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Livros da guerra colonial

Miandica terra do outro mundo


segunda-feira, 2 de maio de 2022

MANUEL NEVES SILVA -HISTÓRIAS DA GUERRA (2º EPISÓDIO)

2- AQUELE MOZUNGO* QUE SOFREU ALI (Zona de Palma)-Norte de MOÇAMBIQUE......1973

Outubro de 1973, mês do Ramadão e da castanha de cajú. Estávamos em Palma. Aqui tínhamos chegado uma semana antes vindos de Pundanhar, percorrendo em marcha a pé os cerca de 40Km,que ligam estas duas localidades do Norte de Moçambique. A quase totalidade dos soldados do meu Grupo, o GE 214, era muçulmana e natural desta vila. Aqui nos deslocamos para que eles pudessem celebrar com as suas famílias esse preceito islâmico.Para mim foi uma espécie de férias, um período bem passado. Esta praia do Indico, conquistada ao Sultão de Zanzibar em 1887 pelo Coronel Palma Velho, queda-se desde então com o nome do militar português e exibe ainda os vestígios das muitas escaramuças entre alemães e portugueses durante a Primeira Guerra Mundial.

Oitenta e seis anos depois do Coronel Palma aqui estávamos nós com outras guerras, outras façanhas.

Não nos estavam agora atribuídos, quaisquer serviços ou responsabilidades militares. Enquanto os homens macuas do grupo se integraram com os seus, no aldeamento, eu tinha assentado arraiais aqui no aquartelamento militar, e usufruía das frescas e loiras laurentinas das mach-mahon , dos petiscos de caranguejo e lagosta, abundante marisco desta praia, na onírica baia do Tungue de águas azul turquesa, cercada de extensos e exuberantes coqueirais e palmeirais.

Iríamos por fim regressar ao nosso aquartelamento, integrados e participando na escolta a uma coluna logística desde aqui até Pundanhar, a nossa casa. A caravana de camiões civis e berliets militares seguiria depois até Nangade.

A abertura do itinerário estava a cargo da Companhia aqui sediada. Saímos de madrugada. O dia anunciava-se quente e luminoso. Logo após a saída, os grupos de detecção de minas, começaram o seu perigoso trabalho, tomando a dianteira à primeira viatura deste comboio, a chamada viatura rebenta minas. Este camião berliet por ser o dianteiro, ia lastrado com areia, de modo a minimizar o impacto causado por alguma mina, que tivesse escapado aos detectores de metais ou às picas.

E lá iam os “picadores” na frente, apalpando o caminho, picando aqui, picando além, esquadrinhando cada palmo de chão com a “pica”, essa ferramenta simples, composta de um prego amarrado na ponta de uma cana de bambu.

Não tardaram a aparecer os primeiros engenhos explosivos de uma série de muitos e a cada achado os homens dos detetores e das picas gritavam:

-Mina! Sapador à frente!

E lá ia o Sapador de minas e armadilhas, neutralizar cada macabro achado, colocando-lhe mais trotil e estopim em cima, provocando a deflagração daquela merda toda.

Palma, escultura com peças de viaturas minadas
Assim fomos prosseguindo num andamento lento, porque a cada passo apareciam enterrados no chão, mais e mais engenhos explosivos e sempre a mesma frase:

-Mina! Sapador à frente!

Foi tantas vezes este Furriel Sapador chamado á testa desta mole de homens e camiões, que resolveu permanecer lá, mesmo na frente, atrás dos descobridores de TNT, imprudentemente sentado justamente sobre o guarda-lamas da roda esquerda da primeira viatura, a tal berliet rebenta minas.

Este graduado tinha chegado uns dias antes da Metrópole e estava agora no seu baptismo de fogo. Tinha essa especialidade, a de sapador de minas e armadilhas, trabalho onde não há margem para erros. Se acaso ao azar, uma vez se erra, será com toda a probabilidade, a primeira e última vez a fazê-lo.

Meia hora não era passada, quando um grande estrondo nos estremeceu e vimos a viatura da frente saltar envolta numa nuvem de pó.

Tinha acontecido. A roda esquerda, exactamente aquela debaixo do assento do Sapador tinha calcado uma marmita, das grandes, daquelas anticarro, que escapara à equipa de detecção. A berliet, ficou desfeita. O Furriel foi pulverizado.

Vasculhámos as redondezas procurando e juntando restos, bocados do seu despedaçado cadáver.

Ali ficámos retidos por muito tempo. Havia que capinar, alijar um espaço livre de árvores, improvisar um Heliporto. Viria um helicóptero. O cadáver seria levado para a morgue em Mueda. Havia que desimpedir o caminho, remover o carro desfeito e levá-lo atrelado a outra viatura. Não poderiam ficar vestígios no terreno, que pudessem ser utilizados como propaganda pela Frelimo. Havia que desenrascar outro Rebenta-minas.

Viatura militar berliet depois de accionar uma mina Anti-Carro

Era um movimento concertado de cabos de aço, de homens, de vozes tracionando a retorcida sucata:

-Puxa agora pá, alivia o cabo, mais para a direita, mais à esquerda. Alto! Está bom agora. Vai!

Que abnegação, que espírito de sacrifício que resiliência a destes homens, não há palavras que os possam adjectivar. Adjectivá-los seria limitá-los. As suas vidas seguem num eterno parênteses aberto, num texto de louvor, incompleto, inacabado, que só se fechará mais além com a sua morte.

Sentei-me, costas apoiadas numa árvore, para aplacar os cansaços, arrefecer os suores, “desobliquar” as angústias, molhar a garganta, quando um soldado macua do meu Grupo, que se afastara para dar à calça, aliviar a caganeira na orla da mata, ao regressar se acercou de mim, trazendo nas mãos algo envolto em formigas, muitas formigas. Surpreendido e temendo a resposta, perguntei-lhe:

-O que tens aí pá? O que é isso?

O soldado parou na minha frente e disse com a maior naturalidade, a maior ausência de emoção, com uma calma desconcertante, exibindo o macabro achado e apontando na direcção do camião desfeito:

-É daquele mozungo* que sofreu ali.

Os meus olhos não puderam deixar de ver nas suas mãos, um pedaço de pé humano.

Tramas urdidos desta guerra. Eu estava morrendo um pouco. Todos morremos sempre um pouco quando alguém ao nosso lado cai. Este camarada acabava de fechar o parênteses da sua ainda verde vida. Talvez o meu se cerre amanhã. A vida reservou-nos estas “duras picadas”, é preciso ter fé na caminhada.

Amanhã será outro dia. Esperancemos a sorte.

Nota: *mozungo (termo bantu-suaíli) - homem branco


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