigentes não sabem ainda  como resolver. Assim, bastantes povos africanos nos parecem mais compreensíveis das realidades e mais moderados de atitudes.

A miopia do Profº Doutor António de Oliveira Salazar, ao que nos parece, mais estratégica do que real, deturpava profundamente as suas contas sobre o fim da colonização portuguesa em África (incluindo Moçambique). As contas indicavam um resultado estimado entre Quatrocentos e Quinhentos anos, contrariamente aos cerca de sete anos que faltavam, por volta de 1968. Tendo classificado esta visão de impossível e de recusa autista da realidade. Sérgio Vieira traz o segguinte depoimento: "Conta Franco Nogueira que nas conversas íntimas com Salazar, este previa que dentro de Quatrocentos ou Quinhentos anos os nossos países estariam talvez prontos para uma independência!

Economicamente, a guerra colonial era insustentável para Portugal, pois, com os parcos recursoa de que dispunha, estando na cauda da economia europeia e a reboque dos investimentos ocultos da OTAN, não estava em condições de suportar o conflito militar, simultaneamente, nas suas três colónias, isto é, em Moçambique, Angola e Guiné-Bissau. Por exemplo, de Janeiro a Maio de 1967, Portugal despendeu em Moçambique 7.500.000 Libras. Relativamente aos aspectos puramente militares, Portugal deparava-se com dois obstáculos. O primeiro, referente à dimensão territorial do inimigo (Moçambique e Angola) face ao desdobramento dos seus efectivos e, o segubdo, ao envolvimento de soldados moçambicanos no Exército Colonial.

O primeiro obstáculo explica-se pelo facto de Angola ser 14 vezes maior que Portugal e Moçambique, 8 vezes, o que implicava empregar os poucos efectivos de que dispunha "numa linha de frente muito ampla" aspecto tecnicamente inviável. Assim, de acordo ainda com o Presidente Mondlanee, para o regime colonial cobrir todo o território de Moçambique, tinha de:

a) ... conservar muitos soldados nas cidades, e só uma parte pode (podia) ser enviada para as zonas de combate.                                                                                                                                      b) Desses soldados para as zonas de luta, uma parte importante foi liquidada pelos combatentes da FRELIMO, mais de 3.000 de 1964 a Setembro de 1966.                                                                  c) Outra parte tinha de fazer o serviço de guarnição, defendendo os postos militares e administrativos.

Quanto ao envolvimento dos soldados moçambicanos, é de realçar que eles estavam em cumprimento do serviço militar obrigatório e a lutar contra a sua própria libertação do jugo colonial. Devido a esta situação, não se sentiam motivados e nem comprometidos com a causa da guerra a que estavam metidos. Como se refere na mensagem que temos vindo a citar:

Eles... não queriam lutar contra o seu próprio povo, contra os seus pais, os seus irmãos, os seus filhos. Eles não podem porque são MOÇAMBICANOS, filhos de Moçambique. Portanto, logo que encontrarem uma oportunidade, hão-de desertar e juntar-se às forças de Libertação da FRELIMO. Já desertaram cerca de 150 de 1964 a Setembro de 1966.

Partida de um contingente militar Português para Moçambique.


Hino da Frente de Libertação de Moçambique

"FRELIMO vencerá, FRELIMO ganhará                                                                                            Na luta pela Liberdade, FRELIMO  triunfará.

Moçambique vencerá, Moçambique ganhará
Na luta pela Liberdade, Moçambique vencerá.

África vencerá, África ganhará
Na luta pela Liberdade, África triunfará.

Europa invejosa, concebeu mau talento
Subjugando África inteira a escravizá-la"

Simão Tibúrcio Victor Lindolondolo, autor do Hino


Bandeira da Frente de Libertação de Moçambique


4. Minha contribuição em Niassa e Masasi

O meu contributo para o sucesso da Luta Armada de Libertação de Nacional aconteceu à luz da decisão tomada em  1965, visando  contrariar a ordem política-administrativa então vigente, a colonização. Com efeito, operei na Frente do Niassa (1966-1968) e em Masasi (1969-1971), expondo a minha juventude à guerra.
A minha contribuição consistia em servir o povo o povo moçambicano e a Pátria Amada, característica que ainda hoje me acompanha. O marco indelével da operacionalização deste desiderato reside na operação que comandei no ataque e assalto ao Quartel de    Omar, a 1 de Agosto de 1974. Refira-se que esta data coincide com a pernoita neste local, a 1 de Agosto de 1964, do primeiro grupo de guerrilheiros, aquando da preparação do início daLuta Armada , em Cabo Delgado.

 4.1. Frente do Niassa  ( 1966-1968)

Uma vez iniciada a Luta, em 1964, foram realizadas campanhas massivas de sensibilização das populações para se juntarem à FRELIMO. De igual modo, procedeu-se ao aumento de efectivos. É de notar que esta Frente passou a ter um comando militar quando,  em Março de 1965, se juntou ao grupo do início da Luta, o primeiro contingente dos 70 guerrilheiros, acompanhados por Filipe Samuel Magaia, Chefe do DDS e Samora Moisés Machel, responsável do Campo de Instrução Militar de Kongwa. O " Grupo 70" integrava, entre outros quadros, José Moiano e Sebastião Marcos Mabote.

O novo comando formado em Chiwindi, na fronteira entre Moçambique e Tanzânia, foi chefiada por Oswaldo Tazama e António da Silva, este, como Chefe de Operações. Faziam parte do comando José Moiano (Adjunto-Chefe de Operações e Chefe de Sabotagem) , Sebastião Mabote (Comissário Político), Jaime Dique ( Comissário-Político- Adjunto) e José Fernando Anapulula (Chefe de Material).

O segundo contingente que foi reforçar a Frente Niassa chegou em 1966 e era constituído pelo 1º Batalhão treinado em Nachingwea, o qual, por fim dos treinos fora dividido em três companhias. Eram comandadas, a primeira, por Matias Victor, a segunda, Mateus Aníbal Malichocho, e a terceiro, por Joaquim Mtamanga. As companhias foram ocupar a região Austral, a Base Mepochi e a região Oriental, respectivamente. Langa refere que, com a chegada deste grupo, intensificaram-se as operações de guerrilha, através do desencadeamento de várias acções militares, como sabotagens, emboscadas, ataques aos aquartelamentos coloniais, resultando em baixas humanas, destruição de equipamento e infra-estruturas militares portuguesas.

O terceiro contingente afecto à Frente Niassa chegou em Junho de 1966. Foi o 2º Batalhão, que deu lugar à formação de três companhias, comandadas por Lino Abrão, a primeira, por Eduardo Silva (também conhecido por Mtoto, que significa baixinho), a segunda, e Francisco Orlando Magumbwa, a terceira..

Eu fazia parte da 2ª Companhia, que tinha Alfredo Maria Manuel, como Comissário Político e Casimiro Chenjerani, Vice-Comissário Político. Nesta companhia, eu pertencia ao 2º Pelotão, comandado por Feito Tudo, tendo sido Vice-Comandante Xavier Laquimane. Integrava ainda, Agostinho Lagos Henriques Lidimu (Secretário), Benjamim Ervas Ndingwekwe (Chefe de  Armazém) e Pascoal José Dimaka.

Desempenhei as funções de Chefe da 2ª Secção, de 1966 a 1968, tendo passado este período todo sem nunca ficar de sentinela. As razões disto prendem-se com o facto de ter treinado como chefe de secção, que por natureza, tem sob o seu comando 12 homens. Portanto.cheguei a esta companhia, realmente como chefe.

Refira-se que, nesta Companhia, existia um grupo formado por 12 jovens coeses, vindos do Instituto Moçambicano, conhecidos por "os 12 makondinhos", distribuídos por 4, para cada Pelotão. Este grupo era formado por mim, cujo nome de guerra era Salvador, Agostinho Lagos Henriques Lidimu, Benjamim Ervas Ndingwekwe, Pascoal José Dimaka, Estevâo José Dimaka, Vicente José Makala, Tadeu Lucas Likaunga, Krispin Anúncio Kilian, Marcos Diabo Mwashimwamba,  Lázaro Quente Chambal, Tadeu Judas Martins e Bernardino Castigo Gregório Anaiva.
Os nomes a vermelho eram, igualmente, de guerra.

Quando chegámos ao Niassa, enfrentámos um ambiente de guerra bastante complexo, com extensas guerras não povoadas, aspecto que concorria para o aumento dos desafios estratégicos. O Presidente Mondlane tinha plena consciência da situação com que a nossa Frente deparava, tendo apelado para a entrega dos guerrilheiros nas operações combativas e promoção da consciência patriótica colectiva.

Relativamente a esta matéria, na mensagem alusiva à preparação das cerimónias de comemoração do II Aniversário do início da Luta Armada, Mondlane chamou a atenção para que o apoio externo prestado por países amigos fosse respeitado, mas que em nenhum momento devesse dispensar o envolvimento dos moçambicanos Trazendo, inclusive, o exemplo da luta do povo do Vietname, para inspirar os guerrilheiros moçambicanos, teceu as seguintes considerações:

Por consequência é necessário que o povo moçambicano se prepare para a luta epara o sacrifício e se organize contra os colonialistas portugueses. Não devemos esquecer nunca que apesar de todo o apoio moral e material que recebemos dos países que estão de acordo com a nossa causa, nós Moçambicanos temos a responsabilidade principal de lutar até à vitória final. A responsabilidade é nossa. Devemos aprender do heróico povo vietnamita que, com muito poucos recursos materias, foi capaz de ganhar a guerra contra uma das 5 maiores potências do mundo- a França. E hoje mesmo lutam com êxito contra a maior potência militar os- Estados Unidos da América do Norte.

No que tange à Unidade Nacional, assumida como uma plataforma para o sucesso da luta, a FRELIMO destacou alguns desafios, focalizando a superação dos conflitos inter-étnocos, o respeito pela diversidade etnolinguística do País, ou seja, a valorização do nosso entreposto cultural. Mondlne dirigiu-se nos seguintes termos:

Para podermos obter a vitória final é necessário que nos unamos sob a bandeira multicolor da Frelimo. É preciso que todos os moçambicanos se esqueçam de todas ou diferenças  que possam existir entre eles. O Zambeziano deve cerrar fileiras com o gazense, o beirense com o maconde, oajau com o inhambanhe.etc... para qu do rio Rovuma ao rio Maputo haja só um povo - o povo moçambicano. Derivemos das contribuições espirituais das nossas várias tradições religiosa  - maometanas, cristã, animista etc..., a coragem moral necessária para suportar os sofrimentos para que somos destinados nos próximos anos de Luta Armada pela Libertação Nacional. Ponhamos de lado  todos os tribalismos, racistas, regionalismos e tudo aquilo que nos possa dividir.

Na verdade, deparei com condições agrestes na Frente do Niassa, as quais ficaram gravadas na minha memória. Daqui para a frente, a minha personalidade viria a conhecer novas características, ditadas por uma vida militar cheia de episódios, experiências, às vezes, envoltas em ambientes de perigo. Assim, gostaria de partilhar  seis acontecimentos marcantes  vividos pessoalmente.

Primeiro acontecimento:

O grandes desafios começaram durante a marcha que nos levou à Frente do Niassa. Refira-se que o equipamento do guerrilheiro, era constituído por uma arma AKM de 7,62m, 5 carregadores de 30 cartuchos cada, no total 150 munições, RPG -7 40mm, SKS7 7,62 mm e pistola Makarov, granada de mão ofensiva e defensiva,, 1 manta impermeável que servia de mochila e de tenda em caso de queda de chuva, 1 par de botas russas, 1 marmita, 1 cantil, 4 latas de conserva (canned beef), 1 kG de arroz. O seu peso total era cerca de 30 Kgs. Tendo em conta a nossa idade, muito jovens, tínhamos dificuldades de suportar a carga durante a marcha. Saímos de Nachingwea até Chamba (Tanzânia), acompanhados por  Uria Simango, Vice Presidente da Frelimo, para confirmar a entrada da nossa Companhia no interior de Moçambique. No dia seguinte, ao atravessarmos o rio Rovuma, pelas 6 horas da manhã, caímos numa emboscada feita pela tropa colonial portuguesa, ida de Nova Olivença (Lupichili), no Niassa. O camarada  Manuel Manjich, da etnia yao e que na altura não falava a língua portuguesa, reagindo ao cansaço, balbuciou, dizendo , em yao "Une kumbuateka makongolo". que significa "eu sinto dores nas perna". Esta foi a primeira frase que aprendi a falar na língua yao.
Marcha da 2ª Companhia do 2º Batalhão, a caminho da Frente do Niassa Oriental,
partindo de Chamba - Tanzânia

Segundo acontecimento:

Na sequência da marcha, quando chegámos à base de Msangula (Metangula), pernoitámos.
No dia seguinte eu e o Lagos Lidimu acompanhámos Alfredo Maria Manuel, Comissário Político da Companhia, para pedir víveres junto à população, com visto a alimentar os guerrilheiros. Uma parte dos guerrilheiros foi ao rio lavar a roupa e tomar banho. Na circunstância, foi atacada pela infantaria do inimigo. Em consequência desse ataque, o camarada Krispin Kilian ficou ferido no braço esquerdo. Em contra - ataque, o camarada Estevâo José Dimaka, Chefe de Secção, alvejou alguns soldados portugueses. Em fuga precipitada, estes deixaram uma arma G-3, o que se constituiu no primeiro troféu de guerra da nossa Companhia.


Contorcendo-se com dores, o alvejado, Kilian, lançava enormes gritos, pronunciando palavras como: "Ajala nangu Kupela, leka ngumanyite, angunaide ku-ing ondo" que significa "i mãe, estou morrendo, se eu soubesse, não teria vindo à guerra". Nós, grupo dos "12 makondinhos", aconselhando-o dizíamos: "cala-te, na guerra morre-se e pode-se ficar ferido". este combatente foi enviado para tratamento na Tanzânia, onde viria a melhorar e mais tarde ficou instrutor do CPPM - Nachingwea.

Terceiro acontecimento:

Estando na Base "Fornalha Ardente", sede da 2ª Companhia, por volta das 6 horas da manhã, fomos surpreendidos por um bombardeamento aéreo de um par de aviões Harvard T-6. Em reacção, uma das nossas 
dotações de defesa ant-aérea 12,7 mm 
DCK, chefiada por António Chikusa, abateu um dos aviões. Aaeronave incendiou-se e os dois pilotos ficaram carbonizados. Analisadas as fotos encontradas no local, soubemos que um dos pilotos, ido de Portugal, tinha contraído matrimónio. um mês antes desta missão factídica.

Quarto acontecimento:

Um dia, o meu pelotão, juntamente com o terceiro, foram destacados para uma operação que consistiria no ataque ao acampamento da "Cantina António". Chegados às proximidades do local, ocupámos as posições, aguardando pelo amanhecer, altura prevista para a concretização do objectivo da missão. Só que, de repente, o 3º pelotão, que estava no flanco esquerdo, levantou-se e feza retirada em debandada. Em face deste acontecimento, o 2º pelotão procedeu da mesma fotma, apesar de não ter entendido os motivos do procedimento daquele pelotão. Drante o recuo, mais uma vez, suportámos o peso de toda a carga do material que levávamos, para empregá-lo no ataque ao acampamento do inimigo, nomeadamente, os obuses de Morteiro - 82 mm e Canhão sem recuo B-10-82 mm. Chegámos a uma machamba pertencente às populações que viviam sob a protecção do inimigo. onde, esfomeados, desfrutámos das maçarocas e da cana-de-açúcar. Regressados à base regional, fomos acusados de culpados pelo recuo e roubo de produtos da machamba. A decisão da nossa chefia tinha sido de chamboqueamento do grupo. Reagindo contra esta medida, combinámos que em caso de sua aplicação, iríamos abrir fogo contra a chefia e a seguir, suicidarmo-nos. Quem salvou esta situação? O camarada Fernando Mungaka, que fazia parte da chefia, foi o nosso defensor, pois argumentou que não tínhamos alguma culpa porque, por um lado, não éramos os comandantes da operação e, por outro, os produtos tinham sido retirados de uma machamba de pessoas que conviviam com o inimigo, o que significava que eram seus apoiantes.

Fernando Mungaka

Quinto acontecimento:

Ainda no Niassa, na qualidade da 2ª Secção, do 7º Pelotão, da 2ª Companhia, do 2º Batalhão, recebi a missão de ocupar uma posição dianteira para garantir a segurança da Companhia.Acontece que, passados os 7 dias previstos para uma rendição, os nossos camaradas não compareceram. Esta situação levou ao descontentamento dos elementos da Secção, que se recusaram a ficar de sentinela, alegando terem cumprido a sua missão. Enquanto isso, à noite, os soldados portugueses atravessaram o rio Lugenda e passaram muito próximo do local onde nos encontrávamos, cerca de 10 metros. Ouvimos o barulho dos seus passos, porém, eles não se perceberam da nossa presença. Mantivémo-nos no local até às 12 horas, altura em que a tropa habitualmente almoçava. Aproveitámos essa oportunidade para nos retirarmos, atravessamos o cinturão de soldados, sob a forma rectangular. Infelizmente, caímos numa emboscada, em que perdi 5 camaradas, tendo 3 conseguindo furá-la. Juntamente com 3 camaradas, furei, igualmente, a emboscada e a seguir instalámos-nos junto a um riacho sem água, como abrigo natural. Aqui tive que dividir por 4, as 2 maçarocas que trazia. Foi o nosso jantar!

No dia seguinte, conseguimos regressar à base. A primeira coisa que quis saber foi do paradeiro do meu amigo de infância. Lagos Indimu. Fui informado que este havia saído para confirmar o meu óbito, pois o camarada que passou a informação sobre a emboscada dissera que ele tinha sido o único sobrevivente. Lagos possuía elementos suficientes para identificar o meu corpo, porque iria recorrer ao defeito que tenho no dedo polegar esquerdo, resultado de um incidente, em brincadeira de infância

General do Exército, Agostinho Henriques Lidimu (Lagos)
O grupo que Lagos integrava era chefiado por Casimiro Chenjerani, Vice-Comissário Político. Já no local onde ocorreu a emboscada, Lagos fora colocado de  sentinela, enquanto se abria a cova para o enterro dos dos parecidos. Um deles tinha sido minado, tendo explodido, logo que o mexeram, levando à morte de Casimiro Chenjerani, do régulo Tchande e mais dois elementos da população. A forte explosão chamou-nos a atenção. De seguida, chegou um camarada, que também nos informou que todos os guerrilheiros tinham morrido, sendo ele o único sobrevivente! 
Era a minha vez de me preocupar com o meu amigo Lagos, ao que seguidamente saí para confirmar o seu óbito. Este ainda estava na mata, quando de repente nos encontrámos, porém, cada um a pensar que se tinha deparado com um fantasma! Para tirar a sua dúvida, Lagos fez um grito, chamando pelo meu nome, Salvador! Apercebi-me, pela voz que era ele, ao que respondi: Lagos! Abraçámo-nos, deitando lágrimas.  

Sexto acontecimento:

Rafael Mbaki e o seu adjunto, João Nyumbele receberam no último trimestre de 1972, a missão de atacar uma posição colonial em Ntora, a sul de Negomano. Nesta operação, Nyumbele perdeu um dos dedos do pé direito. Depois de curado, foi nomeado Comissário Político do Distrito de Ngapa (Mocímboa do Rovuma). Na formatura, com vista à mobilização dos guerrilheiros para a guerra, fazia  questão de exibir o pé direito, como um exemplo de bravura a ser seguido. Pronunciava-se nos seguintes termos: 
"Eu não temo o inimigo. Quando vou ao combate e quando zango corto um dedo e deixo no campo da batalha".
Na verdade, os homens de coragem carregam consigo "cicatrizes de história". Nyumbele fez o que acreditava necessário, pelo seu povo e, acima de tudo, pela construção do nosso País.


****************************************-------------------******************************

Valentina Faquirá, minha esposa, foi a primeira artilheira da FRELIMO, no manuseamento de Morteiro 82mm. Partilhou comigo memórias interessantes passadas por ela, ainda estudante do Centro Educacional de Tunduru, na Tanzânia. Neste centro, teve como colegas, entre outras, Maria Nantamanga, Florentina Madebe, Joana Nacheque e Graça Mselela.Na altura o, o chefe do Centro era Lamberto Laisse.

A respeito das memórias, Valentina, narrou o seguinte:

Primeiro acontecimento:

Um dia fomos destacadas para o carregamento de material de guerra para a Província do Niassa (Niassa Ocidental). Atravessámos atravessámos o rio Rovuma, a caminho do interior de Moçambique, mais concretamente Mitomoni. 
Devo confessar que não se tratava de uma viagem fácil, pois implicava marchas de 6 a 7 dias, intercaladas por pequenos momentos de repouso. Passávamos tanta fome e, às vezes, eu recorria à gola da camisa para consumir o meu próprio suor. Como me dava a sensação de salgado, eu divertia-me com ela, ora tirando os nervos, ora como forma de mata a fome. Por falar em fome, ocasiões houve em que metíamos arroz, sal e açúcar nos bolsos, como merenda para suportar as longas caminhadas. 
Quando atravessássemos riachos ou pântanos, o arroz ficava humedecido e misturava-se com o sal e o açúcar.
Quando chegasse a ordem de descanso, nós tínhamos a comida "pronta" para a refeição e assim aguentarmos a retomada das longas marchas.
Valentina Faquirá; em primeiro plano; Maria Namwedi; Armando Abel Assikala e 
uma criança órfã, na sede do Distrito de Nangade, em 1972

Segundo acontecimento:

Numa dessas vezes que carregávamos material de guerra para o interior, na companhia de Maria Nantamanga, entre  tantos camaradas, passámos por um sítio onde uma leoa estava rodeada pelas sus crias, Nós nunca tínhamos visto leões tão pequenos, por isso confundimo-nos com gatos. Assim, quando mais próximos estávamos dos leões, deixámos o material no chão e decidimos ir ter com eles, a fim de recolher alguns "gatinhos". Ao ensaiarmos os primeiros passos, eis que um dos nossos chefes nos interrompe, dizendo que s tratava de leões e que corríamos sérios riscos de sermos atacadas. Já adulta e, pensando neste episódio, passei a acreditar no ditado segundo o qual "Deus protege a incência infantil".

Terceiro acontecimento:

Lembro-me de um colega muçulmano, bastante irrequieto, se calhar como eu, naquela idade. Depois do descarregamento do material e do regresso à Tanzânia, calhamos com a enchente de um rio e não pudemos atravessar todos nós, sobretudo porque era tarde. Tivemos que pernoitar naquela margem. Os nossos chefes fizeram questão de nos chamar atenção para não fazermos barulho, porque se tratava de uma zona do inimigo, que presumivelmente estivesse por  perto, para nos emboscar. Na manhã do dia seguinte, um camarada nosso, Dikson Ntuwqa, devido ao cansaço e, sobretudo, à fome, começou a gritar, repetidamente, pedindo às pessoas que estavam na outra margem para que trouxessem a canoa, em Yao, "jiche Mutolole" ou seja, vinde buscar-nos.
Como ele não estivesse a acatar a orientação para o silêncio, colocando-nos em perigo iminente, rapidamente, um dos colegas, conhecido por  Chakumasonha (Coisa de Masonha, palavra que em Shimakonde significa nome do rio que atravessava o Centro de Tunduru), ameaçou e assim deixou de gritar.

Os depoimentos da Valentina revestem-se de particular importância, porque demonstram o engajamento da mulher moçambicana  que, ao lado de homens, suportou várias adversidades da Luta. Nesse sentido, é mister reconhecer que a Independência fpo conquistada com sangue, suor e lágrimas. Difícil, mas fascinante, é a lição de Valentina: quando estão em causa os superiores interesses de um povo, não há estrabismos algum de  géneros. Éramos todos chamados a defendera causa da Nação que queríamos erguer,
 Atanásio Mtumuke, Valentina Faquirá e Bernardino Anaiva, 1974

Valentina Faquirá, na Frente do Niassa Oriental. 1972

Rafael Rohomoja

Infantário de Nangade, 1972

4.2. Participação no distrito de Masasi (1969 - 1971)

A minha função no Distrito de Masasi era a de representar o Departamento de Defesa,. A afectação nesta representação explica-se pela deserção do meu antecessor, Daniel Rafael, levando consigo a esposa do camarada Nkimbizii, assim como valores monetários e outros bens desta instituição. A representação de Masasi estava situada no distrito tanzaniano,do mesmo nome, pertencente à Província de Mtwara.

Refira-se que, grosso modo, o material de guerra de que dispúnhamos ia crescendo ao longo do tempo, quantitativa e qualitativamente. Os nossos principais parceiros no fornecimento de armamento foram a Tanzânia e a Argélia, no início e, depois a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URRS), a República Popular da China, a Checoslováquia, entre outros. A parceria com os países nórdicos estava direccionada, sobretudo, para materiais não letais.

As armas recebidas inicialmente foram Matt 49, Mas 36, Thomson, Mauser, pistolas Garam, Papecha, Bazookas, AKM 47; RPG - 7 e RPG - 2, em exposição, no Museu de Chai (MUCHAI).


Armas expostas no Museu de Chai, Cabo Delgado

As primeira rotas de distribuição de material, desde a chegada à Tanzânia e seu transporte pelo interior de Moçambique, obedeciam a vários pontos. Uma vez chegados aos portos da Tanzânia, passava, como é óbvio, por um processo de desalfandegamento. Neste processo, os nossos serviços administrativos entravam em acção, em alinhamento com os serviços migratórios e militares tanzanianos. De entre os combatentes que se distinguiram na logística,  figuram Felisberto Vanchalangue e  Fernando Juma. Este último granjeou a confiança do Presidente Samora Machel, pela sua dedicação a este trabalho de grande responsabilidade.

Por razões de segurança o material saia à noite de Nachingwea, para as representações do Departamento de Defesa, nomeadamente, Songea e Mkunya, transportado em camiões pertencentes à empresa Tanganyika Transport Company (TTC), vulgo "TEETEEKO). A seguir usando camiões nossos, como ZIL-130, procedia-se à sua redistribuição pelos armazéns existentes ao longo da bacia do Rovuma, a partir dos quais, se fazia uma nova distribuição no interior de Moçambique.

A representação de Masasi tinha sob seu controle, duas sub-representações, nomeadamente, Sindano e Lukwika (nome local e montanha e conhecida por Kisule, em Moçambique), como principais pontos de travessia da Tanzânia para o interior do nosso país e vice-versa. Enquanto a primeira era chefiada por Félix Muasimwamba, a segunda, chefiada por Rafael Mbaki. A partir de Sindano, o material passava pelo Destacamento Limpopo (de segurança), e seguia até à Base Beira, que abastecia o 1º Sector. O outro  era transportado até à Base Central, que por sua vez, tinha a responsabilidade de abastecer os restantes sectores. Quanto à sub-representação de Lukwika,  esta cabia encaminhar o material para os destacamentos de Nacala e Balama.

Relativamente ao material escolar, refira-se que este depositava-se na Base Beira, donde seguia para o Centro Piloto de Maguiguana.
No  que  tange aos víveres, estes saíam, igualmente, da Base Beira para os destacamentos Nacala e Balama. Face à longa distância percorrida até ao destino, somente cerca de metade dos mantimentos chegava a estes locais, pois, devido à fome, os membros do Destacamento Feminino e a população que os transportava, viam-se na contingência  de consumi-los durante o trajecto de ida e volta, durante uma semana.

Guerrilheiros atravessando o rio Rovuma, utilizando um barco pneumático.

Camião ZIL 130, descarregando material em Lukwika (Kisulu), naTanzânia

Guerrilheiros transportando material de guerra, na frente de Cabo Delgado.

****************************************-------------------******************************

Ao nos receber no seu território, a Tanzânia tinha a plena consciência de que tal representaria, como se disse, um enorme sacrifício para o seu governo e para seu povo. De facto, como uma independência de menos de uma ano de vida,este país acolheu, além da FRELIMO, a outros movimentos de libertação, sobretudo para treinamento militar, nomeadamente, o MPLA,o ANC da África do Sul,  A South West Africa Peoples Organization (SWAPO) da Namíbia e a Zimbabwe African Peoples Union (ZAPU). Estes movimentos estavam sob auspícios do Secretariado Executivo do Comité de Libertação de África, sediado na Tanzânia e tinha como representante o Major Ashim Mbita, mais tarde promovido a General.

De igual forma, desdobrou-se junto das comunidades tanzanianas transfronteiriças com o nosso país, para explicá-las sobre o sentido da luta do povo moçambicano. Esta intervenção resultou num apoio  desiteressado por parte das populações tanzanianas. Alguns pescadores facilitavam sobremaneira o processo de travessia de armamento, cedendo as suas canoas. Muitos camponeses de regiões como Mkunya, Sindano e Lukwika, disponibilizaram terrenos para habitação e campos agrícolas. Era a partir da produção agrícola que os camponeses obtinham recursos para a sua sobrevivência naquele país irmão.

A propósito do acolhimento dos moçambicanos, um cidadão tanzaniano de nome Abdul (entrevistado em Lukwika) a 19-11-2018) de 48 anos de idade, conta que não viveu directamente o calor da guerra, devido à sua tenra idade, na altura. Contudo, presou um depoimento interessante, socorrendo-se da memória popular e das aulas de História, leccionadas no seu país. Referiu que à região de Lukwika chegaram muitos moçambicanos, sem qualquer documento de identificação. Porém, em reconhecimento da sua situação de refugiados, os tanzanianos os recebiam nas suas residências de serem familiares. 
Chiabo Bachir, de 81 anos, entrevistado em Mtwara, sublinhou o seu envolvimento no acolhimento de moçambicanos, em que algumas reuniões organizacionais contaram com a participação de altos dirigentes tanzanianos, como Rachid Kawawa, Vice- Presidente da Tanzânia.

Devido a esta série de apoios , a partir de 1967, a Tanzânia veria algumas infraestruturas sistematicamente sabotadas, como o porto de Mtwara, por ocasiões combinadas entre as forças portuguesas, sul-africanas e rodesianas e, ainda ataques aéreos a locais situados ao longo da bacia do rio Rovuma, como Mkunya, Newala e Masasi e, outros relativamente distantes, como Rufiji. As populações dos arredores da cidade de Mtwara, assim como de Sindano e Lukwika, têm na sua memória a construção de abrigos anti-aéreos, para se defenderem dos ataques da aviação colonial portuguesa. Algumas pessoas ainda see recordam do seu envolvimento em acções de vigilância, face à infiltração do inimigo, que atravessava o rio Rovuma para o seu país.

5. Operação Nó Górdio

5.1. fundamentos Político. estratégicos da Operação

Nos finais da década de 1960, não obstante os avanços militares, as contradições no seio da FRELIMO tinham atingido níveis preocupantes. tendo se traduzido em assassinatos e deserções. Com efeito. a 9 de Maio de 1968, nos escritórios da Frelimo, em Dar-es-Salaam, foi selvaticamente agredido Mateus Sansão Muthemba, vindo a morrer a 9 de Junho do mesmo ano. Já no fim desse ano, a 22 de Dezembro, foi assassinado Paulo Samuel Kankhomba, na região de Mkunya, território tanzaniano junto ao rio Rovuma, quando este se preparava para entrar em Moçambique.

No início do ano seguinte, a 3 de Fevereiro de 1969, morreu também por assassinato, o Presidente Eduardo Mondlane, em Dar-es-Salaa.
Após a morte de Mondlane, Lázaro  Nkavandame, um dos dirigentes da FRELIMO, desertou, a 16 de Março, entregando-se ao regime colonial português, na companhia de 14 seguidores seus, entre chairmen e milicianos. Este acontecimento foi anunciado dias depois, a 3 de Abril de 1969. o Padre Matias Gwendjere viria, igualmente, a desertar, passado algum tempo.

Padre Matias Gwendjere
Compulsando estes factos, em desfavor da FRELIMO, e concordando com António Augusto dos Santos, as autoridades portuguesas fizeram um "mau estudo",, na avaliação da situação político-militar vigente. Portugal concluiu que a FRELIMO  estava de tal modo debilitada política, moral e militarmente, a ponto de que uma operação do tipo Nó Górdio, iria retirar-lhe da desvantagem  em que se encontrava. Foram estes os fundamentos políticos em que assentou a concepção da Operação.

No seio dos guerrilheiros da FRELIMO, o conhecimento  sobre o Nó Górdio chegou por volta dos finais de 1969 e início de 1970, apesar de algumas fontes se referirem aos anos de 67/68. Foi, na verdade, a 8 de Abril de 1970, que os preparativos desta operação tiveram lugar, sucedidos pela tomada de posse de Kaúlza Oliveira de Arriaga, como Comandante-Chefe de Moçambique, a 31 de Março de 1970. Os guerrilheiros aperceberam-se de alguns sinais  substantivos da sua preparação , através dos mídia,  das denúncias de um desertor do exército colonial, da calmia nas intervenções militares, a qual suscitou dúvidas e, por último, os alertas feitos pela Direcção da FRELIMO.

A respeito dos mídia, Amândio Chongo referiu que:

(...) muitos de nós, cada um de nós, quase todos os comandantes escutavam rádio, nós acompanhávamos a rádio, essa emissora de Lisboa, essa emissora de Lourenco Marques,  e ouvíamos que o tipo de trabalho que se iria realizar na parte do governo português era um trabalho de grande envergadura.

No dia 10 de Junho, Arriaga organizou, na cidade de Lourenço Marques, uma cerimónia com a participação das forças especiais que iriam ser incorporados na Operação Nó Górdio. A concordar com Martelo, esta era uma tentativa de dar o "cheiro" da guerra à população desta cidade e de auto-promoção. A mesma fonte acrescenta que "a cerimónia teve uma ampla cobertura da comunicação social não só de Moçambique, como ainda da Rodésia (Zimbabué) e 
da África do Sul.

Quanto às denúncias do desertor português, este destacou a abertura de uma grande pista em direcção às nossas bases e a existência de um Quartel de Engenharia de Assaltos; uma companhia de Cães de Guerra, duas Companhias de Comandos e três companhias de Grupos Especiais. Miguel Ambrósio Makwadju, que era o Comandante da Base Beira, revelou que notou movimentações estranhas da força aérea colonial, tendo passado esta informação ao camarada Cândido Mondlane, então Chefe Provincial do Departamento de Defesa de Cabo Delgado, que, por sua vez, fez chegar o alerta à Direcção da FRELIMO. Na mesma linha, Virgílio Minga referiu que este desertor foi encaminhado para Nachinngwea, a mando de SamoraMachel, onde, provavelmente, terá feito mais revelações de vulto.

No que concerne à acalmia, o Presidente Samora Machel, que se encontrava de visita à Litapata, em Cabo Delgado, em Março de 1970, exortou os guerrilheiros, dirigindo-lhes a seguinte mensagem:

Há que reverem a situação, porque o inimigo está a preparar alguma coisa, um inimigo não pode estar quieto! Porque o silêncio do inimigo significa muita coisa, não podemos dormir quando o inimigo nos faz dormir; ser embalado pelo inimigo significa muita coisa(...) cuidado! Fala-se de um general, esse general que está aqui; treinou em grandes  escolas militares, é preciso ter atenção!

5.2. Operações Doninha; Dureza e Rodovia

Em Junho de 1972 iniciou a fase preliminar da Operação Nó Górdio, a qual consistiu no "penteamento" da parte onde se localizavam as principais bases da FRELIMO, designadamente, Moçambique, Ngungunhane e Nampula, através da abertura de picadas e derrube de árvores, com o intuito de cortar o cordão umbilical que nos ligava as estas bases.

A tropa colonial realizou primeiro, a Operação Doninha, que culminou com o ataque à Base Beira, a 1 de Junho, capturando o Destacamento Limpopo e, no mesmo dia, efectuou as operações Dureza e Rodovia. Relativamente a este assunto, Nalyambipano refere que Nkavandame, que era fugitivo desde o ano anterior, foi traidor neste processo, por ter mostrado o esconderijo do material ao inimigo.
 
A respeito do ataque à Base Beira , Makwadju afirmou que a sua posição apercebeu-se das movimentações do inimigo, pelo que preparou-se para a reacção. Referiu que, um dos carros em que estavam os soldados inimigos progrediu na zona de Chicalanga até à de Shilamalilamedi, onde tinham estabelecido um grande acampamento, que o chamavam de "Acampamento Mãe", ppois era daqui que irradiavam as suas operações. Makwadju acrescentou:

Todos passámos aa controlar os movimentos. Eu destaquei 3 morteiros e acampámos numa pequena colina, nas proximidades da Base Beira. Pela madrugada do dia 1 de Junho, em combinação com a Força Aérea, efectuaram um bombardeamento à Base Beira. Nós não reagimos, apesar de que estávamos a ver tudo o que acontecia.  Quando foram dormir, destaquei um grupo de reconhecimento, chefiado pelo camarada Xavier Aleixo Chikuterane, que nos confirmou que os soldados portugueses preparavam-se para o jantar. A seguir, os camaradas Eugénio Sabão e Ernesto Zacarias Maulan, comandando 2 pelotões, com morteiros de 82mm, aproximaram-se e abriram fogo. Não jantaram nesse dia . Deixaram muita ração de combate, como queijos, sardinhas e incluindo um bom vinho. Recolhemos estes produtos e, alguns mandámos para a Base Central que se encarregou por fazer chegar uma parte a Nachingwea. Nos também bebemos um pouco do vinho, porque durante a Luta Armada não era proibido beber, mas também não era autorizado.

José Matias Mugalla, que na altura estava afecto ao Destacamento Limpopo, referiu que o comandante era Mateus Malichocho e o Secretário, Augusto Mwandinda. O comando da Artilharia estava confiado a Crisanto Muchanga, sendo adjunto, Geraldo Mtumbate. Demonstrando um elevado sentido de pátria, Mugalla dirigiu-se nos seguintes termos:

Lembro-me dos soldados portugueses a abrirem picadas. para atingirem o Limpopo. O Secretário do material , Augusto Mwandinda, tínhanos orientado para  que, enquanto se abrissem as picadas, cada Secção (12 elementos) fizesse, no mínimo, uma operação para impedir o ímpeto da progressão da tropa colonial. No entanto deparámos-nos com imensas dificuldades para desbaratá-la, devido à estratégia que usava, de colocar forças nas laterais, à frente assim como atrás das máquinas (bulldozers). Vimo-la a progredir, sem podermos contra atacá-la, pois era assistida por aviões Harvard T6 e Fiat G91 e helicópteros Alouett III. Quando atingiram a Base Limpopo, descobriram o depósito de armamento.. Tratava-se de material em trânsito, para abastecermos o 2º e 3º Sector. Retirou-no. A seguir foi para o depósito secundário e usando helicópteros recolheu todo o material para Mueda. Chorei, caíram-me lágrimas. Nervosos, pedimos ao camarada Augusto Mwadinda para realizarmos uma operação de contra-ofensiva, mas este não nos autorizou, pois estávamos enfraquecidos.

José Matias Mugalla

5.3. Execução da Operação Nó Górdio

O conceito da Operação assentava  no cerco e batida com grandes meios, prevendo o isolamento da área tratada poe Núcleo Central do Planalto dos Makondes, onde se encontravam as nossas bases principais, Ngungunhane, (Base Provincial de Artilharia), Nampula e Base Central de Moçambique (Provincial), como foi referido. O cerco seria numa extensão de 140 Kms, ao longo dos itenerários Mueda, Sagal, Muidumbe, Nangolo e Miteda.

De acordo com o plano concebido pelo General Arriaga, conseguindo isolar-se a área, seguir-se-ia o assalto e destruição daquelas bases. As acções militares deveriam ser conjugadas com uma intensa campanha de acção psicológica, para provocar a nossa rendição e desmoralização. Foram envolvidos cerca de 8 mil soldados, cuja mobilização e acção representou o maior investimento militar efectuado por Portugal, relativamente às outras colónias em guerra, isto é Angola e Guiné-Bissau

                          OPERAÇÕ NÓ GÓRDIO --- TEATRO DE OPERAÇÔES

A Operação foi levada a cabo, de 1 de Julho a 6 de Agosto de 1970, tendo sido testemunhada, no primeiro dia, pelo seu mentor, o general e católico Kaúlaza de Arriaga. Refira-se que neste triste dia e indelével na memória de muitos guerrilheiros moçambicanos, o chefe máximo da Igreja Católica, Papa Paulo Vi, recebia no Vaticano, os guerrilheiros Marcelino dos Santos, Agostinho Neto e Amílcar Cabral. Este aspecto será analisado  no capítulo sobre a Religião e a Luta Armada.

Uma vez iniciada, a Operação decorreu numa acção combinada entre as forças de Infantaria, Marinha de Guerra e Força Aérea. À medida que as forças iam progredindo, com o apoio de aviões do tipo Dakota, emitiam mensagens persuadindo as nossas populações para se apresentarem voluntariamente a si, porque alegadamente ofereciam melhores condições de vida. As mensagens incorporavam conteúdos aliciantes que, por sinal, constituíam um dos "calcanhar de  Aquiles", no seio da FRELIMO, desde a sua génese, o tribalismo. A expectativa colonial era atrair, massivamente, as populações.

 Assalto à Base Ngungungunhna

  A Base Ngungungunhna tinha sido classificada no plano de Arriaga, por Objectivo A. No ataque a tropa colonial empregou, basicamente Companhias de Comandos, nomeadamente, a 1ª Companhia de Comandos Motorizados; 17ª ; 18ª ; 23ª Companhias de Comandos, Companhias de Caçadores 2666 e 2730; DFE 11 (Destacamento  de Fuzileiros Especiais), dois Pelotões Morteiros e destacamento de Engenharia . Foi assaltada no dia 1 de Julho de 1970.

Assalto à Base Nampula

O assalto à Base Nampula, designada por Objectivo C, foi realizado no dia 15 de Julho, tendo sido empregues, essencialmente fuzileiros. Há referências da intervenção do Destacamento  de Fuzileiros Especiais 5, Destacamento  de Fuzileiros Especiais 11; 18ª e  21ª Companhias de Comandos; Pelotão de Morteiros 81mm; Destacamento de Engenharia; entre outras forças,
Kaúlza de Arriaga, de bengala, com o seu Estado Maior na Base Nampula

Tropa colonial portuguesa em marcha

Kaúlza de Arriaga, de visita ao quartel de Mueda

Armando Chongo caracterizou estes ataques com uma ligeira diferença na abordagem sobre as datas, mas com uma forte precisão nos meios utilizados pelo inimigo, eventualmente influenciado pela sua especialidade de artilharia. A respeito da Operação, traçou o seguinte cenário.

O dia 1 de Julho foi o início dos agrupamentos; no dia 3 de Julho são os Pára-quedistas que avançaram para a base B - objectivo B; são tropas que partiram de Nangololo, passando por Nkapota. No dia 4 de Julho os Comandos chegaram à Base Beira, mas não apanham o que eles conheciam (...). Era uma base muito antiga, daí eles falharam a tentativa de assalto a essa pprimeira base. Só no dia 6 de Julho é  que Gungunhana foi de facto atacada. No mesmo dia 6  e 7 de Julho a base Moçambique foi atacada por tropa-paraquedistas, enquanto  Gungunhana foi  atacada por Comandos. No dia 12 de Julho, os fuzileiros Navais atacaram a base Nampula,

Parte do armamento capturado no Destacamento do Limpopo. Op. Rodovia e Rudeza

5.4. Contra-Ofensiva à Operação Nó Górdio

Quando as incursões das tropas coloniais tiveram início, o plano de Contra-Ofensiva da FRELIMO já estava em prática. As bases que seriam alvo da Operação tinham sido desactivadas, as populações abandonado as áreas do previsível "teatro de operações", pelo que não se verificaram capturas do nossa lado, nem apresentações às forças inimigas, apesar das intensas campanhas de acção psicológico. 
Na sua apreciação final sobre a Operação, o Comando Português reconheceu que a FRELIMO tinha seguido as máximas de Sun Tsu, de retirar quando o inimigo ataca, de o atacar quando ele se movimenta.

No âmbito da Contra-Ofensiva, o "Conselho de Litapata", procedeu à reestruturação do Comando provincial de Cabo Delgado, apostando nos seguintes quadros: Cândido Mondlane, como Chefe de Defesa Provincial, Amândio Rafael Chongo, acumulando as funções de Chefe Provincial de Artilharia e Chefe Provincial de Operações; Calisto Migico Malido, como Comissário Político Provincial e Enoque Agostinho Pimpão Mavota, como Vice-Comissário Político Provincial.

De igual modo, o Presidente  Samora Machel tomou uma série de medidas geo-estratégicas, entre elas:
1) dispersão dos destacamentos e concentração das unidades em pequenos grupos para se evitar  ou minimizar danos humanos, em casos de ataques inimigos de grande envergadura.
2) reforço da logística e das acções de reconhecimento.
3) aumento dos ataques para se agitar o inimigo.
4) colocação de minas nas picadas que iam sendo abertas
5) reforço da mobilização  popular, face à Operação.

Em Maio de 1970, a PIDE/DGS e os serviços de inteligência militar portuguesa tiveram indício do reforço Frente de Tete, em contraposição à Operação Nó Górdio. A 11 de Maio, cerca de 210 guerrilheiros, dos quais 100 vindos da Tanzânia e 110 recrutados localmente, estavam posicionados em Fort  Johnson, na Zâmbia, para serem infiltrados em Tete. Os espiões  portugueses tiveram conhecimento que, entre 25 e 27 de Maio, 20 guerrilheiros estavam prontos no centro de treinos de Nachingwea, para seguirem a esta província. Acrescenta, ainda que em Nachingwea existiam 80 recrutas idos de Tete, a receberem especialização.

mmmmm
Esta informação passou a ser motivo de preocupação dos portugueses, temendo esta estratégia samoriana (referente a (Samora Machel) . No dia 12 de Junho, o Presidente Samora concedeu uma conferência de emprensa, em Dar-es-Sallam, anunciando o bloqueio das obras da Barragem de Cahora Bassa (refira-se que o objectivo colonial deste empreendimento era o de impedir o avanço da Luta Armada para o Centro e Sul do país, através da albufeira e do povoamento que surgiriam, formando uma zona tampão), alegando ser a prioridade militar da FRELIMO naquele momento. Consequentemente,faltando apenas 18 dias para o início do Nó Górdio, Portugal viu-se   na contingência precipitada de 12 de Maio de 1970, um carro do inimigo tinha accionadomovimentar militares e material bélico para a Província de Tete, desviando-se, assim,para um objectivo não planificado. Caíra, redundamente, no golpe  psicológico de Samora Machel.

Para contrapôr a Operação, a FRELIMO ia consolidando as suas conquistas militares e, sobretudo, fazendo demonstração de forças. Neste domínio, foram destruídos e aniquilados vários meios militares e humanos do inimigo. Segundo o comunicado de guerra emitido pelo 1º Sector de Cabo Delgado, a 6 de Maio de 1970, assinado por Marcos Sebastião Mabote, foram mortos 13 soldados coloniais, numa emboscada efectuada na estrada entre Negomano e Ngapa, local conhecido por Mikunga.

Uma semana depois deste acontecimento, a tropa colonial sofria mais um revés. Com efeito, outro comunicado de guerra, assinado igualmente por Mabote, indicava que a 12 de Maio de 1970, um carro do inimigo tinha accionado uma mina, na estrada que liga Mocímboa do Rovuma a Negomano. Este meio foi destruído e 16 soldados colocados fora do combate. O aludido comunicado refere a uma intervenção bem articulada entre as nossas unidades regulares e forças de milícias, tendo resultado no abate de 18 soldados que, idos de Mocímboa da Praia, estavam em serviço de aldeamento nas zonas de Ulumbe e Quissanga. Neste ataque foi capturado uma arma Mauzer NC-5420. No dia seguinte, 13 de Maio de 1970, na estrada que liga Mocímboa da Praia a Mueda, às 7 h30 minutos, 6 soldados do inimigo foram abatidos.

As acções de sucesso contidas nestes comunicados de guerra são testemunhadas pela próprias vítimas, o Exército Colonial. A este respeito, Aniceto Gomes, oficial do exército português fornece informação relevante, nos termos que seguem. 

Nos três meses antes do início da operação, Abril, Maio e Junho de 1970, a FRELIMO  executou 1079 acções sendo 78% delas (841) em Cabo Delgado, de que se destacam 33 flagelações e emboscadas e a colocação de 649 minas, das quais as forças portuguesas accionaram 116. Nestes três meses, estas acções da FRELIMO provocaram às forças portuguesas 39 mortos e 269 feridos graves, dos quais 21 e 110 respectivamente em Cabo Delgado.

Ao nível da Província de Cabo Delgado, materializando-se as estratégias de Litapata, foi produzida uma circular assinada a 1 de Julho de 1970, por Calisto  Migico Malido, Vice-Comissário Provincial. Este documento era dirigido aos comandos operativos distritais, alegando para a necessidade  de redobramento de esforços por parte dos guerrilheiros, face às novas estratégias de guerra, introduzidas por Kaúlza de Arriaga. A circular tinha o teor indicado na página seguinte:

***************************++++++++++*****************************
***************************++++++++++*****************************
Numa espécie de balanço da Operação, Silva Cunha, que fora ministro do Ultramar e depois ministro português da Defesa Nacional, fez elogio à "à estratégia samoriana". Referiu que  "(...) actuação de Kaúlza não só foi um desastre, como acabou por reforçar a guerrilha, pois, quando ele, com numerosos efectivos, tentou expulsá-la do Norte, acabou por se infiltrar em Tete".

Relativamente às baixas do nosso lado, importa referir que são absolutamente incorrectas os dados trazidos por Kaúlza de Arriaga, cujo relatório sobre a Operação faz menção à morte de 651 guerrilheiros nossos e captura de 1840. E ainda, por Jr. Westfall, que aponta a destruição de 61 bases e 165 campos da FRELIMO, bem como a captura de 40 toneladas de munições.

Deste modo associo-me plenamente ao posicionamento de Calisto Migico Malico, Comissário Político de Cabo Delgado, que no seu relatório referente aos meses de  Outubro, Novembro e Dezembro, datado de 24 de Dezembro de 1970, ridicularizou os "feitos" de Arriaga , afiirmando:

O remédio que serve para curar o colonialismo Português é a Luta Armada Revolucionária (...) usando a sua personalidade incomparável, o inimigo multiplica assuas tropas terrestres, estas apoiadas pela artilharia pesada e aviação violam as nossas Zonas Libertadas, à custa de muito sacrifício. Todavia, é digno dizer que o número de sacrifícios ou seja prejuízos, não corresponde sequer a centésima parte daquilo que gastaram. A cena dramática dos sobrevoos de helicópteros, aviões simples, aviões a jacto e os efectivos de soldados de Infantaria, parece estranguladora. Mas, na essência, não deixou de ser um asimples ameaça para amedrontar as nossas populações.

Na mesma senda, Cândido Mondlane, ironicamente, remeteu a culpa do fracasso da Operação à própria estratégia adoptada por Arriaga. Destacou o que chamou de ineficiente conhecimento da guerra da guerrilha, que Arriaga estava a enfrentar. Qualificando de incautos, prepotentes e barulhentos os soldados portugueses envolvidos na Operação, Mondlane salientou o seguinte:

Avançavam com canhões, ou avançavam com aviação, helicópteros, em cima, e isso permitia aos guerrilheiros da FRELIMO verem a direcção que estava sendo visada por eles. Quando avançassem para uma determinada direcção, a sua retaguarda era atacada pelos pequenos grupos de guerrilheiros formados para o efeito. (...) na zona de Nangude eles sofreram emboscadas que os obrigaram a paralisarem   o seu avanço em direcção a Muidumbe. Mais tarde, o Comando da guerrilha da FRELIMO em Cabo Delgado ficou a saber que os portugueses nem sequer tinham disposto de tempo para recorrer aos seus helicópteros para o transporte dos seus mortos, o queos levou a recorrerem aos bulldozers para enterrar os cadáveres ali no local.

A vitória da FRELIMO sobre a Operação Nó Górdio foi encarada com um significado enorme por parte dos guerrilheiros, não somente porque tivéssemos vencido um inimigo munido de um grande potencial bélico, mas porque se consolidavam as Zonas Libertadas, que já as tratávamos por Estado, Numa mensagem dirigida aos professores, reunidos em Namitego, no dia 16 de Agosto de 1970, Cândido Mondlane teceu as seguintes considerações:

Neste momento histórico que o progresso do nosso Estado vai manifestando, concretamente a concorrência de domínio com o Estado invasor, na extensão de terras, no aumento das populações e na ascendência do intelecto das massas, o colonialismo vai reconhecendo admirado e de antemão abatido, as nossas qualidades, como também que o Povo insubordinado por essência no modelo de escolha do modelo na escolha do modelo de vida na nossa livre revolução Moçambicana. É científico afirmar que o homem quando vive num meio ou ambiente desfavorável à sua vida, à sua boa vida, a sua inteligência humana transforma o ambiente, para dar facilidade à boa possibilidade de vida. Se é que Moçambique vive no mundo vive num meeio que o oprime, é cientificamente evidente que é infalível a transformação deste meio opressor para o meio de vida livre, vida fácil, por isso, para nós, é indubitável a conquista total da nossa Independência (...)

5.5. Uso de Armas Químicas e Biológicas

A seguir ao Nó Górdio  (esta Operação estendeu-se para além de 1970) propriamente dito, o regime colonial português realizou uma intervenção militar condenada internacionalmente, o uso de armas químicas, na Província de Cabo Delgado. As primeiras informações a respeito do uso de armas químicas numa guerra de contra-subversão provêm da Malásia e do Quénia, onde com elas os ingleses pretendiam limpar as bermas das vias de comunicação e os refúgios dos guerrilheiros.

Em meados da década de 1970, o uso de herbicidas e desfolhantes aconteceu no Zimbabwe, envolvendo este país,  a África do Sul e Portugal, contra a população negra. Antes, os portugueses tinham tido convite de Ronald Waring, um especialista desta área, para usar estas armas em Angola, desde 1961. Estas armas viriam a ser usadas depois, naquele país, à semelhança de Moçambique, em prossecução, em prossecução da política de percussão das populações, para estarem do lado das tropas coloniais.

Neste sentido, há fortes evidências de pulverização com desfolhantes em Angola, em 1969 e 1970. Isto visava, por um lado, aumentar a segurança das tropas portuguesas no Norte do país, através da eliminação dos potenciais locais de emboscadas e de refúgio dos guerrilheiros. Por outro, a intenção era destruir a base alimentar das populações, causar doenças no seu seio, bem como provocar a morte de animais, especialmente do gado.

Em Moçambique, cujas evidências encontrámos em Cabo Delgado, esta operação desumana tinha por finalidade o apodrecimento de produtos agrícolas, particularmente a mandioca, principal alimento da população e dos guerrilheiros. A este respeito, em, 1972, Aníbal Malichocho reportou o seguinte:

O (...) inimigo, depois de se ver derrotado no campo de batallha (...) já recorreu a meios mais desumanos para privar-nos de comida e assim passarmos fome (...)as coisa que ficaram mais atingidas foram as seguintes: mandica, gergelim e amendoim. Quanto às folhas de mandioca já envenenadas quando alguémcome sofre perturbações estomacais e provoca forte tosse. Esses aviões que lançam são protegidos por aviões bombardeiros, aviões a jacto e helicópteros.

A utilização de armas biológicas viola os princípios do Direito Internacional Humanitário. Assim, a atitude tomada pela tropa colonial é contrária a estes princípios.

6. Ofensiva Generalizada para todas as Frentes

6.1. Pressupostos Político-Estratégicos da Ofensiva

Os anos de 1971, 1972 e 1973 continuaram a ser bastante violentos no "teatro de operações". Por um lado, o regime colonial pretendia ainda salvar a honra já perdida na Operação Nó Górdio e, por outro, a FRELIMO desdobrava-se na recuperação dos progressos da Luta, que tinham retrocedido devido a esta Operação. Para o efeito, a FRELIMO reforçou as suas estratégias no campo militar e intensificou os combates. O aspecto mais marcante foi o uso de acções combinadas, entre as especialidades de infantaria, comunicações e infantaria, em que esta última desempenhou um papel primordial.

Convém referir que, o quadro político-militar que se seguiu ao fim do Nó Górdio era de uma batalha ganha, porém, como é apanágio das guerras, tinha havido algumas baixas do nosso lado. Em 1972, o Departamento de Defesa efectuou um trabalho profundo nas regiões flageladas pela Operação, o qual foi classificado por "Estudo Sobre os Sub-Distritos".

Assim, de 1 a 12 de Março, decorreramestuos sobre Mueda, Negomano, Ngapa e Nangade, com o objectivo de avaliar o estágio geral da prontidão combativa. Constataram-se cenários desafiantes, caracterizados por  falta de motivação de alguns comandantes nossos, fuga de guerrilheiros dos destacamentos, falta de roupa para os guerrilheiros e incumprimento do plano dos 3 combates por semana.

Do lado das populações, eventualmente devido à estratégia de "mata e esfola" utilizada por Kaúlza de Arriaga, notou-se que muitas deslocou-se à Tanzânia, a pretexto de visitas a familiares, não tinham regresso. Assistiu-se também, ao abandono de material de  guerra carregado das fronteiras para as bases, mulheres que lamentavam falta de maridos, ausência generalizada de instrumentos de trabalho, como enxadas e catanas, ainda, a escassez desal e vestuário, assim como a infiltração massiva de agentes do inimigo.

Vivia-se, desta forma, uma situação de debilidade, tanto na Frente do Niassa, como na de Cabo Delgado. Contudo, estávamos imbuídos do espírito de vitória, o que nos galvanizou a desrnharmos estratégias de avanço da extensão da Luta para outras províncias. Foi com base nesta realidade que o Comité Central da FRELIMO, em Dezembro de 1972, tomou a decisão da realização da "Ofensiva Generalizada para todas as Frentes".

Presidente Samora Machel, mobilizando os guerrilheiros.

A operacionalização desta decisão figura no discurso do Presidente Samora Machel, proferiu na "reunião com um batalhão", a 23 de Julho de 1973. Neste encontro, Machel chamou a atenção para a valorização da Unidade Nacional, como força motriz do sucesso de huerra.


++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++
**********************************************************************************
Na sequência da Operação Nó Górdio, a FRELIMO decidiu reforçar algumas especialidades, efectivos e adquirir armamento mais sofisticado. Foi assim que em Março de 1972, fui enviado à URSS, no Centro de Instrução de Simferopole, localizado na Crimeia, Ucrânia. A minha integração no grupo é algo em emorável, pois eu não tinha sido seleccionado, mas no dia da viagem, o camarada que devia ir à formação, Cândido Mondlane, não se apresentou para o efeito. Estava a dormir, eventualmente exausto! Beneficiei do salvo - conduto que tinha, na sequência de uma viagem que fizera a Pyongyang, na Coreia do Norte, em 1971, na Conferência Internacional da Juventude, para representar a Juventude Moçambicana, tendo sido Chefe da delegação, Eduardo Coloma.

O nosso contingente integrava 3 grupo de camaradas, tendo Daniel Polela como Chefe Geral. O meu, chefiado por mim, ia frequentar Artilharia Terrestre. Eate integrava camaradas como Eusébio Raposo, Marcelino Nanula, Bernard Francisco Changamire, António Pedro Simango, General Zacarias e João Machado. O segundo, chefiado pelo camarada Joaquim Munhepe , ia cursar Comunicações, integrando entre os demais, Cornélio Focas, Henrique Vidigal. O terceiro grupo, chefiado pelo camarada João Américo Fumo, era da Artilharia Anti-Aérea,  em que faziam parte Rafael Fumo, e Remígio Anadabula. Enquanto isso, outras camaradas frequentavam o curso de artilharia em Arusha, na Tanzânia, chefiados por Miguel Ambrósio Makwadju, O grupo incluía, Fanuel Mateva, Jorge Benício e Macsonald Chulo.

Com efeito, a nossa formação  consistiu na utilização de armamento moderno,  como Estalação B-11-P ou Grad-P 122,4 mm, Canhão sem recuo B-10 de 82 mm, Morteiro 82 mm, enquanto ao nível da artilharia anti-aérea, os camaradas eram treinados no uso de  armas como DCK-12,7mm e ZGU-1-14,5 mm e Míssil Portátil Strella 2M.

Ainda no tocante ao  curso na URSS, entre outras coisas, a memória que guardo é referente à disciplina que tive que impor no meu grupo. Ciente dos desafios militares que tínhamos no país e como forma de honrar o facto de termos sido seleccionados para a formação, organizávamos estudos em grupo, para a revisão permanente das matérias recebidas. Como enfatiza um colega de curso, devido à nossa aplicação no Centro de Instrução e rigor na disciplina, "voltamos sãos, salvos e bons".

Regressados à Tanzânia, em Maio de 1972, em Maio de 1972, porque éramos um grupo com uma formação especial, a Direcção da FRELIMO isolou-nos de outros guerrilheiros, para que não houvesse fuga de informação a respeito do conteúdo da nossa formação e, sobretudo, do tipo de armas que sabíamos manusear.

Saímos de Dar-es-Salaam para o Centro de Preparação Político- Miltar de Nachingwea, vestidos de fato e viajámos num autocarro de luxo. Chegados a este centro, os nossos movimentos eram bastante vigiados pela nossa segurança, mesmo nas deslocações entre as casernas e o refeitório.

Em Nachingwea fomos divididos em três grupos, distribuídos por Tete, Niassa  e Cabo Delgado. Eu fui afecto à Província de Cabo Delgado, na base Beira, à altura, chefiada por Cosme Nyusi, mais tarde substituído por Because Lukanga. O 1º Sector, à minha chegada, era chefiado por Hilário Makumbi. Posteriormente o substitui das funções, tendo acumula com as funções de Chefe de Artilharia deste Sector e Adjunto- Chefe Provincial de Artilharia. O Comando de Artilharia do 1º Sector, integrava camaradas, como José Sampaio, Chefe Adjunto), Eusébio Raposo, António Pedro Simango, Marcelino Nanula, Fanuel Mateva, Rafael Awenavila, Bernardo Changamire, Macdonald  Chulo, João Machado Ngungunyana.

6.2.

Quando cheguei ao interior de Cabo Delgado, em 1972, a Luta Armada já ia no seu oitavo ano e havia avançado bastante em técnicas  e equipamento de combate. O  1º Sector estava em plena ofensiva generalizada, rechaçando uma série de incursões inimigas, Dentre tantos combates, o mais memorável, que comandei, foi o ataque ao Quartel de Mueda, a 18 de Setembro de 1972, Este ataque é descrito num relatório do Departamento de Defesa (DD).

No dia 12 de Agosto foi àquele posto uma equipa de reconhecimento, durante três dias. O inimigo atento: Retomou-se a 15 de Setembro de 1972. As forças foram realçadas com um total  de 644 homens do I e II Sectores de todasas forças principais, milicianos e populares armados. No dia 18 de Setembro pelas 17h30 a nossa artilharia pôs-se em fogo incomensurável. As nossas forças dispunham quatro granadas, com 49 roquetes, três Canhões de 75mm com 36 obusesarmaFBM/, três Canhões B10 e igualmente com 36 obuses, uma anti-aérea 12,7 mm, 12 MMGs e 4 peças russas (...). Do avião abatido capturámos o seguinte material: 1 arma FBM /38 N23297; 1 pequeno rádio estragado da marca Mouting - 1620 -Ar Telefuken-Modelo IDENT,N50-339.1499; 1 estojo de ligaduras; 81 munições , calibre 9mm; uma peça do próprio avião Havard N.55-24027

Sublinhe-se que este ataque foi considerado de grande envergadura, mesmo pelo Exército Colonial, A respeito um Oficial do Exército Português diz o seguinte:

Às 18h30, ao lusco fusco , os militares do aeródromo de Mueda começaram a ouvir uns fortes zumbidos, por cima das cabeças, seguidos de rebentamentos à distância, que se vão aproximando-se do quartel. O alerta é estabelecido e o capitão Estivinho, com o furriel Vaz de Carvalho como apontador, descola no helicanhão e dirige-se oara a área onde saem os disparos, abrindo fogo. Imediatamente constata que a reacção antiaéra, disposta numa linha de metralhadoras pesadasZPU de 14mm. é fortíssima e os disparos do canhão, denunciando a posição do AL de 14 mm, expoêm-no fogo inimigo e ao abate certo. O capitão Estevinho manda o furriel  Carvalho cessar os disparos e pede para a base, apoio aéreo de aviões Fiat e T-6. Já com pouca luz descolam
dois com os furrieis Semedo e Varela aos comandos, armados de foguetes e metralhadora e descolam com um pequeno intervalo, enquanto o capitão Costa Joaquim e o alferes Zagalo põem em marcha as turbinas do Fiat, O capitão Estevinho, apercebendo-se que o furriel Vilela se dirige directamente para a área dos disparos, agora em silêncio, ainda tenta avisá-lo para que circunde a área a fim de atacar à retaguarda, mas não é ouvido. O furriel Semedo efectua a manobra de envolvimento e o avião do furriel Vilela, iluminado pela lua, é alvo das antiaéreas e é abatido, despenhando-se em chamas. Entretanto, com os Fiat, o T 6 e o heli reagindo fortemente, o inimigo retira--se.

Em Janeiro de 1973, continuávamos com as nossde Dezembro. Uas incursões.  Desta vez realizámos um ataque de que resultaram mais danos assinaláveis do lado do inimigo. Como se atesta no Comunicado de Guerra do DD, com a Refª COIs "DD" CD, N 1/73, Beira (11-01-73) "Ofensiva a Nangade", assinado por mim, lê-se o seguinte:

Reconhecimento bem feito na última 5ª feira Dezembro. Uma secção de 15 camaradas armados de 3 bazookas e metralhadora atacou o posto de Nangade pelas 21 horas do dia 1 de Janeiro de 1973, enquanto os soldados  passavam as festas de  Ano Novo. A progressão a 100 metros de distância. A cantina foi atingida por 3 roquetes de bazookas (...) 4 roquetes incendiaram o motor eléctrico . Infringimos a morte de 8 soldados portugueses e 10 feridos. Ao nosso lado não se registou qualquer dano.

Com base nestas reflexões, as considerações apontam que o Nó Górdio foi uma ofensiva  em que os portugueses tinham como objectivo aniquilar a FRELIMO em pouco tempo, primeiro no interior, sendo o foco principal a Província de Cabo Delgado, e, segundo, no exterior, onde estavam instaladas as suas bases militares, sobretudo na Tanzânia.

Comando Provincial de Cabo Delgado. Da esqª para a Dirª: João Facitela Palembe, Vice-Comissário  Político Provincial; Focas Zacarias Assikulava, Secretário do Comandos Provincial; Calisto Magigo, Comissário Político Provincial; Paulo Samuel Kamkhomba, Chefe Provincial da Operações; Saibo Ripua (Wehia Ripua) Vice - Chefe Provincial; e Raimundo Pachinuapa, Chefe  Provincial

ILAÇÕES:

* Não se vence um povo que sabe por que luta e derrama o seu sangue - A Luta Armada de Libertação Nacional tinha um carácter popular;
* A concentração de uma monstruosa máquina de guerra somente contra o Núcleo do Planalto dos Makondes, facilitou que o nosso alvo fosse objecto de ataque, face à estratégia de desactivação das nossas bases, dispersão dos núcleos de comando
* A nossa  vitória sobre o Nó Górdio representou um golpe contra todas as forças retrógadas da Região, designadamente, o colonialismo e racismo no Zimbabwe e Namíbia e o apartheid na África do Sul. Dito de forma mais incisiva e evidente, foi uma alavanca para as forças progressistas de África e do Mundo.


7 . Operação Omar

7.1. Contexto Político - Militar e Diplomático

A Ofensiva Generalizada para todas as Frentes, como foi referido, tinha sido a força motriz que a Direcção da FRELIMO encontrara para galvanizar  a Luta Armada, depois do Nó Górdio. Porém, em torno deste desiderato, alguns desafios fizeram-se de forma inquietante, nos domínios político-militar, social e diplomático. Foi visando fazer face a este cenário, que a Direcção da FRELIMO encarregou-me pelo ataque ao Quartel de Omar/Namatili.

No domínio militar, os  desafios manifestavam-se pela existência, no 1º Sector, de vários aquartelamentos coloniais de guarnição, instalados ao longo da margem direita do rio Rovuma, numa extensão de cerca de 265 Kms. Estes aquartelamentos formavam uma muralha, dificultando a travessia deste rio, aos guerrilheiros e a população, na introdução de material bélico para o interior de Moçambique, na evacuação de doentes para hospitais tanzanianos, assim como na comercialização dos seus produtos, na Tanzânia. Estes 8 aquartelamentos, localizados ao Norte do 1º Sector, distanciando entre si, cerca de 25 Kms, estavam situados nas povoações de Quionga, Nhica do Rovuma, Pundanhar, Nangade, Namatili/Omar, Mocímboa do Rovuma (Ngapa), Nazombe e Negomano.

Dispositivo militar português em Cabo Delgado em 1974

Os outros aquartelamentos a situavam-se a Sul do 1º Sector, em Mocímboa da Praia, Budje, Diaca, Sagal, Mueda, Chapa, Naitoto e Ntora. A Oriente deste Sector, localizavam-se Palma, Ulumbi e Quissengue. Estes serviam de bloqueio às nossas bases e destacamentos, nomeadamente, Beira, Balama, Nacala, Limpopo, Centro de Instrução de Ngalonga, Namoto e Tete. De modo geral, os aquartelamentos possuíam equipamento de artilharia sofisticada, como o Canh~~ao 8.8mm, Morteiros de diferentes calibres e Lança-granadas, bem como holofotes, cuja iluminação se via a partir de regiões elevadas da margem esquerda do Rovuma, isto é, em território tanzaniano, tais como Newala-sede e Mkunya.

Sublinhe-se que desde Maio de 1974, a Direcção da FRELIMO, encontrava-se em processo negocial ainda precoce com as autoridades portuguesas,a respeito da Independência Nacional. Deste modo. era preciso encontrar um factor catalisador, que nos colocasse em vantagem relativamente à nossa contraparte.

Refira-se que a nível social, com as conquistas obtidas desde o início da Luta, as populações já saboreavam o prazer de viver num "País Independente", ou num "Estado" como fiz menção.Era óbvio que as populações sentissem que as muralhas coloniais obstruíam as nossas conquistas, especialmente, nas Zonas Libertadas.

É de destacar que os pressupostos diplomáticos da FRELIMO assentavam em dois pilares fundamentais. Primeiro, nos vínculos de raça e cultura entre os africanos, ditados por cinco séculos de colonização e, no contexto mundial, na semelhança das condições sócio-económicas com povos de outros continentes, nomeadamente a Ásia e  a América Latina. Segundo, pelo facto de o Estado Colonial Português, que era o nosso inimigo, estar entrelaçado, numa teia que envolvia as potências colonizadoras que o apoiavam, significando que elas nos consideravam "seus inimigos, porque éramos inimigos do seu amigo". Como frisou o Presidente Eduardo Mondlane, "na altura desafiar Portugal, equivalia a desafiar todos os seus aliados....
Presidente Eduardo Mondlane, ao lado de sua esposa Janet, de visita à Suécia

Como a nossa independência, o principal pomo de discórdia com Portugal interessava, igualmente, a muitos povos e organizações amantes da paz, estes juntaram-se a nós e aceitaram colaborar na nossa Luta. Foi este aspecto que possibilitou o estabelecimento de representações nos seus países. De facto, auxiliados por organizações, como o Comité de Libertação da OUA. a Associação afro-Asiática e a Organização de Solidariedade Tri-Continental, criámos centros de representação em vários quadrantes estratégicos do Mundo. Entre eles, merecem destaque o de Dar-es-Sallam, Cairo, Lusaka, Argel, Nova Iorque,  Moscovo, Estocolmo,é outrod


A vasta rede de representações diplomáticas da FRELIMO justificava-se pela justeza da nossa Luta e da política de não alinhamento que se seguia. As mensagens que os seus representantes jubilosamente difundiam, eram de vitórias e progressão territorial, implantação e consolidação das Zonas Libertadas, uma situação ensombrada pelos aquartelamentos coloniais, particularizante o de Omar. Perante este cenário,  a Direcção da FRELIMO decidiu resolver o problema militarmente, sobretudo, porque as conversações iniciadas apresentavam caminhos sinuosos. Neste assunto, Fernando Couto colabora com o seguinte argumento.

Depois do impasse negocial de Junho, tornava-se necessário à FRELIMO actuar de forma a dar uma maior dinâmica à marcha dos acontecimentos (...) na base de Nachingwea, quartel general da Frente de Libertação, será tomada uma decisão que seria fulcral para o desenvolver  dos acontecimentos. (capturar o quartel de Omar)

Na sequência da referida conjuntura político-militar e diplomática em Maio de 1974, o Presidente Samora Machel convocou-me para Nachingwea, através de Alberto Joaquim Chipande, Chefe- Adjunto do Departamento de Defesa. Chegado a este local, fui convidado a tomar refeição na "Sala dos Chefes da Escala/Estado Maior General". Confesso que fiquei preocupado , pois não fazia a mínima ideia do que iria acontecer comigo. Mas contentei-me com o lugar de honra prestígio que estava. Afinal, decorreria um conversa bastante sigilosa , na qual recebi uma missão melindrosa, de que me orgulho.

O Presidente Samora dirigiu-me uma série de questões relativas ao Quartel de Omar, incluindo os tempos  em que era Destacamento Limpopo, ou seja, sob o nosso controlo. Perguntou-me, inclusive, sobre as circunstâncias em que 
caíra nas mãos do Exército Colonial, ao que respondi que não tinha o domínio de toda a situação, porque na altura eu estava em Masasi, como representante do DD.

Tratou-se de uma conversa em movimento, evitou-se o gabinete para se garantir o carácter secreto da missão.. Mesmo o camarada Sérgio vieira, que estava próximo de nós, não se apercebeu do conteúdo da conversa, pois Samora fez questão disso. caminhando comigo em direcção às bananeiras, onde se produzia, inclusivamente, hortícolas. Manifestou a sua preocupação pelo facto de muitos estrangeiros lhe questionarem constantemente sobre quartéis bastante iluminados ao longo da fronteira que do lado da Tanzânia eram vistos, junto ao rio Rovuma, numa altura em que a FRELIMO exibia a posse de muitas Zonas Libertadas, o que aparentemente constratava com o referido progresso da Luta.

Assim, perguntou-me se seria capaz de "retirar do mapa" o Quartel de Omar, isto é, atacar, assaltar e ocupar aquela posição. Tratando-se de um superior hierárquico meu, entendi que estava perante uma ordem e não, necessariamente, uma pergunta. Aceitei-a. No entanto questionei-me sobre as razões da minha indicação para uma missão tão complexa. Sem pretender ser advogado de mim próprio, julgo que a confiança do Presidente Samora baseou-se nos seguintes  FACTOS:

1. Um jovem combatente que teve sucessos na Frente do Niassa Oriental;
2. Ter assegurado a logística na Frente de Cabo Delgado, sobretudo durante a Operação Nó Górdio, quando estava na Representação de Defesa, em Masasi;
3. Participação com sucesso no emprego de arma B-11-P, nos ataques contra guarnições coloniais, como Mocímboa da Praia, Palma e Nangade. Particular referência ao ataque aà guarnição de Mueda, a 18 de Setembro de 1972 em que abateu uma Harvard T-6;
4. Fidelidade e  confiança, pois o Presidente Samora tratava-me por filho!...

Atanásio Mtumuke,(1975) ostentando o casaco oferecido
por Samora Machel, no aniversário natalício. em Nampula

Atanásio Mtumuke, em 2019, exibindo o casaco oferecido
por Samora Machel, em Maio de 1974



+++++++++++++++++++++++++++++++++++++*********************+++++++++++++++++++++++++++++++*********************++++++++++++++++++++++++++++

Depois de receber a missão sobre a Operação Omar, preparei-me para o desafio aque era acometido. Solicitei ao Presidente Samora o retreinamento de cinco companhias ( O conceito de Companhia depende do tipo de guerra e do tipo de defesa. No caso de Moçambique uma companhia de guerrilha compreendia 108 homens, mais o respectivo Comandante e seu Vice, o Comissário Político e seu Vica, totalizando 112 guerrilheiros) e dois megafones, sem contudo informar a finalidade destes instrumentos. Partilhei a orientaçãp presidencial com o Chefe-Adjunto do Departamento de Defesa, o Chefe do Departamento Provincial da Defesa e o Chefe Provincial da Segurança de Cabo Delgado, Alberto Chipande, Mateua Aníbal Malichocho eSalésio Nalyambipano, respectivamente. Como se pode depreender, tratava-se de camaradas incontornáveis na Frente de Cabo Delgado. A seguir, elaborámos o plano deste expectável assalto, sucedido de acções com vista à sua materialização.

Seleccionámos um efectivo de duas companhias, acompanhadas pelos respectivos comandantes, para sessões de retreinamento, em Nachingwea. A 1ªera comandada por Armando Nkalimile Nkatema e a 2ªpor Felisberto Sambino Simo. Chegadas ao Centro de Preparação Político-Militar de Nachingwea, foram enviadas para um acampamento que dista cerca de 45Kms deste Centro, onde foram recebidas pelo comandante do acampamento. Pedro Nachaque e outros instrutores, tais como Pedro Shitimela e Ambrósio Luís.

Na mesma altura, no interior de Cabo Delgado, o Centro Instrução Política-Militar de Ngalonga, chefiado por António Shilalangasi, situado no 1º Sector, preparou outro efectivo de 3 companhias de infantaria. Refira-se que a 3ª Companhia era comandada por Emílio Fernando, a 4ª por Pedro Shitimela e a 5ª por Maurício Balide. As duas baterias mistas, de artilharia terrestre e  anti-aérea, estavam sob o comando de Marcelino Nanula e Remígio Anabadula, respectivamente. O retreinamento incluía ainda, Sapadores, Comunicação e homens de Reconhecimento. Note-se que a missão que se seguiria tinha sido mantido secreta, mesmo relativamente aos comandantes destas companhias.

No mês de Junho, o Presidente Samoroluçolua reuniu-se com as companhias que estavam em Nachingwea, para lhes encorajar sobre os desafios que tinham pela frente. Recorrendo a aspectos com elevada carga psicológica e motivacional, começou por se debruçar sobre o golpe de Estado, em Portugal, conhecido por "Revolução de 25 de Abril de 1974" ou "Revolução dos Cravos",  levado a cabo pelo Movimento das Forças Armadas. Dirigiu-se nos seguintes termoss:

Venho-vos ver e lhes dizer que em Portugal os militares fizeram um golpe de Estado, chefiado pelo General António Sebastião Ribeiro e Spínola. Venho informar-vos, igualmente, que devem ficar preparados por forma a serem mais fortes e homens com mentalidades de certa forma nova.
FRELIMO
Samora referiu ainda, como desafios, a expansão da guerra para Nampula. Com a extensão da Luta, criar-se-iam condições para se chegar ao Sul do País, a maior aspiração dos guerrilheiros, pois significava o fim da guerra. Pouco antes de se despedir dos mesmos, entregou uma bandeira da FRELIMO a cada companhia, que simbolizariam a reocupação dos territórios.

Armando Nkalimile recebendo das mãos do Presidente Samora Machel,
a Bandeira de compromisso para a Operação Omar

Felisberto Sambino Simo, Comandante da 2ª Companhia, recebendo das 
mãos do Presidente Samora Machel, 
a Bandeira de compromisso para a
Operação Omar

7.2. Execução do Assalto e Captura de Omar

    Este processo compreendeu, essencialmente três etapas interligadas entre si: 
(1) o reconhecimento
(2)  a marcha de progressão e cerco
(3) assalto
Tratou-se de procedimentos cautelosamente elaborados, com as atenções viradas para as preocupações e recomendações do Presidente Samora Machel, e claro, acrescidas do espírito patriótico e criativo da minha parte, em consideração à desfavorável situação política-militar acima descritas.

Reconhecimento

O reconhecimento começou na segunda quinzena de Maio, tendo se prolongado até finais de Julho. Nele foram envolvidos  vários grupos de cada especialidade, sobretudo de infantaria, de artilharia terrestre e anti-aérea. Convém enfatizar que nenhum deles sabia da existência de outros, a realizarem missão idêntica, para o mesmo alvo. Com isto, pretendia-se apurar a coerência das informações recolhidas, tais como o seu efectivos, a sua rotina, o tipo e a quantidade de armas, a capacidade de defesa, abrigos, posição das sentinelas, entre outros detalhes.

No dia 18 de Julho foi realizada mais uma missão de reconhecimento do comando, desta vez envolvendo a mim, como comandante da Operação, Armando Armando Abel Assikala, na qualidade  de Adjunto-Comandante e Comissário Político da Operação e os Comandantes das Companhias e Baterias de Artilharia. Com esta missão tínhamos em vista avaliar a eficácia das informações recolhidas pelos grupos de reconhecimento, sobretudo, a marcar as posições dos comandos das Companhias e Baterias. A marcação é um conceito de guerrilha que se resume na indicação da posição dos comandos, de modo a se evitar a alegada perda de direcção, aquando dos combates.

Estando no Posto de Comando da Operação previamente determinado,que distava a 3 Kms do Quartel de Omar, por mera coincidência, aterraram 6 helicópteros para reabastecimento. Festejámos bastante este momento, pois acreditávamos que todo o material ficaria connosco, o que veio a acontecer.

 Avanço para a Operação

No dia 29, às 18 horas, todas as sub-unidades marcharam saindo do ponto de partida, zona de Chibabedi, onde estavam acampadas, em direcção ao alvo. A Supervisão e o Comando da Operação, estabelecidos na Base Beira, partirautonomiados guerrilheiros e das populaçõesam na mesma altura que as sub-unidades e, chegados à região de Machokwe, desmembraram-se. Uma companhia protegeu o Posto deSupervisão, onde estavam Alberto Chipande e Salésio Nalyammpipano. As restantes 4, juntamente com o meu comando, continuámos a marcha até à zona de Chilindi, onde chegámos no dia 31, às 12 hora.

Em Chilindi, fizemos o reajustamento das forças. A chegada  àquela hora, fora propositada, pois i inimigo tinha o hábito de efectuar o patrulhamento da zona, retirando-se por volta das 11 horas,para almoçar no quartel. Nesta região de regulação, confeccionámos comida quente para garantir autonomia dos guerrilheiros e das populações, durante 24 horas. A nossa presença às 12 horas tinha em vista evitar que a fumaça produzida na cozedura dos alimentos fosse visível à distância. O mesmo acontecia em relação às vozes, em que pretendíamos evitar que estas estivessem ao alcance do inimigo. Aliás, a título de exemplo, um guerrilheiro fez um tiro, alegadamente involuntário .porém, por nossa sorte, o inimigo não se apercebeu do barulho, Relativamente a este guerrilheiro foram tomadas as devidas medidas.

Guerrilheiros na região de Chilindi, avançando para o combate

Cerco ao Quartel de Omar

Às 16 horas e trinta minutos do dia 31 de Chilindi, em direcção ao alvo, onde tomámos asposições previamente indicadas para o cerco. Em relação ao dispositivo combativo, efectuámos o cerco do perímetro do inimigo, em três direcções, colocando a 1ª Companhia, ao Sul; a 2ª a Oeste; e a 3ª a Este; e  deliberadamente, e deixando aberto o lado Norte do perímetro, pois o rio Rovuma constituía um obstáculo natural. A 4ª companhia, sem um Pelotão, era a força de reserva. A Bateria Mista de Artilharia (B-10-82 mm, Canhão 75mm e B-11-P-122,4mm) e uma estalação de Strella 2M, estavam junto ao Posto de Comando da Operação e outro na linha da frente, junto do pelotão ZGU-1-14,5mm.

No cerco, tínhamos em manga portuguesas, se estes tentassem fugir. Este procedimento significava a transposição dos conhecimentos tradicionais a que, em caso de o inimigo refugiar-se nos abrigos, colocaríamos capim à entrada destes, de modo a queimar e provocar fumo, para estontear os soldados portugueses, se estes tentassem fugir. Este procedimento significava a transposição dos conhecimentos tradicionais de caça, para as tácticas de guerrilha. De facto, nestas circunstâncias , estaríamos a aplicar as experiências adquiridas na caça de ratos, durante a minha infância e juventude. Refira-se que, para que os ratos não fugissem da toca, introduzíamos capim no seu interior e queimando-o de seguida. A fumaça produzida reduzia os níveis de oxigénio, estonteando os ratos, tornando-se, desta maneira, em presa fácil. Esta constituía uma arma química rudimentar.

Esta ideia resultou inclusivamente do ataque e assalto ao Quartel de Nazombe, em que os soldados portugueses refugiaram-se nos abrigos. A seguir, o Comandante Oreste Nang`ang`ona, ordenou os guerrilheiros a lançarem granadas de mão, para os abrigos. Presumindo que os soldados portugueses tivessem sido atingidos fatalmente, o Comandante e  os guerrilheiros entraram no abrigo do inimigo. Para sua surpresa,os guerrilheiros foram abatidos no interior do abrigo, juntamente com o seu Comandante. Na verdade estávamos perante um erro de procedimento, pois, os abrigos tinham sido construídos sobre a forma  de zig-zag, uma forma geométrica, que não permite que o projéctil progrida livremente; no caso, os estilhaços de granadas de mão.

O cerco envolveu a 1ª, 2ª e 3ª companhias, comandadas por Armando Nkalilmile Nkatema, Felisberto Sambino Simo e Emílio Fernando, respectivamente; uma bateria de Morteiro 82mm, menos um pelotão (6 peças); um pelotão de Canhão sem recuo B-10 de calibre  82mm (3 peças); um pelotão de artilharia anti-aérea ZGU-1-14.5MM (3 peças) e um pelotão de metralhadora anti aérea DCK-12.7 mm (3 peças), assim como uma secção de reconhecimento, uma secção de sapadores e um grupo de comunicações. As 3 companhias que constituíam o primeiro escalão, estavam posicionadas a uma distância de cerca de 80 metros do Quartel de Omar.

O Posto de Comando da Operação, integrava entre outros, a mim, Armando Assikala(Adj. Cmdt e Com. Pol.), Benedito Búzi (Vice-Com.Pol.) Eusébio Raposo (chefe da Artilharia Terrestre), Bento Maurício Chuluma (Chefe  da Artilharia Anti-aérea), Oreste Simão (Chefe de Comunicações). Inccluía, igualmente, o comandante da 4ª companhia de Infantaria. O Batalhão de Artilharia mista menos uma bateria, era composto por: 4 Canhões reactivos B-11-P-122,4 MM, 4 Canhões 75 mm; 4 mísseis Strella 2M; 4 ZGU-1-14,5 mm,; 4 DCK-12,7 mm e 1 Pelotão de Comunicações. Este posto localizava-se no monte Mashenje, a cerca de 3 Km do Quartel de Omar.

O Posto de Supervisão da Operação estava situado no monte Machokwe, a cerca de 8 Kms de Omar. Neste ponto estavam o Chefe-Adjunto do Departamento de Defesa e Supervisor da Província de Cabo Delgado, Salésio Teodoro Nalyambipano. Integrava ainda, uma Companhia de Infantaria, comandada por Maurício Balide, grupo de comunicações, chefiado por Vigaron e duas dotações de ZGU-1-14, mm, cuja tarefa era proteger este Posto.

Assalto ao Quartel de Omar

A Operação Omar envolveu 734 guerrilheiros e cerca de 800 populares, que transportava material de guerra e produtos alimentícios calculados para resistir durante uma semana.

No que concerne à correlação de forças, considerando os 734 guerrilheiros contra 142 militares portugueses, que formavam a 1ª Companhia do Batalhão de Cavalaria 8421, o coeficiente de supremacia era na ordem de  5:1. Neste sentido, parece evidente que o inimigo tinha poucas alternativa estratégicos. s para contrariar o nosso nível de preparação para este ataque.

O assalto viria  a configurar-se numa grande operação militar, onde seia evidenciar, mais uma vez, a relevância das comunicações, como "espinha dorsal de qualquer guerra moderna". Ademais, demonstraria e glorificou uma planificação elaborada com toda a eficácia e rigor estratégicos. Concluídos todos os preparativos do assalto, cerca das 4 horas da madrugada de 1 de Agosto, via rádio, dei voz de comando ao Abel para usar megafone e ler o texto previamente prescrito para o ataque.
                                  
                                                            Texto Original
 1- ATENÇÃO COMANDANTE E SOLDADOS DO ACAMPAMENTO  OMAR ! - 3X
 2- AQUI FALA A FRELIMO- 3X
 3- TODOS ESTÃO CERCADOS PELAS FORÇAS POPULARES DE LIBERTAÇÃO DE MOÇAMBIQUE
 4- RENDAM-SE TODOS PARA A GARANTIA DAS VOSSAS VIDAS
 5-  DISPAREM  - 3X
 6- NO VOSSO PAÍS, NÃO HÁ MAIS FASCISMO REINA DEMOCRACIA CONQUISTADA EM 25 DE ABRIL PELA JUNTA DE SALVAÇÃO NACIONAL QUANDO DERRUBOU O REGIME FASCISTA DE MARCELO CAETANO.
7- MANDE UM MENSAGEIRO PARA NOS CONTACTAR CÁ NA PISTA
8- DAMOS 5 MINUTOS - 3X
9- INFORME AO TEU COMANDO QUE NÃO DEVE ENVIAR QUALQUER TIPO DE FORÇA PORQUE CÁ CONTROLAMOS A TERRA E O AR
10- NÃO DISPAREM PORQUE PODEMOS DESTRUIR O ACAMPAMENTO COM TODOS OS SEUS OCUPANTES.
11- DIRIGEM-SE PARA A PISTA DESARMADOS - 3X
12- INAME FRELIMO ( VIVA A FRELIMO EM SHIMAKONDE)

1 DE AGOSTO DE 1974
NAMATILI

Este texto foi cedido pela Senhora Modesta, esposa de Armando Abel Assikala, a 5 de Agosto de 2018. Ao regresso do assalto ao Quartel de Omar, o esposo entregou-a para guardá-la . Com o marido falecido em 2008, a Modesta ainda conserva carinhosamente esta mensagem na sus "biblioreca".

Atnásio Salvador Mtumuke á esqª e Armando Abel Assikala., Comandante
e Comandante Adjunto da Operção, respectivamrnte. Noite de 31-07-1974

Depois da ordem de rendição dada por Assikala, e seu apelo à resposta ao VIVA FRELIMO (INAME FRELIMO), em jeito de exibição da sincronia entre os 734 guerrilheiros e 800 populares (que transportavam material de guerra para remuniciar) , associando ao júbilo pela magnífica vitória,  estes gritaram, estrondosamente e em uníssono: INAAAAAMEE! Este grito matinal e sobre uma colina, ampliou-se vivamente, o que assustou o já amedrontado e atrofiado contingente colonial.

Nesta operação, foram capturados 142 soldados portugueses. Na circunstância, Assikala instou os prisioneiros a se dirigirem para a pista de aterragem, desarmados e de mãos ao ar. Em menos de 5 minutos, todos os soldados obedeceram, como sinal de rendição. Na pista, o controlo dos prisioneiros coube à 1ª Companhia, comandada por Armando Nkatema. Assikala, que também se  fizera ao local de concentração, manteve um breve diálogo com o Alferes Miliciano José Carlos Costa Monteiro, à altura, comandante interino do Quartel de Omar, que o obrigou, juntamente com a sua tropa, a se dirigirem ao "mato".

Guerrilheiros festejando o sucesso da Operação Omar

Refira-se que, ao longo desse diálogo, um soldado português arrancou a arma de um guerrilheiro e tentou disparar contra Assikala, tendo sido, porém, rechaçado. Perante esta investida, outro guerrilheiro o pontapeou, deixando-o ca´do no chão. De acordo com Armando Abel Assikala, em jeito de rendição, o Alferes Monteiro, aclamando, disse: vamos embora Comandante, quem é mais que a FRELIMO?. Queira a Paz.

A seguir, escoltados por um pelotão de guerrilheiros, chefiado por Felisberto Sambino Simo, integrando entre outros, Joaquim Nido e Onguessa Lipido, os soldados coloniais foram levados para a posição de Machokwe, onde iriam se encontrar com os camaradas Alberto Chipande e Salésio Nalyambipano. já nesta posição, Chipande sossegou-lhes, informando que estavam em boas mãos, por isso, não corriam perigo algumm de vida, porquanto a luta conduzida pela FRELIMO guiava-se pelos princípios internacionais humanitários.

Soldados portugueses  capturados dirigindo-se ao Posto de Machokwea

Em Machokwe, o camarada Chipande ordenou ao pelotão da  escolta para prosseguir até a Mkunya. Visando quebrar o silêncio da marcha e, sobretudo, mostrar a justeza da luta da FRELIMO, os prisioneiros foram sendo sensibilizados sobre o sistema fascista-colonial português, como o nosso inimigo comum.

Alberto Joaquim Chipande
           



Salésio Teodoro Nalyambipano

Atanásio Salvador Mtumuke (à esqª) e Armando Abel  assikala
Onguessa Lipido à esqª  e Joaqui Nido  Guerrilheiros que participaram na escolta aos soldados portugueses
João Baptista Djeque, soldado português capturado em Omar. Hoje é vereador
no Município de Monapo, Província de Nampula

                                                               
No dia 1 de Agosto, já a caminho de Mkunya, escapuliram 5 soldados, nomeadamente, José António Cardoso Gonçalves, Joaquim da Silva Piedade, Vasco Ponda Sone, os quais se apresentaram no quartel de Mocímboa do Rovuma. No dia seguinte os soldadosSumail Aiupa e Laquine Puanhera, por sua vez, compareceram no quartel de Nangade.

Enquanto isso, em Omar, tinha havido indicação do Comando de Operação, para que os restantes guerrilheiros não se instalassem no quartel, mantendo-se nas suas posições, pois receava-se contra-ataque da força aérea portuguesa. A população, eufórica, fez-se à cozinha, onde se apoderou de alguns bens alimentícios.

Nessa altura, 2 de Agosto, o Presidente Samora saiu de Dar-es-Salaam para Nachingwea e daqui, já acompanhado de Joaquim Munhepe (Chefe  das Comunicações) e Cornélia Focas Marino (Chefe Adjunto das Comunicações), seguiu para Mkunya. A partir deste lugar, por volta das 10 horas, via rádio (R-105), o camarada Cornélio entrou em contacto comigo, tendo informado o seguinte: " o Galo quer falar consigo", em alusão ao Presidente Samora.

Atanásio Salvador Mtumukeà dirª interagindo com o Presidente Samora a propósito da Operação Omar. À esqª Joaquim Munhepe

Prisioneiros tomando refeições em Ngapa

7.3. Contra - ataque da tropa colonial

No decurso da comunicação com o Presidente Samora, que esta em Mkunya, informei-o, entre outras coisas que  os soldados portugueses capturados já tinham ido ao "mato" e que estávamos nas posições. A minha conversa com o Presidente não chegou ao fim, devido à presença de um Dornier, avião de reconhecimento. No entanto, realcei que estávamos perante um prenúncio de um contra-ataque aéreo.  Ainda assim, o Presidente Samora foi a tempo de proferir a seguinte expressão: "filho, toma conta da situação"

Dornier D.O-27 (Namanyalomba)

De facto , o contra - ataque  aéreo aconteceu. Logo a seguir ao Dornier, veio um par de aviões FIAT G-91, e cada avião lançou uma bomba napalm sobre o quartel de Omar. Os portugueses recorreram a esta táctica porque temiam os nossos mísseis terra-ar, Strella 2 M, ainda em posição de fogo. Face àquele tipo de incursão (voo rasante), não pudemos lançar os mísseis Strella 2 M.

As bombas feriram 2 guerrilheiros, António Sabe e Paulo Mpelo. Perderam a vida no local, 3 elementos da população, designadamente Jacinto Norte, Rafael Mtumbate e Rui Nkapue

Um popular vítima da bomba Napalm

Importa referir que, no dia 3 de Agosto, já na Tanzânia, os 137 prisioneiros foram gentilmente recebidos pelo Presidente Samora Machel. A esse propósito, , o  Alferes afirmou que "Samora Machel (...) fez questão de nos cumprimentar um por um. Esta atitude mostra, mais uma vez, o carácter humanitário que sempre norteou a política da FRELIMO.

Presidente Samora, em Mkunya, falando com os soldados capturados em Omar

7.4. Depoimentos de algumas figuras do assalto

No que se refere ao assalto ao Quartel de Omar, o Alferes José Monteiro, prestou informações relevantes acerca deste acontecimento histórico. Referiu que comandava uma Companhia, cuja missão era impedir a circulação dos guerrilheiros entre a Tanzânia e o iter material bélico.ior de Moçambique, especialmente a introdução de material bélico.

Antes de se debruçar sobre o assalto, confirmou o facto de o seu país ter enfrentado a guerra colonial sem estar militarmente preparado para o efeito, apesar das diligências efectuadas nos finais da década de 1950, como atrás se referiu. Frisou que o regime fascista de Salazar não se tinha organizado, nem em homens, nem em equipamento bélico. tendo feito a preparação das primeiras companhias às pressas.

Monteiro, foi incorporado para o serviço militar obrigatório em 1973, tendo se especializado como oficial Ranger. Questionado sobre o sentimento dos cidadãos portugueses quando eram enviados para  a guerra nas colónias, sublinhou ter se tratado de um período  preocupante no seio das famílias, ao verem os jovens a serem levados para cumprir  a agenda do regime fascista em vigor no seu país. O ambi ente interno à semelhança do que acontecia nas colónias, como Moçambique, era de medo. A PIDE/DGS vigiava as famílias, limitando, deste modo, as liberdades de opinião e de manifestação. Mesmo sobre a guerra, poucos comentários se faziam, senão entre pessoas que gozavam de intimidade. Recorda-se que alguns amigos, furtando-se ao cumprimento da vida militar, refugiaram-se em França e na Checoslaváquia, Aliás, as conversas de índole política ocorriam somente no seio de jovens letrados, como ele, que na altura da incorporação, tinha concluído o 7º ano do liceu. Mesmo assim, eram em surdina, temendo-se represálias da PIDE/DGS.

Ressaltou o facto de o seu quartel dispor na altura da Operação Omar, dos melhores equipamentos, ao nível do exército português, no nosso País. Fez um detalhada caracterizada sobre a disposição do material de guerra da guarnição, tendo salientado  que esta possuía 4 obuses 8.8. 2 obuses 14, capazes de atingirem as posições da FRELIMO, sobretudo a Base Beira. Tinha igualmente, metralhadoras broning, Morteiros portáteis e um Morteiro fixo. O esquema que desenhou ilustra, alegoricamente, além dos obuses, 4 casernas no interior do círculo, a pistade aterragem, a Oriente e o rio Rovuma a Norte.
Esquema desenhado por Alf. Monteiro (25-6-2018) sobre o dispositivo do 
equipamento da guarnição do Quartel de Omar

Monteiro disse recordar-se de alguns pormenores, especialmente a garantia de que os soldados capturados não corriam risco de vida. Nas suas palavras, asseverou:

A FRELIMO posiconou-se à noite em redor do quartel. Na madrugada, ouvimos o barulho do megafone, anunciando o cerco e que deveríamos nos dirigir para a pista de aterragem. Eu não fui, mas seis colegas meus assim o fizeram. Eis que o Salvador, que era o Comandante, manda-me chamar, para ir à pista, ao que obedeci. Chegado ao local, o Salvador deu-me garantias que não corríamos nenhum risco de vida. Era um gajo porreiro. Enquanto isso, o contingente da FRELIMO, composto por guerrilheiros e populares invadiu o quartel, entrando pela porta de armas. Eu tinha 142 soldados. Estávamos cercados, mas íamos a tempo de reagir, poderia ter accionado um 8.8 e limpava muitos gajos, só que tal significaria provocar morto tanto do lado deles, quanto do nosso lado. Achei desnecessário, tanto mais que tínhamos instruções do Quartel-General de Nampula, vindas do nosso comandante, Coronel Pires Veloso, para iniciarmos a negociação do cessar-fogo local. Nós estávamos exaustos da guerra.

Ele confirma o tratamento humanitário que os soldados receberam, pois, uma vez em Ngapa, os prisioneiros beneficiaram de refeições, confeccionadas pelos guerrilheiros. Este, já numa entrevista concebida ao jornal Diabo, enfatizou que "rumámos em direcção à Base Limpopo, da FRELIMO, onde nos distribuíram, onde nos distribuíram sopa, arroz e água.

Algumas vozes, interpretando o aborrecimento de Spínola face à derrota da sua tropa no assalto de Omar. onde se remeteu para "prostituição moral" dos seus soldados, vozes há, segundo as quais o comandante interino terá sido sancionado. Entretanto, Monteiro não concorda com esta informação, reiterando que regressado a Lisboa, elaborou o relatório do sucedido, eentregou-o a quem de direito. Até à actualidade, em que jáse passaram 44 anos, nunca mais foi questionado sobre o assunto

Ainda sobre o assalto, entrevistado pelo jornal"O Diabo", de 10 de Outubro de 2006, Monteiro acentuou o seguinte:
O Diabo (OD) - Recorda-se do Comandante da força da FRELIMO que capturou a guarnição militar portuguesa de Omar, também conhecida por Namatil (Namatili)?
Costa Monteiro  (CM) Salvador Mutumuke
(OD) Na qualidade de comandante interino da guarnição de Omar foi ouvido pela hierarquia militar?
(CM) Não
(OD) E pelo poder político?
(CM) Também não.
(OD) Foi-lhe instaurado algum inquérito ou sofreu alguma punição pelo que aconteceu em Omar?
(CM) Nada,

José Monteiro, conversando telefonicamente com Atanasio Mtumuke (25-06-2018) 44 anos depois da Operação Omar.: "Inimigos de ontem, amigos de hoje"
+++++++++++++++++++++++-----------------------+++++++++++++++++
+++++++++++++++++++++++-----------------------+++++++++++++++++

Segundo Monteiro, os prisioneiros foram mais tarde, reconduzidos para Moçambique, concretamente para a cidade de Nampula. Eventualmente, por questões de segurança, os mesmos terão sido enviados para a Ilha de Moçambique. Em data pouco precisa viriam a partir de Nampula, de regresso a Portugal, num voo directo.

José Monteiro à esqª e Fernando Dava, após a entrevista, Pombal, 25-6-2018

Oreste Simão e Eusébio Raposo, integrantes da Operação, concederam uma entrevista sobre este acontecimento memorável. A respeito da sua intervenção no domínio das comunicações. Oreste  afirmou:

Na hora do jantar, o chefe Mtumuke chamou-me e orientou para preparar 4 estações de rádio. Informou-me que deveria chamar os meus elementos, carregar as baterias e estar preparado. Acrescentou que durante a transmissão da missão um rádio deve estar on line com o Centro de Preparação Político Militar  de Nachimgwea. Orientou-me para estar no comando de Supervisão, em Machokwe, onde estariam os chefes Chipande e Salésio.

Debruçando-se sobre as orientações dadas por mim, em relação à artilharia, Eusébio Raposo, acrescentou o  seguinte:

O Chefe-Adjunto Provincial da Artilharia Terrestre e Comandante do Primeiro Sector, Atanáso Mtumuke, um dia chamou-me para a Base Beira e orientou-me para preparar4 estalações de B-11-P-12,4 mm, 4 Canhões B10-82 mm, 6 morteiros de 82 mm. Deveria retreinar os soldados e aguardar nova ordem. Orientou-me, inclusive, para enviar este material e pessoal para o Centro de Instrução de Ngalonga. Esta força juntar-se-ia a outras de artilharia anti-aérea e de infantaria que estavam em preparação no interior. Eu e outros camaradas recebemos indicação para fazermos parte do seu comando em Mashenje. Maecelino Manula, comandante da batreia mista de artilharia terrestre deveria estar nas montanhas de Nakalengue.

Eusébio Raposo, Chefe da Artilharia Terrestre

Modesta Daniel, combatente e viúva de Assikala, revelou alguns episódios respeitantes ao assalto de Omar. Em relação ao texto da rendição,  referiu que o seu esposo segredou-lhe que não conseguiu lê-lo, conforme estava previsto, devido à escuridão. Informou-lhe que recorreu à sua memória, pois tinha o lido várias vezes. Destaca, igualmente, o facto do marido não lhe ter dito a verdade relativamente à ida para esta missão. Modesta acrescentou, ainda o seguinte:

Eu fiquei viúva antes de  ser viúva. O meu marido saiu da Base Beira, onde nos encontrávamos, justificando que ia a uma conversa com alguns camaradas. Estava grávida de três meses. Só que ele nunca mais voltava, até que um dia sonhei com ele já morto. Como normalmente os meus sonhos traduzem a realidade, eu chorei bastante, aspecto que cheguei a partilhar com algumas camaradas.  Só que passado muito tempo, estando no distrito de Nangade, por volta das 13 horas, do dia 1 de Agosto, mandou-se fazer a formatura. Tratava-se de uma prática habitual na FRELIMO, em todas as Frentes, para se prestar informação relevante. Na minha óptica, em função do sonho, era a confirmação do óbito do meu marido! A mensagem vinha de Nachigwea. Aliás, era sempre assim, mesmo que as coisas acontecessem perto das bases, quando fossem de grande envergadura, a sua divulgação estava centralizada em Nachigwea. Nessa formatura fomos informados que os nossos guerrilheiros assaltaram com sucesso o Quartel de Omar e que a mensagem da rendição tinha sido lida por Abel Assikala. Mesmo assim não fiquei convencida. Só que um dia, os guerrilheiros deste assalto seriam efusivamente recebidos na Base Beira. uando eles chegaram, reconheci o meu marido.

Armando Abel Assikala e sua esposa Modesta Daniel

Um aspecto relevante reflectido  no trecho da Modesta, é a forma eufórica como fomos recebidos na Base Beira, pois, entuou-se uma canção épica, composta por Manuel Bernardo Gondola. No concernente a esta canção, Gondola recorda-se do seguinte:

No Centro de Educação do Distrito de Nangade, tivemos conhecimento do assalto, no mesmo dia, via rádio, pouco tempo depois. Foi assim que preparei a população para a recepção calorosa dos guerrilheiros. Recorrendo à minha criatividade, rapidamente organizei uma canção, que viria a ter um grande impacto no cancioneiro da Luta Armada de Libertação Nacional, cujo texto é o que se segue:

A CANÇÃO                                                                                                            TRADUÇÃO

Solista: Nelo                                                                                                      Hoje
Todos: Nambiliau Kutheka                                                                 Assaltámos Nambiliau  1x   Solista: Weto Nelo                                                                                Hoje nós
Todos:  Nambiliau Kutheka                                                                 Assaltámos  Nambiliau
Solista: Tunditeka;                                                                                Assaltámos
Todos: Nambiliau                                                                                  Coro
Todos: Mikole,Mikole,Mikole                                                              Aprisionámos, Aprisionámos
Mikole mia moja narobaini Nambili                                                   Capturados 142 soldados
Nambiliau Kutheka weto nelo                                                             Ocupámos Nambiliau
Nambiliau Kutheka weto nelo                                                              Ocupámos Nambiliau
Nambiliau Kutheka weto nelo                                                              Ocupámos Nambiliau
                                     Tradução livre de Shimakonde para Português

Manuel Bernardo Gondola
         
Em jeito de síntese, importa referir que  a captura do Quartel  de Omar tem um significado singular na História recente de Moçambique, em geral, e da luta armada de Libertação Nacional, em particular. O marco principal do início da guerra está associado ao ataque ao Posto Administrativo de Chai, a 25 de Setembro de 1964.  Volvidos 10 anos de luta, ocorreu a captura a captura do Quartel de Omar, um acontecimento de grande dimensão, do ponto de vista militar e, sobretudo, político

Assim cedo, são de aceitar os fundamentos que apontam este facto como representando o fim da Luta Armada de Libertação Nacional. De facto, depois da captura dos soldados coloniais, não mais houve combates. Analisando este acontecimento, Nalyambipano e Pachinuapa asseveraram que:

Foi o último assalto que a FRELIMO executou de forma estruturada e de uma grande envergadura (...) Portanto, considero o ataque a Omar, o último combate da FRELIMO durante a luta Armadas de Libertação Nacional

Recepção dos guerrilheiros da Operação Omar, na Base Beira.
Atanásio Mtumuke, na formatura, fazendo um breve informe sobre a Operação

Chegados a este ponto oferece-se fazer algumas leituras. Ficou subjacente na abordagem deste  assunto que o sucesso de uma operação militar depende de uma diversidade de factores, tais como:

a) Correcta transmissão da missão pelo chefe superior:~
b) Aclaração da missão, ou seja, compreensão da ideia do chefe ao subordinado que vai executar/cumprir a missão;
c) Cuidadosa preparação militar dos homens para o cumprimento da missão;
d) disponibilização e domínio do equipamento a ser empregue na operação;
e) Conhecimento profundo do teatro das operações;
f) Sigilo, desde a recepção da missão, sua preparação,  até a execução da mesma.

Foram estes passos que nortearam, desde o princípio ao fim, a "Operação Omar", como seguidamente, se depreende:

* Transmissão da ordem: o Presidente Samora Machel  transmitiu-me pessoalmente e directamente a ordem, em movimento, na ausência de outros da FRELIMO.

* Preparação: foram preparados sigilosamente companhias para o ataque (treino e equipamento), sem informá-las do objectivo e do alvo.

* Assalto: uma vitória sem tiro, cumprindo o princípio de Sun Tzu, a sua incontornável "Arte de Guerra", segundo o qual. "Um chefe que está bem instruído em operações militares faz com que o inimigo se renda sem lutar, captura as cidades do inimigo sem atacá-las violentamente, e destrói o Estado do inimigo sem operações militares demoradas. O prémio maiorde uma vitória é triunfar por meio de estratagemas, sem  usar as tropas".


ILAÇÔES

As ilações que podem ser tiradas do Assalto ao Quartel de Omar são a seguintes:

* Um dos factores importantíssimos que deu vantagem à FRELIMO foi saber explorar o estado moral, psicológico e logístico do inimigo - o desgaste militar - e, a partir daí, desferir um golpe no local e no momento adequados;

* O assalto a Omar ampliou o reconhecimento da FRELIMO, aumentou as contradições internas no seio do colonialismo e agudizou o descrédito do goveno colonial português; 

* O facto de a FRELIMO ter dado o tratamento humanitário aos soldados portugueses capturados, respeitando escrupulosamente a Convenção de  Genebra sobre os prisioneiros de guerra, reforçou a aceitação do Movimento no mundo e desmentiu a propaganda colonial, segundo a qual os guerrilheiros eram terroristas canibais sedentos de sangue.

* O mérito do sucesso da Operação reside no facto de os capturados terem-se constituído em trunfo nas difíceis conversações  sobre a Independência Nacional. Assim, a Operação Omar foi o antídoto que a FRELIMO encontrou para a "Operação Referendo", engendrada pelo presidenye português, general António de Spínola.

Gerador capturado na Operação Omar

Canhão 8.8 capturado na Operação Omar

FIAT G91 pintado com uma tinta anti-radiação para limitar a acção dos mísseis Srella

Omar, 1 de Agosto de 1974. Aquartelamento da 1ª/BCAV 8421

8. Vislumbrar da Independência Nacional

A operação Omar foi antecedida e sucedida por um coquitel de acontecimentos que viriam a marcar o  processo conducente à conquista da nossa liberdade. Refiro-me concretamente ao:

1) Posicionamento do MFA face à política ultramarina
2) Rebeliões
3) Reacção do do Exército Colonial face à Operação Omar
4) Negociações Centrais e Locais
5) Enxertos da correspondência entre a FRELIMO e o Exército Colonial
6) Acordos de Lusaka e os Partidos Oportunistas
7) Ameaças do reacender da guerra
8) Ameaças do Jorge Jardim

Alguns destes acontecimentos tiveram uma relação directe e indirecta com a captura dos soldados coloniais em Nambiliau, ao que doravante designo por "Efeito Omar"

8. Posicionamento do MFA face à política ultramarina

A 25 de Abril de 1974 ocorreu o Golpe de Estado em Portugal, acontecimento engendrado por uma série de factores, com ênfase para os sócio-económicos e político-militares. Como referimos, enquanto este país vivia em regime fascista, enfrentou fortemente uma oposição interna, que condenava a  guerra  colonial. Muitas famílias portuguesas opunham-se ao envio para as colónias, dos seus filhos, irmãos e outros parentes. Contestavam, igualmente, o gasto de elevadas somas de dinheiro em despesas militares, diante  da pobreza extrema que assolava Portugal.

Após a queda do fascismo em Portugal, tinha ascendido ao poder um regime corrompido, mistura ardente de duas facções, por um lado, de verdadeiros cidadãos democratas´e por outro, de defensores ferrenhos da continuidade do sistema colonial. Os últimos, remando contra os "novos ventos" da História, procuraram criar governos neo-coloniais, tanto em Moçambique, como noutras colónias portuguesas.

As provas deste facto estão evidentes no Programa do Movimento das Forças Armadas (MFA), manietado e apresentado publicamente na manhã do dia 26 de  Abril. pelo General António de Spínola, à Junta de  Salvação Nacional, constituída por um grupo de militares designados para apoiar o Governo do Estado Português, em Abril de 1974, Eis o excerto em torno do referido programa:

O programa do MFA continha duas medidas com prazo marcado, sendo a primeira, a nomeação de um Governo civil no prazo de três semanas easegunda, a eleição de uma Assembleia Constituinte, no prazo de 12 meses, o que foi concretizado no limite desses prazos. - O Governo Provisório tomou posse a 16 de Maio e a Assembleia Constituinte  foi eleita no dia 25 de  Abril de 1975.

Relativamente à política Ultramarina, o Programa retro-mencionado 
preconizava, ainda, o seguinte:

a) reconhecimento de que a solução das guerras no Ultramar é política e não militar.
b) criação de condições para um debate, franco e aberto, a nível nacional, do problema ultramarino.
c) lançamento dos fundamentos de uma política ultramarina que conduza à paz.

Nesta versão, negociada entre elementos da Comissão Coordenadora do MFA e o general  Spínola, durante a noite de 25 para 26, acabou por ser retirada uma alínea que  clarificava o sentido da política que devia ser seguida em relação ao Ultramar. A alínea era a seguinte, que ainda foi publicada pelo jornal República, onde constava como alínea c): "Claro reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e adopção acelerada das medidas tendentes à autonomia administrativa e política dos territórios ultramarinos, com efectiva e larga participação das populações autóctones ". As duas posições eram muito diferentes e em torno deles irá polarizar-se o principal conflito  entre as correntes do MFA, neste primeiro período de revolução.

O carácter democrático e anti-colonial do MFA é manifesto explicitamente neste texto, que justifica o golpe:

A 25 de Abril de 1974 o Movimento das Forças Armadas derrubou o regime de ditadura que durante 48 anos oprimiu o povo português. A Liberdade foi restituída aos portugueses e, com ela, a dignidade e a capacidade de decidir sobre o seu destino (...) O movimento envolveu todos os participantes, ganhando, com uma espantosa afirmação de vitalidade, a força necessária para prosseguir a mudança. Democratizar. Descolonizar 
e Desenvolver, foral o lema para o progresso de Portugal ao fórum das nações livres.

A facção anti-revolucionária da Junta de Salvação Nacional, encabeçada por Spínola, pretendia  pôr de fora os princípios democráticos e anti-coloniais e instalar um governo  neo-colonial. É  motivo para se afirmar que a facção não tinha compreendido as razões porque o MFA advogava que a solução para o fim da guerra não passava por uma via militar, mas política. Os militares tinham recuado para uma solução colocada pela FRELIMO, em 1962, antes de se iniciar a Luta Armada, ao defender a busca da independência Nacional por via pacífica.

Spínola ignorava que o "novo" poder que integrava, não era resultado somente da acção do MFA, mas sim, de respostas combinadas entre si. Tratava-se, pois, de uma conjugação entre factores internos e externos em Portugal, assentes num inimigo comum : o colonialismo e a ditadura fascista, contra os quais as colónias lutavam. 

Diante desta atitude da Junta de Salvação Nacional, a Frelimo fez uma declaração pública, nos dias 27 e 28  de Abril de 1974, condenando veemente o comportamento de Spínola. O texto abaixo mostra a reacção da FRELIMO às primeiras posições da Junta de Salvação Nacional.


Neste documento, ressaltam três elementos fundamentais, nomeadamente:

*  A relação íntrinsica entre a crise do regime colonial  e o desenvolvimento da luta da FRELIMO. Isto significa , entre outros aspectos , que a crise que conduziu ao golpe de Estado em Portugal foi resultado, como se referiu dos conflitos sociais decorrentes do número acentuado de mortes de soldados em guerra no Ultramar, da depauperação da economia, devido à guerra e, consequente aumento do índice de pobreza, assim assim como do isolamento diplomático daquele país, s nível internacional.

* A inquietação do povo português  e dos povos das ex-colónias, face às manobras da neo-colonização, em que a FRELIMO reiterava que além de si, em Moçambique, não havia nenhum outro movimento que representava as aspirações do povo moçambicano.

* Manifestação explícita da prontidão combativa da FRELIMO em caso de reincidência de Portugal, em manobras obscuras e contrárias aos desígnios do povo moçambicano - a liberdade e  a autodeterminação
                                

8. Rebelião da tropa colonial

A intensificação dos combates, em cumprimento da "Ofensiva generalizada em todas as frentes", resultou em fadiga e desmoralização da tropa colonial. Este ambiente, não abonatório para qualquer guerra, conduziu a uma série de rebeliões, que acabaram por fragilizar o Comando-Chefe do Exército Colonial em Moçambique. No fundo, estávamos perante a materialização do sonho de Mondlane, segundo o qual a sua morte não impediria a continuação da Luta Armada e, acima de tudo, do seu prognóstico, apresentado em 1966, sobre o fim vitorioso da nossa luta.

Uma das revoltas marcantes foi o abandono do quartel, a seguir ao golpe de 25 de Abril, por um batalhão de comandos estacionado em Vila Pery ( actual Chimoio) .. O seu chefe, um Tenente-Coronel, enviou um comunicado para o Quartel - General, informando que os soldados tinham terminado a sua comissão militar e que se seguiriam para a cidade da Beira, de onde iriam viajar para o regresso a Portugal.

Advertiriam que abririam fogo contra qualquer pessoa que tentasse bloquear a sua deserção. De igual modo, os soldados recém-chegados de Portugal não aceitavam integrar as missões combativas, o que criava uma indisciplina generalizada, pois os "antigos militares" , isto é, os que já estavam aquartelados, não se sentiam motivados e pautavam pelas mesmas atitudes e comportamentos.

Ainda a respeito das rebeliões, o Comando do Sector B (Cabo Delgado) protagonizou a maior insurreição do exército colonial em Moçambique, ao mobilizar todos os seus sub-comandos para deporem as armas e procurar efectuar o cessar fogo local. Num documento contido com referência nº 7165/P, da 5ª Repartição, divulgado pela mensagem 2008/01/74, do Comando do Sector B, dirigido à Companhia de Omar, cujo conteúdo de segue:

Devem todos os comandos tentar criar condições locais passíveis de conduzir ao cessar-fogo na zona ZA. Para o efeito lançarão campanhas de  panfletos, cartas deixadas no mato e acima de tudo servir-se como intermediaria bem como todos os meios achados convenientes. Só deve ser prometido respeito e confiança mútuos e desejos para a paz. Todos os militares serão esclarecidos destes acontecimentos e finalidades, tendo em vista qualquer incidente  ou atitudes inconvenientes e todos os resultados alcançados serão comunicados a este comando.

A respeito das convulsões militares, Josep Cervelló destaca, igualmente, o que aconteceu a 21 de Janeiro de 1974, envolvendo o Movimento dos Capitães, na cidade  da Beira. Este solidarizavam-se com um grupo de cidadãos de raça branca que tinham lançado pedras contra a messe dos oficiais militares, protestando contra o que chamaram "apatia do exército" alegadamente perante a morte pela FRELIMO, de uma cidadã de raça branca, ao que parece, na cidade de Chimoio. Evocando o cansaço de guerra, os soldados coloniais planearam um levantamento, sob o signo "Operação Zulu", o qual não aconteceu porque receberam garantias de chefias militares a partir de Lisboa, a "Comissão de Lisboa". esta tranquilizou-lhes, dizendo que o assunto estava sob controlo, referindo-se discretamente aos preparativos da "Revolução dos Cravos". Em face desta informação, depreende-se o carácter sigiloso e sobretudo, de maturidade que rodeou a preparação do golpe de 25 de Abril.

A outra tentativa de levantamento foi encabeçada por Jorge Jardim, empresário e político português que, em Moçambique, se tornou numa figura emblemática nos finais do Império Português. Era um defensor e seguidor de António de Oliveira Salazar, amigo de Kaúlza de Arriaga e inimigo de Marcelo Caetano, tendo feito tudo para o derrubar do poder. Apoiante de uma situação neo-colonial para Moçambique, chegou a planear uma insurreição armada, visando criar, à então Rodésia do Sul (Zimbabue), uma Declaração Unilateral da Independência (DUI). Sustentou que pretendia uma DUI diferente desta, mas sim uma "DUI à moda moçambicana)
Numa série de estratégias político-militares que desenvolvia, Jardim, tentou comprometer os presidentes de países vizinhos, nomeadamente Kamuzu Banda o malawi e Kenneth Kaunda, da Zâmbia, colocando-os contra a nossa luta anti-colonial. O enolvimentode Kaunda, em particular, não preocupava a FRELIMO, pois, como referiu José Óscar Monteiro, tratava-se de um homem "de cuja boa fé não duvidávamos.

É a Jorge Jardim que se deve o surgimento e desenvolvimento de várias instituições paramilitares em Moçambique, tais como os Serviços Especiais de Informação e Intervenção (SEII), um órgão que colaborava estritamente com a PIDE/DGS, criado na década de 60. Posicionado na Vila do Dondo, Jardim Convenceu o poder colonial  para ele centralizar o treinamento dos Grupos Especias (GEs) e, criar um corpo de paraquedistas. Ao concentrar junto de si o poder político.militar, estava , certamente, a atrair a atenção de diversos sectores sociedade (políticos, empresários e outros), para o seu ambicioso plano de criação de um modelo de "colonialismo moderno", a DUL.

8.3. Negociações Centrais e Locais

A partir dos finais do primeiro semestre de 1974, desfilaram várias negociações , em Lisboa, Lusaka, Dar-es-Salaam, Amesterdão, Mueda e Montepuez, estas duas últimas  em Moçambique. Estas conversações visavam a aproximação dos beligerantes, relativamente ao fim da guerra. Portanto, existiram negociações encabeçadas pelo MFA  Central, isto é, por emissários vindos ou representantes directos de Lisboa e as que eram da iniciativa dos comandos locais, entre interlocutores regionais e dos próprios quartéis coloniais.

8.3. Negociações Centrais

No que concerne às negociações, as primeiras movimentações neste sentido, tiveram lugar em Lusaka. Com efeito, a postura pouco clara manifestada por alguns membros integrantes da Junta de Salvação Nacional,foi considerada propensa às manobras de agentes  internacionais atentos, ao conflito entre Portugal e as colónias, dispostos a tirar partido, à primeira oportunidade. Recorde-se o contexto da Guerra Fria, em que a nossa Luta decorria e os novos desenvolvimentos políticos na Áfrca Austral. Aqui destaca-se o  regime do Apartheid, na África do Sul, e a DUI no Zimbabwe, em que seus agentes viam a nossa independência uma ameaça, cujos objectivos eram contrários ao racismo,tribalismo e todas as formas de segregação social, política,económica, cultural  e religiosa, em voga naqueles países.

foi na sequência desta leitura que, antecipando a muitos países africanos, a Zâmbia manifestou a sua disponibilidade para a mediação das negociações entre  FRELIMO  e o Governo português e,, tomou as devidas diligências, directamente junto do Governo americano e indirectamente, através deste, junto do Governo Luso. Para o efeito, o Presidente Kaunda mandatou ao seu conselheiro Mark Choa, contactar a  embaixadora americana na Zâmbia. A administração americana deveria advogar junto de António de Spínola, para este aceitar negociar com as colónias portuguesas. 

Abrindo parêntesis, cabe aqui uma questão: por que os acordos viriam a ser assinados em Lusaka? Na Tanzânia havia refugiados e combatentes da FRELIMO, ANC, MPLA; SWAPO, ZANU, ZAPU. Por razões de segurança, entre outras, não era salutar levar o inimigo para o bastião de acolhimento dos movimentos de libertação!

Em Lusaka realizaram-se dois encontros, um, a 3 de Maio de 1974 e outro a 27, do mesmo mês. estas acções iam sendo coordenadas entre os Presidentes Kaunda e Nyerere com o Presidente Samora Machel que, entretanto, não tinha ainda feito diligências junto do novo Governo Português.~

Presidente Samora Machel, ladeado pelos presidentes Nyerere e Kenneth Kaunda

A iniciativa negocial com a FRELIMO viria de Portugal, ao que parece, atravessando a ponte estabelecida  pelos Governos zambiano e tanzaniano, alicerçado pela administração americana. Com efeito, o Secretário-Geral do Partido socialista Português, Mário Soares, teria endereçado um convite à FRELIMO, para um encontro em Bruxelas, no dia 6 de Maio de 1974. Porém, este seria rejeitado pela FRELIMO, por alegada falta de transparência do dirigente português . Ou seja, para a FRELIMO, não estava claro se Soares formulava o convite na sua qualidade de dirigente político ou de membro do Governo, ao que se lhe pediu, inclusivamente,que clarificasse a agenda do encontro.  Sérgio Vieira resume a resposta da FRELIMO, do seguinte modo:

1. Que aceitamos com agrado um encontro com Mário doares

2. Que ignoramos a qualidade em que deseja encontrar-se connosco, se como:                                    a. Secretário Geral do Partido Comunista Português, partido com quem mantemos relações amistosas?                                                                                                                                                      b. Ministro dos Negócios Estrangeiros, de uma potência com quem nos encontramos em guerra?

3. Que mesmo entre partidos amigos, para se reunirem,  normalmente estabelece-se, por comum acordo, a agenda e igualmente, a data e o local do encontro.

4. Que, materialmente, e dada a distância a que  nos encontrávamos de um aeroporto não podíamos estar em Bruxelas dois dias depois.

Após essa celeuma, o encontro entre as partes (FRELIMO Governo Português), teria lugar em Lusaka, um mês depois, a 6 de Junho de 1974, preparado para Zâmbia e a Tanzânia. Há indicações de ter havido outros contactos prévios, estabelecidos por Soares com alguns movimentos de libertação e líderes africanos, tais como:

1) PAIGC, em Conackri;                                                                                                                              2) PAIGC, na pessoa de Aristides Pereira                                                                                                  3) Agostinho Neto, em Bruxelas                                                                                                                  4) Comité de Libertação de África, em Londres                                                                                      5) Comité de Libertação de África, na Holanda

As delegações a Lusaka eram encabeçadas, do lado da FRELIMO, por Samora Machel, integrando Joaquim Alberto Chissano, Mariano Matsinha, Óscar Monteiro, Saúl Mbaze, Jacinto Veloso, Guideon Ndobe, Fernando Honwana, Isabel Martins, Sérgio Vieira e Alberto Chipande. Do lado de Portugal, chefiava Mário Soares, acompanhado por Otelo Saraiva de Portugal e Casanova Ferreira. A delegação moçambicana tinha preparado as conversações, observando todos os pormenores protocolares, desde as saudações às intervenções, passando pela postura. Porém, tais procedimentos acabaram por não se observar, pois o chefe da delegação portuguesa quebrou o protocolo começando o encontro com um abraço ao Presidente Samora Machel. Para todos os efeitos, o gesto foi entendido como de  criação de um bom ambiente para o início das negociações.

No que diz respeito aos aspectos essenciais desta ronda negocial, é de se destacar o facto de ter sido antecedida por uma orientação militar do Presidente Samora, que consistia na intensificação de acções combativas, até que viessem ordens de cessar-fogo, uma clara intenção de buscas de vantagens políticas. Recorde-se que neste período eu já tinha recebido a missão de preparar o assalto ao Quartel de Omar.                                                                                                                      A outra questão consistiu na clarificação de posições, em que a delegação moçambicana declarou que a discussão do cessar-fogo não podia nunca, se separar da resolução da causa que implicara o início da guerra. Tratava-se de uma posição inequívoca da FRELIMO, face às manobras da delegação portuguesa que, apesar de reconhecer a acusação que lhe era imputada, de que não vinha devidamente preparada para estas negociações, insistia em não aceitar a FRELIMO como o único e legítimo representante da luta do povo moçambicano pela sua independência.

Por sua vez, vendo-se incapaz de satisfazer este ponto, a posição da delegação portuguesa consistia no pedido de adiamento das negociações, para a realização de consultas junto do seu Governo. No entanto, mostrou-se preocupada com outros aspectos, entre eles, a continuidade da guerra, face às declarações de Samora. Refira-se que para o Governo Português, este encontro não significava " negociações de facto, mas ensaio de um balão de oxigénio. Na verdade, estava empenhado na montagem de armadilhas políticas em que esperava que a FRELIMO caísse - aceitando um Referendo. A este respeito, em 1979, volvidos 5 anos da ronda negocial, Melo Antunes concedeu uma entrevista ao Jornal Expresso, em que consta o seguinte:

Spínola ao enviar Mário Soares a Lusaka não tinha feito mais do que tentar ganhar tempo, como um manobra dilatória (...) um compasso de espera necessário à organização de reformas plíticas em Moçambique que apareceriam oportunamente no tabuleiro, a reclamar a representatividade no diálogo com Portugal; e simultaneamente, ao enfraquecimento do ardor combativo das forças guerrilheiras, naturalmente desejosas também de uma paz rápida.

Do ponto de vista político, estas conversações foram consideradas um autêntico fracasso. Realmente, não tinham sido criadas as bases profundas para um diálogo profícuo entre as partes. Reconhecendo este aspecto, a FRELIMO tomou medidas estratégicas, procurando no seio do novo Governo Português saído do golpe do 25 de Abril, personalidades capazes de agilizar o processo negocial, ora em curso.                                                                                                                                 No que concerne a esta questão, Sérgio Vieira sublinhou que:

Na análise levada a cabo pela FRELIMO, sob a direcção de Samora Machel, após o fracasso das conversações de Junho de 1974, Lusaka I, deduziu-se que haveria em Portugal vários centros de poder e que importava detectar quem efectivamente, podia decidir sobre a questão da paz ou da guerra.

Foi na sequência desta compreensão que o Presidente Samora Machel enviou a Lisboa, o seu conselheiro Tomaz Aquino Messias de Bragança, mais conhecido por Aquino de Bragança.  Constituíram seus facilitadores, alguns moçambicanos que residiam em Portugal, entre eles Prakash Ratilal, Hermenegildo Gamito, Murade Ali e Leite Vasconcelos. Terá sido este último quem, através da amizade que tinha com um jornalista português , augusto Carvalho, conduziu Aquino de Bragança a Melo Antunes.Com efeito, as diligências deste mandatado académico e político reconhecido internacionalmente, revelar-se-iam frutuosos.pois, Ernesto de Melo Antunes e Almeida Santos, viriam ser preponderantes, em todos os processos negociais subsequentes.

TomazAquino de Bragança

Em decorrência dos contactos  encetados por Bragança, no mês de Julho de 1974, houve negociações de carácter secreto, em Amesterdão, envolvendo José Óscar Monteiro, em representação da FRELIMO. Do lado de Portugal participaram alguns membros da Comissão Central do MFA , chefiados por Ernesto Melo Antunes, cuja delegação integrava Almeida Santos  e o Embaixador Cunha Rego.                                                                                                                     A questão de fundo desta reunião foi a busca de consenso para a necessidade de se preparar cuidadosa e minuciosamente os encontros oficiais. Pretendia-se deste modo, criar maior transparência nos pontos de agenda, ultrapassando a situação que acontecera na reunião de Lusaka.

Matusse traz um excerto sobre os objectivos deste encontro, retirados da entrevista concedida por Melo Antunes, ao Expresso, a 17 de Fevereiro de 1979:

(...) tinha vista, em face do relativo malogro das conversações de Lusaka, assentar com a FRELIMO a metodologia mais conveniente para manutenção dos contactos, tendo-se chegado a conclusão que deveriam evitar-se mais  encontros formais do tipo do "encontro de Lusaka", enquanto não se tivesse avançado na remoção dos obstáculos que permaneciam após aquele encontro.

Os meses de Julho e Agosto de 1974 foram caracterizados por negociações simultânea, entre a FRELIMO e o Governo Português, porém envolvendo separadamente, a Comissão Central do MFA, por um lado e, comandantes de alguns quartéis portugueses, em Moçambique, por outro. Ao nível do MFA realizaram-se três reuniões, em que a primeira aconteceu a 31 de Julho a 2 de Agosto, em Dar-es- Sallam, chefiada pelo capitão Melo Antunes. A segunda , foi de carácter secreto, chefiada igualmente por Antunes e, a terceira, teve lugar a 15 de Agosto, liderada por Mário Soares.                                                                                                                                               Refira-se que Melo Antunes, acompanhado por Victor Crespo e Almeida Santos, chegou a Dar-es-Sallam, na tarde de 31 de Julho de 1974.  No mesmo dia a delegação da FRELIMO, chefiada por Samora Machel, integrando Marcelino dos Santos, Joaquim Chissano, Jorge Rebelo, Óscar Monteiro e Armando Panguene, concentrava-se na capital tanzaniana. Na mesma data decorreu a primeira sessão de trabalho, das 19h30 minutos às 21h15 minutos.

A essa hora tínhamos cercado o quartel de Omar, aguardando pela madrugada do dia 1 de Agosto para o ataque, assalto e ocupação. É  motivo para dizer que estávamos a cruzar duas frentes, por um lado a militar e, por, a político-diplomática, esta última que não era do meu conhecimento.

De acordo com Almeida Santos, paraaspectos,  que colocariam este  reunião, Melo Antunes tinha sido recomendado por Spínola a fazer uma série de concessões, mas salvaguardando dois aspectos que colocariam os moçambicanos numa condição de contínua dependência política de Portugal. De acordo com a proposta, deveria existir um período de transição de 4 a 5  anos e que o respectivo governo seria composto por três quartos de membros nomeados por Portugal e um quarto, designado pela FRELIMO.

A segunda reunião revestiu-se de um carácter secreto. O capitão Melo Antunes, acompanhado por Victor Crespo, encontrou-se com o Presidente Samora Machel, em Dar-es-Sallam, de quem recebeu a proposta do texto dos Acordos de Lusaka. Deste encontro depreendem-se duas leituras, complementares entre si. Uma, que evidencia o postulado português plasmado no Comunicado do MFA, pós golpe de 5 de Abril, o qual defendia claramente que o cessar-fogo dependia de uma solução política e não militar. A outra, indica que a FRELIMO tinha encontrado, de facto, as pessoas certas para um processo negocial frutuoso. Neste aspecto, o mérito vai, particularmente para o conselheiro Aquino de Bragança e em geral para todos os guerrilheiros.

A terceira reunião, chefiada por Mário Soares , integrando Melo Antunes e Almeida Santos, teve lugar no dia 15 de gosto de 1974, na mesma cidade. O Presidente português, António de Spínola, tinha dado outra recomendação à sua delegação - que a FRELIMO pedisse desculpa a Portugal, pelos distúrbios causados, em alusão ao assalto ao Quartel de Omar. Parece que a condição fundamental para a retomada das negociações. À semelhança dos encontros anteriores, este não chegou a nenhum consenso, porque a FRELIMO voltou a embadeirar-se no "Efeito Omar", não só para se contrapor ao Spinola, como também para reiterar o esclarecimento da Lei 7!74, de 27 de Julho acima referida.

Na verdade neste encontro, o "Efeito-Omar" colocou a delegação da FRELIMO numa posição vantajosa face à delegação portuguesa, que não tinha produzido qualquer resultado palpável, desde o início das negociações. Pelo contrario, ganhámos pelo "finca pé" na exigência do reconhecimento do direito do povo moçambicano à sua independência e na situação do princípio de transferência do poder â FRELMO . A adicionar a estas exigências ou ganhos contínuos, a FRELIMO mencionou que nas rondas negociais seguintes  deveria constar a data da Independência,  que seria fixada no dia 25 de Junho de 1975, coincidindo com o dia da sua criação, em 1962. Invertendo a proposta trazida pela delegação portuguesas, a FRELIMO exigiu que o governo de transição a ser estabelecido, fosse composto por três quartos dos membbros nomeados por si, e um quarto, por Portugal.

Refira-se que existe um debate ainda candente em torno de uma cassete respeitante à rendição  da Companhia do Quartel de Omar, havendo duas versões a respeito desta "encomenda". A primeira, sustenta que Antunes teria entregue a Spínola, que, no entanto recusou-se a escutá-la. A outra indica que o capitão, reflectindo sobre a gravidade da situação que encontrara nas negociações, sobretudo o conteúdo da gravação, alegadamente, em nome da disciplina militar, não terá tido a coragem suficiente para transmitir o sucedido ao seu superior hierárquico. Tudo fez para evitar trespassar-lhe aquela informação bastante pesada. A este respeito, Almeida Santos em entrevista ao Expresso, de 17 de Fevereiro de 1979, teceu o seguinte comentário:

Ele era .... Intelectualmente superior, corajoso e muito inteligente. Melo Antunes era também militar. E mesmo Ministro sem Pasta, não deixava de ser um Capitão que, naquela ocasião, se prepara para ir falar com um general.

Ernesto de Melo Antunes, junto a um helicóptero Alluet III, em Angola

Sobre este assunto,Almeida Santos concedeu uma entrevista, na qual destacou três aspectos relativos às negociações de 15 de Agosto, nomeadamente, a falta de apresentação de desculpas conforme a orientação presidencial, a reeixibição da gravação pelo Presidente Samora e a angústia e o desespero de António de Spínola, devido à humilhação do seu Exército. Referindo-se ao pedido de indulgência, assim se pronunciou:

Assim, fizemos. Mas com surpresa nossa, Samora Machel  começou por pretender desconhecer do que estávamos a falar.
Emboscada de Omar? Uma Companhia aprisionada?
Por fim fez-se luz no seu espírito:
O quê? Aquela entrega dos vossos soldados'
E voltando-se para um assessor da sua delegação:
Traz a cassete... 
Cassete? Íamos de surpresa em surpresa. Mas a verdade é que a misteriosa cassete veio, foi por nós ouvida e, ao ouvi-la ficou a constituir a maiores humilhações por que terá passado a delegação de um paés. É claro que não havia lugar à existência de desculpas. Limitámo-nos a pedir uma cópia da cassete para em Lisboa documentarmos isso mesmo. Mal chegados, a primeira coisa que o Presidente Spínola quis sa ber de nós foi se a FRELIMO tinha ou não apresentado desculpas.

Lamentamos informar que não era caso disso. Trazemos aqui uma cassete ...

Uma cassete? 
É verdade! Una cassete!

Logo se pediu um leitor de cassetes, Mas pouco tempo depois de ter começado a ouvi-la, o Presidente mandou abruptamente desligar a maquineta. Manifestamente perturbado. Não sei se invento dizendo que vi brilhar, por detrás so seu inseparável  monóculo, uma lágrima de comoção. Ou de raiva? (...) Diz no seu livro que se recusou a ouvi-la, bem como "aceitar que tão vergonhosa rendição traduzisse o espírito das Forças Armadas Portuguesas em Moçambique. Verdade é que recusou a ouv-la até ao fim. Mas o que chegou a ouvir bastou para ter escrito que essa gravação ficará aa assinalar uma das mais "vergonhosas façanhas do Exército Português, ao oferecer a Samora Machel, na mesa das negociações, uma arma decisiva. As afirmações  produzidas no acto a rendição, designadamente as saudações à FRELIMO, como libertadora de Moçambique e do próprio povo português, constituíram prova irrefutável do índice de prostituição moral a que haviam chegado alguns militares portugueses.



CONTINUA






CONTINUA




CONTINUA




Continua


CONTINUA
































































CONTINUA

















































    
























 












 

Páginas

Páginas

Armamento e comunicações

Clique em play-in memories dos camaradas falecidos.