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Livros da guerra colonial

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sexta-feira, 27 de maio de 2022

MANUEL NEVES SILVA -HISTÓRIAS DA GUERRA (4º EPISÓDIO)

 

4 - CID, O RADIO-MONTADOR DE MUEDA, O “XOLDADO AXIM-AXIM” E O RUSSO BREJNEV- (Zona de Mueda)



Massacre de Mueda. 16 de Jubnho de 1960
Fumavam os dois, o Furriel Radio montador Cid e um soldado da Companhia de Caçadores 3503 e falavam uma conversa que fui percebendo à medida que me aproximava de ambos na parada poeirenta de terra batida do aquartelamento de Mueda.

Ao fundo o refeitório das praças, paredes meias com a oficina do Radio montador. Do lado direito as escadas exteriores de betão desguarnecidas de corrimão, que davam acesso à Secretaria da minha Companhia, a Companhia de Caçadores 4140.

O Cid no seu impecável uniforme verde, nos ombros os amarelos, divisas das responsabilidades de Furriel, tinha aterrado há poucos dias neste teatro de guerra. Ainda zombie com tanto stress que via e sentia no ar, ia ouvindo relatos de emboscadas dos “turras”, de berliets minadas e até já tinha vivido um ataque à morteirada a esta cidadela militar, numa madrugada em que os morteiros dos Frelos o atiraram da cama para fora, quando o vi na penumbra do corredor da “flat” dos Furriéis em cuecas, abraçado à sua G3.

Foi o seu baptismo de fogo. Estava familiarizado embora ainda com o estatuto de Cheka.

Conhecia-o bem. Tínhamos sido colegas no Curso de Electricistas na Escola Industrial de Leiria, onde éramos conjuntamente com o Carreira que acabaria por ser mobilizado para a Guiné, um trio quase inseparável e com vaidade pelo menos minha, os melhores alunos se a memória não me falha. Éramos os Bravos da Calçada. Até fomos selecionados pela Mocidade Portuguesa para frequentar um Curso de Formação Juvenil de uma semana num Hotel Seminário de Fátima com outros jovens do distrito e onde tentaram debalde lixiviar-nos a cabeça.

Passados dois anos foi encontrar-me em Lisboa no Instituto Superior de Engenharia, onde eu estudava para ser Engenheiro Electrotécnico e ele vinha a fim de ser Engenheiro Civil.

O Serviço Militar abalroou-nos os estudos. Mobilizado para a guerra eu fui na frente com a especialidade de Armas Pesadas, e fui cair em Mueda, terra da guerra no planalto dos Macondes no Cabo Delgado de Moçambique.

Foi com mútua alegria e tristeza sua, que o vi chegar a este inferno uns meses depois em 17 de Janeiro de 1973, quando festejámos o reencontro, com umas laurentinas frescas na Messe de Sargentos. Foi uma tertúlia de relembrar comuns vivências anteriores. Foi aqui que me disse que até á data tinha tido sempre sorte, e talvez porque era eu que lha dava. Contaria ele agora com o talismã da minha presença?

Hoje acho que ambos tivemos sorte por sair ilesos, sem qualquer furo no cabedal, daquele buraco. E penso que naquele inferno, foram muitos acasos felizes, que ditaram a nossa sorte. Ambos escapamos muitas vezes por pouco.

O soldado da 3503, portista do Porto e do seu Futebol Club, tinha um aspecto esquálido, alto, magro, de tez amarelada pelo sol do planalto e pelas mais que muitas operações de guerra por aquelas matas do Vale Miteda.

Tinha a cabeça cacimbada pelo troar dos rebentamentos das minas lá nas picadas e pelo som costurado das kalashnikov. Em suma estava “apanhado” por todo este clima.

A sua farda coçada de kokuana, orgulho que já contava mais de um ano de todas essas experiências de guerra, crescia para fora do seu parco corpo estreito, apenas cingida com o cinto de lona que sobrava em mais de sete furos perna abaixo.

Palrava com as mãos e a com a boca, enquanto dirigia o olhar a um grupo de soldados negros por ali encostados á oficina do Cid, Furriel Radio montador

-” Num posso cum estes gajos, pretos comunistas dum caralho!”

Ao que o Furriel tocando-lhe amigavelmente o ombro ia aconselhando dizendo

- Tem calma pá, são homens como nós e aqui estão a sofrer como nós.

O soldado dá mais uma bifa no cigarro, ajeita o quico descambado na cabeça e põe os olhos no Furriel:

-“ Tem rajão meu Furriel, tem rajão.”

Ainda as suas bimbas palavras não tinham sido proferidas, quando um negro que se destacou do grupo dos encostados á parede, dele se aproxima segurando um cigarro apagado na boca:

- Dás-me lume se faz favor.

Não tolerou a “ousadia” do negro. Ele que até estava ali numa animada tertúlia política com um Furriel. Como pôde ser interrompido assim, sem jeito, por um negro comunista e que nem sequer cumprimentou com as honras militares da praxe o seu Superior Furriel Cid?

Puxou o braço bem atrás como quem rearma a culatra da arma e balanceou-o à frente de punho fechado na direcção da cara do negro, que tempo não teve para evitar o que não esperava e de se ver estatelado no chão, com o que ainda restava do cigarro preso na boca. Enquanto o negro de olhos esbugalhados, assarapantado com a surpresa, o susto e a dor do murro se levantava e abandonava o sítio, o Cid puxava o soldado agressor pelo braço.

- Então pá, o que se passou contigo? Porque bateste no homem? Tens de ter calma pá!

“-Desculpe meu Furriel mas um home passa-se, num é capaz de se cunter carago!”

Quando deu conta da minha presença, este soldado e para que não restassem dúvidas ao Cid ou a mim, das suas convicções ideológicas acendeu nervosamente outro cigarro com o lume que negara ao negro, passou a mão pelo peito, como quem compõe e abotoa uma cerimoniosa peça de vestuário e apontando o indicador na direcção do Cid:

-“Meu Furriel! Já biu, eu nas Nachões Unidas com o meu cajaquinho de Grilo,a dizer para aquele filho da puta daquele russo de merda:- Foda-che Brejnev, querem guerra? Pois "tê-la-ião”.

Ataque a Mueda em 21 de  Janeiro de 1974
Notas:

Berliet- Camião de fabrico francês usado pelo exército português

Frelo- Guerrilheiro da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique)

Cheka – Soldado com pouco tempo de serviço, pouca experiencia da guerra

Kockuana- Soldado mais velho e mais experiente na guerra. Este termo significa também em Suaili, homem velho ou mulher velha.

Kalashnikov- Arma de fabrico russo, usada pela FRELIMO

Brejnev- Á época era o Secretário Geral do Partido Comunista da então União Soviética.



 

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