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Livros da guerra colonial

Miandica terra do outro mundo


segunda-feira, 16 de maio de 2022

MANUEL NEVES SILVA -HISTÓRIAS DA GUERRA (3º EPISÓDIO)

 

 

O ZÉ NUNGO E O ASSALTO À BASE QUIDOLOLO (Zona de Nangade)-Moçambique-Guerra Colonial

Madrugada do vigésimo terceiro dia de Dezembro de 1973. Estávamos em Nangade, no norte de Moçambique um bonito planalto, miradouro sobre o rio Rovuma, com a Tanzânia lá ao fundo. Daqui até á Base da Frelimo, Circulo de Quidololo, esperava-nos talvez um dia de marcha a pé. Éramos dois grupos de trinta homens cada, o GE1 214 sediado aqui em Nangade comandado pelo Furriel Omar, o único negro que conheci a comandar um Grupo Especial nesta guerra, e o meu GE 212 de Pundanhar.

O meu Grupo tinha chegado aqui na véspera, ao cair da tarde, integrados numa coluna logística militar na sua passagem por Pundanhar, o nosso aquartelamento.

Este comboio de viaturas militares, vindo de Palma, bonita vila do Indico rumaria a Nangade, passando por Pundanhar e Muidine, ficou descrito nos relatórios de acção com o nome de código Repto21. Saíra no dia 18 e acabaria por gastar cinco longos dias a chegar ao seu destino a oeste, lá mais para o interior.

Ao longo deste perigoso trajecto foram topadas e desfeitas pelos grupos de picagem e detecção de minas da 1ª Companhia do Batalhão de Caçadores 5013 também sediada em Pundanhar, três minas anti carro. Quedou por detectar pelo menos uma antipessoal, dessas que eram dirigidas a ceifar as pernas de quem as calcasse e que afortunadamente para alguém acabaria por apenas destruir com estrondo o pneu duma viatura.

Estas colunas militares Palma-Pundanhar-Muidine-Nangade ao longo duma perigosa picada paralela ao rio Rovuma, faziam-se amiudadas vezes, tinham o objetivo de abastecer de víveres e munições chegados por mar a Palma, as tropas aquarteladas no interior, em Pundanhar, Muidine e Nangade Eram acções de grande perigo, pelas flagelações das frelas2 kalashes e pela quantidade de explosivo trotil3 nas traiçoeiras minas camufladas no chão que tínhamos de pisar. Muitos soldados encontraram aqui a morte e muitos mais aqui ficaram estropiados, ao longo do tempo.

Em Pundanhar, ouvi um soldado da Primeira Companhia do Batalhão 5013, cantar esta angústia nos seus versos:

“Coluna é picada, é Nangade em pensamento.

É a G34, é a ração, é amargura e sofrimento.

Cada um sofre p´ra si, se a noite cai na picada.

Ninguém dorme, ninguém sonha, com medo da morteirada.

Coluna já feita, é coisa que não se paga.

Já ninguém pensa na mina, turra é coisa passada.”

Chegamos inteiros, mas cansados, sujos, impregnados de pó e suor, uma segunda pele. Não havia duche, não havia cama e assim a noite foi passada aqui dentro do perímetro desta cidadela militar de Nangade, mal dormindo ou não dormindo, cochilando, “espalmarrilhados” no chão, cada um sofrendo para si.

Às cinco da manhã já descíamos o planalto dando cumprimento á desenhado Operação Reformista 8, rumo à região de Quidololo.

A chuva que a espaços começava a cair impregnava-nos até aos ossos, empapava-nos a marcha, embarreava o matope, tornava penoso o caminhar.

Acompanhava-nos uma mulher. Tinha sido capturada pela tropa naquela região numa parecida acção anterior. e que contra a sua vontade, coagida, nos guiaria à localização da Base dos turras. Levava tristeza e muito medo a manamuca5. Sabia que iriamos atacar os seus, quiçá os seus familiares. Temia pela sua vida.

Eu também carregava angústias, não sabia onde me ia enfiar, não sabia o que nos esperava. O major, em Nangade quando nos entregou aquela guia, durante um pequeno briefing disse-nos que havia notícia de terem estacionado naquela Base centenas de guerrilheiros vindos da Tanzânia. As ordens dele era para entrarmos, aniquilar o inimigo, destruir todas as palhotas, todas as instalações, todos os meios de vida e apreender armamento, documentos e munições.

Não dava tréguas a chuva, a marcha seguia empastelada ao longo do “alagoado” chão. Alternavam-se à nossa passagem densos trechos de cerrada vegetação, com luminosas e abertas clareiras de capim.

Quando a tarde começou a crescer, densa, triste e chuvosa, parámos a marcha para trincar a ração, ganhar alento, descansar, retemperar forças. As nossas fardas colavam-se ao corpo, o chão estava enlameado. Grossa camada de matope6 forrava as nossas botas. Descansar? Como? Recostei-me a uma árvore e tentei aplacar os cansaços assim, de pé. A fadiga pôs-me sentado, enrolado na lama qual salamandra escorregadia e húmida. Assaltavam-me pensamentos difusos, assaltavam-me todos os receios, todas as incertezas e todos os medos deste mundo.

-Centenas de guerrilheiros? Se nos enfiamos lá, apanham-nos á mão como coelhos, porra, porra. Não. Eu não ia ledo, ia constrangido. Sentia-me um erro de casting neste filme. -O que estou aqui a fazer? Esta guerra não é minha.

Apoiava-me na aparente serenidade dos outros graduados do meu grupo, os Furriéis Balbino e Coroa, que me inspiravam confiança e alguma segurança. O Coroa já fintara a morte numa outra anterior operação, quando uma frela bala, foi embater no seu peito justa e milagrosamente em cima de um carregador de munições que levava no bolso da camisa.

Depois de engolir as sardinhas da lata da ração embrulhadas num pão duro e beber a laurentina, uma das poucas cervejas de lata que levava, levantei-me, pus a arma de bandoleira ao ombro, descambada costas abaixo e ateava mais um cigarro, quando o Amidjai, o cabo, que por feitos em anteriores e quejandas aventuras tinha adquirido o apodo de “O Mata Cobra”, abeirou-se de mim gingando o corpo, e de modo convicto, certeiro, decidido disse, apontando um monte à nossa frente:

-Ma Furriel Siliva eu vai naquele morro e levo manamuca.

Era óbvia a sua intenção e tive que travar aquela acção, aquele feminicidio que me parecia eminente.

-Para que queres fazer isso Mata Cobra? Pára aí. O que queres fazer à mulher?-

-Siliva , eu vai com ela de mão dada, depois quando eu chega lá no monte o Siliva vai ouvir um tiro e eu volta sozinho. Depois furieli escreve no relatório que mulher fugiu e a gente não vai na operação, a gente volta para Pundanhar.

-Não Amidjai, nós não vamos matar a mulher. Nós somos muitos, defender-nos-emos e ninguém vai morrer. Vai correr tudo bem.

Retomámos a marcha em direcção às posições dos frelos serpenteando receios, ansiedades. A meio da tarde, vimos abrir-se um luminoso e quente sol que pôs as nossas roupas a fumegar, secando-as quase completamente. Ficámos mais confortáveis dentro de todo aquele desconforto e assim continuámos andando e andando, penetrando a compacta mata.

Já ia adiantada a noite, quando bem perto de nós ouvíamos o bulício da vida na aldeia, pessoas que falavam, galinhas que cacarejavam. Havíamos entrado na região de Nkonga, no indefinido Círculo de Quidololo, estávamos em cima do objectivo. Aproximámo-nos ainda mais em passos fantasma, nervosos, silenciosos e contidos.

Furriel GE Omar

-Aqui -disse o Furriel Omar. --Vamos passar o resto da noite e atacaremos de madrugada

Era este Furriel que comandava de facto toda esta acção. Era nativo da zona e conhecia o terreno, falava a mesma língua dos “turras”. Era uma mais-valia para o exército.

Ouvindo o pulsar da aldeia, ali ficámos aninhados no chão, não dormindo, não sonhando, esperando pela madrugada, quando os barulhos virassem silêncios e a aldeia ficasse mais dormida.

Foram horas de muita ansiedade, de muita tensão, de muitas angústias, de sofrimento. Amanhã será a véspera de Natal e nós iríamos matar e ser mortos. Este pensamento atormentava-me, “acagaçavam-me”, que nestas merdas, quem tem cú tem medo.

O meu relógio dizia as quatro horas da manhã, quando “sussurradamente” o Omar. disse:

-É agora! Vamos entrar!

E foi distribuindo ordens e secções de homens para atacar em frente, outras para guardar os flancos e uma outra para mirar a retaguarda.

Avançando céleres e abrindo cerrado fogo de G3, a secção da frente entrou. Gerou-se de imediato uma grande confusão de gritos, de correrias, de fuga dos habitantes da aldeia. Fomos flagelados com alguns tiros de kalashnikov. Assim íamos irrompendo aldeia adentro, correndo, deitando, levantando, rebolando, praguejando, ziguezagueando. O assalto estava a acontecer. Tinham cessado os silvos dos projécteis “turras” das kalashnikov. Calaram-se as nossas G3.

Quando entrei já tudo era fogo. As altas labaredas consumiam as palhotas, iluminavam aquele cenário, feriam a minha sensibilidade. Era a guerra, assim vivida na primeira pessoa, na minha pessoa. Aquele espaço estava vazio de gentes, todos tinham fugido mata dentro.

Demorámos nas buscas de armas, documentos, víveres, tudo o que fosse ou parecesse importante, inspeccionando cubata por cubata enquanto tudo ardia.

Amanhecia, o dia ia amadurecendo, o sol já queimava e a luz dava-nos agora outra imagem, mais real, mais vívida desta Base da Frelimo.

A aldeia era muito arborizada, sombreada, muito arrumada. Havia caminhos, azinhagas, ruelas ajardinadas. Impressionou-me ver uma escola de lama com bancos artesanais feitos de paus entrelaçados, vazia de crianças.

Continuámos a vasculhar, a remexer todos os recantos na busca de mais troféus, quando de repente começamos a ser “abonados” com granadas de morteiro. Ouvíamos o som dos disparos e depois aquele silvar, cada vez mais agudo, aquele “dopler” dos projécteis a rasgar o ar na nossa direcção. As morteiradas começaram a chover estrepitosamente à nossa volta, abrindo crateras, projectando terra para cima das nossas cabeças. Os gajos na fuga tinham levado os “tubos” e as munições e agora eram eles que comandavam o macabro baile.

Alapados ao chão, de armas aperradas e viradas para eles, esperávamos, Nada havia a fazer naquele momento. Era ineficaz a G3 para varrer aquela distância. Eu fumava cigarro após cigarro contra o enervamento, a incerteza e a espera. Eu era o medo vestido de coragem. No meio da confusão apercebi-me que estava a ser atingido por cápsulas de munições de G3. Ao meu lado, nervosamente o Cashisha meu soldado maconde, dava ao gatilho com o cano apontado a eles, e a janela de ejecção da sua arma cuspia os quentes invólucros açoitando-me a cara. Agarrei-lhe o braço e gritei:

-O que estás a fazer pá?

-Estou a atirar neles.

- Neles? Estás a vê-los?

-Não.

-Então, pára essa merda.

E foi neste momento que ouvimos ali na nossa frente as “kalashes” a cantar para nós. Eles estavam perto, nas margens da floresta circundante e tentavam alvejar-nos. Havia que agir. O coração queria saltar-me do peito, a adrenalina disparava, o corpo transpirava, o tempo parava.

- Porra, temos de atacar, temos de nos abrigar, temos de pirar-nos daqui - gritei.

Então na minha esquerda vejo o Omar erguer-se e resolutamente correr na direcção deles, rajadeando a mata, qual tango dos barbudos Todos o imitaram e cantavam agora as G3 correndo na direcção do perigo, aos gritos de:

-Agarra o gajo! Agarra o gajo!

As armas kalash emudeceram. A nossa heróica corrida de contra ataque virou a nossa fuga. Parámos meia hora depois, para nos organizarmos.

Tínhamos provocado a morte de três pessoas daquela base, tínhamos queimado mais de meia centena de cubatas. Tínhamos capturado duas mulheres, uma criança e um guerrilheiro, uma espingarda Mauser e ainda uma espingarda artesanal, um “canhangulo”.

Uma das mulheres, a mais velha era avó da criança. Era triste ver a assustada criança chorar nos braços da sua cocuana7 avó, a falta da sua progenitora, que quem sabe, poderia ter ficado ferida ou talvez morta pelas nossas balas.

Verificámos que no meu grupo havia um homem em falta. Era o Zé Nungo, maconde, duro e negro como o ébano, soldado de trinta e tal anos, um dos poucos do Grupo que não falava português.

Preparávamo-nos para voltar atrás, a ir por ele, um contratempo mais a enfrentar, quando ao fundo no meio do denso arvoredo aparece o Nungo de camisa esfarrapada, meio desvestido, quase nu, de arma aperreada, assustado, grunhindo e gesticulando sem parar.

Vinha acossado o homem. Eu olhava-o, entendia os movimentos mas não decifrava aquele “palrar bantu”. Percebi depois que tinha ficado preso na densa vegetação. Perdido, tinha-se apercebido da aproximação dos “frelos” e temendo pela vida rasgou a farda e fugiu atrás de nós, pisando a esteira que deixámos.

Acalmou-se o Nungo e já ria da forçada aventura de feliz final, e da alegria de nos ter reencontrado exibindo os seus afiados dentes, essa especificidade da cultura maconde.

De pronto retomámos a marcha. Era perigoso permanecer ali no meio do nada e sem conhecer o terreno. Haveria mais dois dias de angustiante e perigosa caminhada de retorno a casa, “maningue” caminho a percorrer.

Separaram-se os Grupos para seguir em direcções opostas. O Omar seguiu para o interior rumo a Nangade, nós virámos em direcção a Pundanhar lá mais para as bandas do litoral Índico onde chegaríamos ao fim da manhã do terceiro dia, 25 de Dezembro, Natal de 1973, depois de ter acontecido mais uma mal dormida, penosa e chuvosa noite.

Connosco trouxemos a avó e seu neto que acabariam integrados no povo de Pundanhar sob controlo da tropa portuguesa.

Saberia depois que no regresso a Nangade, o outro Grupo tinha sido perseguido e atacado por cerca de seis guerrilheiros da Frelimo armados de bazucas, metralhadoras e armas automáticas ferindo o Furriel Omar e um dos seus soldados.

Foi assim a minha quadra do Natal de 1973. Quedam-me estas memórias difusas, brumosas, amarelecidas pela sépia do tempo e já muito imbricadas em memórias de tantas memórias na vertigem da passagem de tantos anos.

Referências: Blogue-História do Batalhão de Caçadores 5013, Pág. 12. Pundanhar-Muidine-Nangade. Anos 1973 e 1974

Notas:

1-GE- Grupo Especial, composto por soldados indígenas

2.Frelas- Relativo a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique)

3-Trotil- Explosivo TNT(Trinitrotolueno)

4-G3- Arma usada pelo exército português

5- Manamuca -Mulher

6—Matope -Barro, lama


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