segunda-feira, 1 de Fevereiro de 2016
LIVRO DE NUNO TIAGO PINTO - DIAS DE CORAGEM E AMIZADE
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016
FRANCISCO MANUEL LHANO PRETO.CRÓNICAS DE VÍTIMAS DA GUERRA EM MOÇAMBIQUE. EXTRAÍDO DO LIVRO: DIAS DE CORAGEM E DE AMIZADECom a guerra aberta em Angola e na Guiné, o governo de António Salazar sabia que era apenas uma questão de tempo até o "terrorismo" se estender a Moçambique. Era nesta província ultramarina que se concentrava a nata dos colonos portugueses. A maioria tinha mais instrução do que aqueles que optavam por emigrar para França ou Angola e o número de homens era semelhante ao das mulheres.
O receio do alastramento da guerra levou as autoridades a intensificarem a repressão policial aos contestatários do regime. O conforto mais relevante ocorreu em Mueda, a 16 de Junho de 1960. Milhares de agricultores exigirammelhores condições de vida e foram massacrados.
E foi por pressão de Julius Nyerere, da Tanzânia, que os movimentos dispersos acabaram por se fundir, a 25 de Junho de 1962, em Dar-es-Salam, numa única organização, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), liderada por Eduardo Mondlane.
Antigo estudante universitário na África do Sul e em Lisboa, Mondlane acabou por imigrar para os Estados Unidos onde deu aulas na Universidade de Columbia e onde trabalhou no secretariado da ONU.
O primeiro presidente da FRELIMO tornou-se uma figura carismática.
Os primeiros grupos de guerrilheiros, treinados na Argélia, começaram a entrar em Moçambique, vindos da Tanzânia, em Agosto de 1964.
Nesse mesmo mês, a FRELIMO fez a sua primeira vítima, o padre de Nangololo, segundo o relatório do BCAÇ 558 de 24 de Agosto.
A 24 e 25 de Setembro, a FRELIMO lançou ataques na zona de Mueda. Ao mesmo tempo, no Niassa, eram atacados o posto de Cóbué e, no lago, a lancha "Castor".
Ao contrário do que aconteceu em Angola, os primeiros confrontos não fizeram vítimas entre os colonos. A esmagadora maioria estava fixada no litoral, em Lourenço Marques e na Beira, onde a vida prosseguia normalmente, sem o mínimo contacto com a violência. Isto também facilitou a progressão da FRELIMO que, sem resistência, alargou a sua acção para sul.
A primeira nas forças portuguesas acabou por acontecer apenas a 16 de Novembro, num ataque ao posto de Muidumbe, na região de Xilama.
A diplomacia portuguesa soube jogar as suas peças. Em troca da cedência à França de uma base na ilha das Flores e da base de Beja à Alemanha, os governos de Paris e de Berlim vendiam a Portugal as munições e o armamento necessário à manutenção do controlo das "províncias ultramarinas". Só na década de 1960, a Alemanha vendeu a Portugal 226 aviões de combate.
Em África, o governo de Salazar criou uma série de "entendimentos" regionais. Primeiro com o regime Ian Smith, que a 11 de Novembro de 1965 proclamou a independência da Rodésia. O resultado foi o bloqueio do porto da Beira pela armada britânica, em Janeiro do ano seguinte, para impedir o fornecimento de petróleo à Rosário. Problema que foi contornado com esse mesmo abastecimento a ser feito através da África do Sul. A passagem de guerrilheiros da FRELIMO da Tanzânia para o Malawi e daí para território moçambicano também foi resolvida. Jorge Jardim, uma espécie de agente secreto do governo, chegou a acordo com o presidnte Hasting Banda para formar unidades especiais comandados por portugueses, no Malawi, e também para criar uma força naval no Lago Niassa-também ela dirigida por oficias portugueses. Ler a crónica de Francisco Manuel Lhano Preto
Ainda assim, a componente militar não foi descurada. No final de 1964 Portugal mais de 84 mil soldados distribuídos pelos três teatros de guerra-18 mil em Moçambique, número que viria a aumentar até aos 51 mil em 1973.
Os guerrilheiros, a partir de 1969 liderados por Samora Machel, actuavam em pequenos grupos, faziam emboscadas e minavam estradas e pistas. Eram mesmo as minas os piores inimigos das tropas portuguesas.
Apesar de ter sido o território com menos anos de conflito, foi em Moçambique que as tropas portuguesas tiveram o maior número de amputados: 697, contra 480 em Angola e 540 na Guiné. As estatísticas oficiais dizem que 1481 militares morreram em combate, 234 em acidentes com armas de fogo, 467 em acidentes de viação e 780 por outras causas. Ao todo, faleceram em Moçambique em Moçambique 2962 soldados e foram feridos 3455.
Com o 25 de Abril de 1974, Lisboa entregou os territórios ultramarinos aos movimentos de libertação
A guerra em África terminou para os portugueses. Só para começar um novo conflito, desta vez entre africanos.
FRANCISCO MANUEL LHANO PRETO
DESTACAMENTO DE FUZILEIROS ESPECIAIS Nº 9
COMISSÃO:1971-1973
COMISSÃO ESPECIAL:1973-1974
No final da primeira comissão,foi convidado para para participar numa missão secreta no Malawi:comandar a Marinha no Lago Niassa.Durante mais de um ano viveu como um inglês incorporado nas forças do regime de Hastings Kamuzu Banda.Até que foi preso depois do 25 de Abril.
Cheguei a Moçambique em 1971.Era o 2º Comandante do Destacamento de Fuzileiros Especiais nº9. Nos dois anos de comissão só tivemos um morto e foi por azar. Íamos em direcção a uma base inimiga quando fomos emboscados. Reagimos muito bem e eles ao fugir começaram a disparar as AK voltadas para trás. Geralmente essas balas vão para o ar ou chão. Dessa vez acertaram num dos nossos marinheiros. Atingiram-no no coração. Foi azar.
Na guerra é preciso ter sorte, porque para mim heróis fomos todos. Eu levei um tiro numa perna e podia ter levado noutro lado qualquer. Ninguém sabe de onde vêm as balas. Em Tete, quando estávamos a fazer uma patrulha no rio, houve uma patrulha no rio, houve umas rajadas da margem e nós abicámos o bote em direcção ao inimigo. No meio da confusão, vi o carregador da G3 do camarada que ia ao meu lado saltar, atingido por um tiro. Outro acertou-lhe na coronha da arma que is junto à cintura. Eu também as senti passar ao lado e por cima. Mas ninguém foi ferido. Foi sorte.
No final da minha primeira comissão, fui convidado para participar numa comissão especial já em curso:a criação da "Marinha do Malawi".Quando precisava de se deslocar para sul do lago Niassa,a Frelimo saía da Tanzânia e entrava em Moçambique através do Malawi.Era preciso controlar o Lago.Foi o que fêz o CEMA da Marinha,o Almirante Reboredo e Silva,através de negociações com o governo malawiano. Aceitei a proposta,o ministro da Marinha deu-me baixa de serviço e assinei um contrato com o Jorge Jardim,que era o cônsul do Malawi na Beira e tornei-me o comandante da Marinha do Malawi,no Lago Niassa.
Mas, sem as autoridades malawianas saberem, tínhamos assinado um acordo secreto com a Marinha portuguesa onde garantíamos que se houvesse problemas do lado de lá da fronteira, voltávamos com as lanchas para Moçambique.
Deixei de ser o Francisco Preto e passei ser o Mr. Lhano. Para o cidadão comum era um inglês que vivia no Malawi.
Na altura era segundo tenente e auto promovi-me a "Captain",com três riscas iguais às de Mar-e -Guerra inglês.estavam comigo mais um oficial,três cabos e dois marinheiros que foram promovidos a sargentos.
Este processo não só ajudou não só ajudou a controlar os guerrilheiros,como também resolveu o problema do transporte de combustível para a base de Metangula, para abastecer os geradores, lanchas e botes que tínhamos no Lago. Levar os combustíveis através das picadas, era como transportar explosivos numa Berliet, de cada vez que rebentasse uma mina, explodia tudo. Para isso era preciso entrar no Malawi
Quando lá cheguei já tinha si do feito um contrato com a OILCOM,que nos fornecia combustível através do lago.Para o transporte,íamos a Dakota numa lancha de desembarque,que tinha sido transformada e pintada com as cores da SONAP,uma empresa de combustíveis.
Além das informações precisávamos,essencialmente,de controlar o lago Niassa. Por isso,Portugal cedeu três lanchas.Duas de combate,a JOHN CHILOMBWE (antiga CASTOR) e a CHIBISA ( antiga RÉGULUS),e uma mais pequena de treino e pesca,a LIMPASA.
A responsabilidade pelo que se passava na maior parte do Lago era nossa. Podíamos inspeccionar os navios de grande porte que percorriam a costa a transportar mercadorias e pessoas e impedir a infiltração no Malawi a partir da Tanzânia.
Nós estávamos a maior parte do tempo em NKHATA BAY,onde tínhamos a base naval e em MONKEY BAY,que era mais sossegado.Havia lá um motel e um restaurante que foi comprado por um sul-africano que,para mim,era espião.Foi ele que me disse que tinha havido o 25 de Abril.como já vinha ouvido nas rádios,de outras tentativas de golpe,muitas delas inventadas pela Frelimo,continuei a patrulhar e fui para norte.
Uns dias depois,como ninguém se entendia em Portugal,eles quiseram saber o que se ia passar.E perguntaram-me: Como é?Porque nós é que dominávamos o lago.Eles tinham umas lanchas pequenas,atribuídas à polícia,mas as grandes,com armamento pesado e metralhadoras,eram as nossas.Só que nessa altura quem é que sabia em Lisboa o que se passava no Malawi e que nós estávamos em missão secreta?Tive de resolver o problema e garantir que iria manter a esquadra mesmo que houvesse problemas em Portugal. A coisa aliviou.Mas depois o presidente BANDA disse à polícia para me levar a BLANTYRE.
No Malawi isso significa prendam esse gajo e tragam-no.Assim foi.Nesse fim de tarde estava com a JOHN CHILOMBWE fundeada e a LIMPASA atracada ao lado quando comecei a ver indivíduos fardados de polícias a entrar nas lanchas sem autorização.Vinham com o pessoal da minha guarnição.Entrámos em negociações.Combinei que ia com eles,mas que a LIMPASA saía logo para Moçambique.Depois de falar com Metangula dei ordens para a JOHN CHILOMBWE zarpar no dia seguinte com a guarnição se eu não voltasse.
ROSA GLÓRIA BARROSO DA COSTA A SERRA
ENFERMEIRA PÁRA-QUEDISTA
COMISSÃO 1973
Ao contrário da maioria das camaradas,diz que o ano passado em Moçambique foi mais difícil do que o tempo que esteve na Guiné.Além das evacuações,teve de lidar com o isolamento,as viagens transatlânticos e com os bombardeamentos ao quartel de Mueda.
Nunca pensei ser enfermeira pára-quedista.Trabalhava no Hospital de S.João no Porto quando uma colega me disse que nos tinha inscrito às duas e que íamos ser contactados para ir fazer provas.A minha reacção foi: és maluca?Eu alguma vez vou ser capaz de saltar de avião? Era uma rapariga ingénua, como todas as da época. Não sabia o que era a guerra. Tanto que a minha preocupação não foi ir para lá, foi entrar num avião e atirar-me cá para baixo.
A primeira vez que entrei num quartel foi horrível.Pensei que estava a meter-me num campo de concentração. Fomos de comboio de Lisboa para Tancos e no caminho, uma enfermeira que tinha tido um problema físicono curso anterior e passou para o nosso, foi o tempo todo a dizer como o salto da torre era horrível.
Quando passámos a porta de armas havia uma quantidade de rapazes novos,em tronco nu,com o capacete e a arma alinhados no chão à espera de serem vacinados. Foi a primeira vez que vi uma arma.
Levaram-nos para o CASAL DAS POMBAS,uma casa afastada dos alojamentos dos soldados,que não podiam lá entrar.
Estava convencida de que não ficava.Como passei nos exames médicos resolvi fazer as provas físicas. As piores foram as de corrida,acabei sempre em última.Quanto à torre,não sei se foi por ter imaginado uma coisa imensa ,achei que podia ser pior e não tive medo. Era um salto para o vazio, com um colete e arnês, tipo pára-quedas, para ficarmos penduradas.
Quando o instrutor dizia "JÁ" tínhamos de saltar logo. O problema era a decisão.E a torre era eliminatória: quem hesitava ou recuava chumbava.
A minha primeira comissão foi na Guiné em 1969. Nessa altura já tinha ideia do que ia encontrar. Estive lá 13 meses,até 1970 .Depois fui para Angola,para o BCAP nº 21,onde fiquei 15 meses, até Julho de 1971. No final dessa comissão vim para Tancos dar um curso de primeiros socorros a soldados..Em Janeiro de 1973 fui para Moçambique,onde fiquei até Dezembro.
Quando lá cheguei não tive dificuldades.Estive algumas semanas em LOURENÇO MARQUES para aprender como se faziam as evacuações transatlânticas. Aquilo é enorme. Havia o percurso de Lourenço Marques e da Beira para Lisboa,de Nampula para a Beira e de Mueda e Vila Cabral para Nampula. Tínhamos de conhecer uma quantidade de regras para nos munirmos do material necessário para as viagens que eram horríveis,de tão longas. Como Portugal não tinha relações diplomáticas com a maioria dos países da região,os aviões não podiam vir em linha recta.Parávamos em Angola,depois em Cabo Verde ou nas Canárias.Fora as vezes em que o avião avariava e tínhamos de aterrar.Isto implicava estar sempre a retirar e a embarcar doentes que vinham com soros,queimados,algaliados e pacientes de psiquiatria.Chegava estoirada. No outro dia de manhã, em Lisboa, não sabia onde estava. Nem reconhecia a minha casa.
A maioria das minhas colegas diz que a Guiné foi o pior sítio por onde passaram. Eu acho que Mueda foi o local mais difícil para estar a partir de 1972. É que a guerra não é só tiros e evacuações. É também o isolamento.
Éramos três enfermeiras.
Vivíamos numa vivenda com os médicos da enfermaria. Nós tínhamos um quarto e nós outro. Eu sentia uma necessidade enorme de me vestir à civil. Quando acabavam os voos mudava de roupa e ia tirar fotografias ao pôr do sol. Nem me lembrava que isso podia incomodar alguns militares. As minhas colegas não. Estavam de camuflado até à hora de ir para a cama. A comida era horrível. Foi onde emagreci mais: saí de lá com 58 Kgs.
A certa altura, Mueda começou a ser atacada. Bissau nunca foi. Um dia caíu uma bomba a dois metros da nossa casa. Eu tinha vindo a Lisboa e quando lá cheguei encontrei uma cratera enorme. A partir desta altura o responsável pela segurança construiu-nos um abrigo subterrâneo. Muitas vezes deitávamo-nos, cansadíssimos, e as bombas começavam a cair. Tínhamos de nos levantar e ir para o abrigo. Em termos psicológicos tudo isto foi muito mais desgastante do que na Guiné. O trabalho era idêntico.
Vivi aqueles anos intensamente,apesar do dramatismo e de ter visto coisas de que não gostei e de que não me esqueci.Fui buscar mortos e feridos completamente destruídos e desfigurados. Muito mais do que na Guiné, por causa das minas. Um dia entregaram-me uma capa de camuflado,atada com um nó,com os bocados de um homem lá dentro.Quando cheguei ao hospital entreguei-o e os médicos pediram-me que os ajudasse noutra situação.Quando ia para o bloco alguém abriu a trouxa e vi os restos de um humano que não se sabia se era branco ou negro.Estava tudo desfeito..era chocante.Vinha lá uma bota e só quando a tiraram viram que tinha lá um pé.Foi assim que soubemos que o ferido era branco.
Havia situações que nos deixavam a pensar no sofrimento das famílias.Em Julho ou Agosto de 1973,depois de MOCIMBOA DA PRAIA ser atacada,chamaram-me para fazer um transporte. Quando lá cheguei não era nenhum ferido, era uma mulher. O marido estava com ela em casa quando ouviu um rebentamento e veio cá fora.Abriu a porta e foi atingido. Ela estava com um ar completamente perdido. Não chorou, não falou, não olhou para mim nem nada. Tinha uma solidão profunda estampada no rosto. Fez-me muita impressão. Os nossos militares chamavam tanto pelas mães quando eram feridos e nós pensávamos o que elas podiam estar a passar .Mas ali é que vi o sofrimento real.
JOÃO NOVAIS MOLIOA
BATALHÃO DE CAÇADORES 19
COMISSÃO 1966 A 1968
Depois de jurar a bandeira portuguesa, cumpriu a comissão em Belém (Niassa) e Nova Freixo até ser evacuado para o hospital de Lourenço Marques. Está há 11 anos em Portugal à procura de tratamento para o stress pós-trumático.
Sou natural de Nampula.A 26 de Fevereiro de 1966 fui incorporado no serviço militar obrigatório. Era o nosso dever como cidadãos portugueses prestar serviço e eu fi-lo.Jurei a bandeira nacional seis meses depois.Tinha 21 anos.
Quis ir para motorista, mas acabei por chumbar nos testes. Passei então para atirador de infantaria. Era apontador de morteiros. Em seguida fui para a escola de Cabos onde, onde concluí com 14 valores e daí fui para o terreno, promovido a 1º Cabo.
Colocaram-me em Nova Freixo e daí mandaram-me para Belém. Os aquartelamentos eram uns antigos armazéns de algodão. Como a guerra estava a intensificar-se, aquilo foi transformado em instalações militares. Improvisámos. Cercámos as instalações com arame farpado e dormíamos ali.Nós,nascidos em Moçambique, sabíamos que estávamos a fazer a guerra com irmãos. Tinhamos conhecimento de que a FRELIMO era um partido de guerrilha, mas como se tratavam de questões políticas, nem todos a compreendíamos. Havia sempre hipótese de passarmos para o outro lado,mas éramos controlados,. Quando já estávamos na tropa se não obedecêssemos, podíamos ser castigados ou presos ao abrigo do RDM. Ainda assim,houve quem tentasse desertar.Nós tínhamos dois elementos que tentaram fugir para o lado do inimigo e foram apanhados e colocados numa prisão,que guardávamos.
Naquela altura havia muita desconfiança. Mesmo entre nós. militares, por causa da PIDE. Era normal alguém pensar em abandonar o exército e tornar-se desertor. Os militares estavam cansados da guerra e se houvesse oportunidade piravam-se. Só não se dizia por causa dessa desconfiança.
Eu nunca pensei em fugir para o outro lado.Teria sido a pior asneira da minha vida. Ainda não tinha filhos, mas era casado. Havia ainda os meus pais,irmãs e irmãos.A lei mandava cumprir o serviço militar obrigatório e assim o fiz.
Não havia um bom relacionamento com a Polícia Militar. Lembro-me que um dia, ainda estava na recruta, em Nampula, o furriel Capela ia a passar pela porta de armas do qurtel-general e o praça do PM que estava de serviço não bateu continência. Ele exigiu que ele o fizesse, porque todos os graduados que por ali passavam tinham que ser saudados. O tipo recusou, Discutiram e o PM matou-o ali mesmo. Assisti a tudo. No outro dia todo o quartel estava revoltado.
Uma das nossas missões principais era acompanhar o comboio que saía de Nacala, ia até Nova Freixo até ao Catur. Algumas carruagens transportavam civis,outras mercadorias. Nós tínhamos de os proteger. Havia um pelotão que entrava na carruagem rebenta minas em Nova Freixo e depois nós íamos reforçá-los de Belém até ao Catur. Militares,civis e carga depois seguiam para os seus destinos em coluna auto.
Quando voltávamos para a companhia, em Belém, íamos seis dias para o mato, em patrulha, substituir os que lá andavam. Éramos levados de Berliet e ficávamos por lá até alguém voltar para nos render. Era à vez.
Chegávamos à zona de Mandimba, que fica a uns 40 kms de Belém, através de mata cerrada Muitas vezes éramos emboscados.
Andávamos pela povoações civis porque eles também eram atacados e raptados pela Frelimo, que lhes queimava as palhotas. Não os matavam.
Dizia-se que os levavam para a Tanzânia onde os treinavam e metiam nas fileiras. Houve um dia em que estávamos numa patrulha e a povoação veio ter connosco a dizer que os guerrilheiros tinham acabado de passar. Fomos lá e encontrámos uma senhora no chão, morta, com um tiro no peito. Ela devia estar a amamentar o bébé, porque ele estava ali a tentar mamar no seio da sua mãe.Aquilo chocou-me muito. Um dos meus colegas recolheu a criança e levou-a com ele. Não sei o que lhe aconteceu. Depois levámos o cadáver dali para fora, Aquilo chocou-me muito.
Fui hospitalizado em Maio de 1967,no Hospital Militar de Nampula.Como piorei enviaram-me para Lourenço Marques.fiquei internado por causa do stress de guerra.A imagem daquela senhora morta com a criança ao lado não me saía da frente.
Em 1968 fui levado a uma junta médica que me dispensou do resto do serviço militar.Radiquei-me em Lourenço Marques e graças ao Ministério da Defesa ingressei nos Correios onde atingi a categoria de terceiro oficial.Sou Português e Moçambicano.Durante muitos anos houve muita falta de informação para os ex.combatentes que lá ficaram.Para termos apoios era preciso cá vir.Cheguei a Portugal no ano 2000.Vim para tratar o stress pós-traumático e para ter uma pensão.Vivo no quartel da Graça,onde me dão a alimentação e recebo o Rendimento Social de Inserção.São 180€ e às vezes envio para os meus três filhos 50€.
JOSÉ JOAQUIM ALCINO ALBINO
COMPANHIA DE ARTILHARIA 3557
COMISSÃO 1971-1973
Em 1971 foi enviado para Moçambique para uma comissão de serviço de dois anos.Cumpriu quase até ao fim e sobreviveu a três minas, mas a última deixou-o paraplégico.
Quando cheguei à Beira, em Moçambique, vi que ali não havia guerra. Não nos deram armas ,nem nada.Fiquei lá oito dias e chovia que era uma coisa maluca. Só quando saímos de lá é que nos deram a G3 e 20 munições. Em Marrupa é que foi carregar até dizer chega. Fiquei num destacamento do distrito de Nampula .Logo na primeira noite uma viatura civil de transporte de cerveja ficou avariada no caminho para MECULA. Fomos enviados para a guardar durante a noite, seis novos e seis velhos. Levava a G3 às costas e pensava:isto aqui não há guerra. Mas quando passava ao pé duma cova os mais velhos diziam:aqui morreu fulano numa mina,além morreu outro.Fui mudando de ideias.
Quando lá chegámos vimos a viatura ao longe. Batemos na zebra da camioneta para chamar o condutor. Gritámos, "Ó Rui, ó Rui" mas ninguém respondeu. Os mais velhos mandaram logo "deitem-se". Foi aí que pensei: pronto já começou. Mas não havia nada. Só lá estava o condutor e uma negra.
Era noite de 12 para 13 de Maio de 1972.Lembro-me porque um dos moços dizia: é hoje que a minha mãe vai saber que estou no Ultramar.O meu pai vai a Fátima e diz-lhe. Já lá estávamos há oito dias.Tremíamos como varas verdes. Levávamos ´s aquele poncho que nos davam.
Os mais velhos protegeram-se nas árvores por causa do cacimbo.Nós ficámos ali a noite e o outro dia quase todo.
Ao fim de 12 dias,ia numa missão a GOMBA, junto à fronteira com a Tanzânia, num Unimog, quando rebentou uma mina incendiária. Pensámos logo que estávamos a ser atacados. Foi esconder e aguentar. Depois começar a socorrer quem estava mal. Felizmente que só o mecânico se aleijou: levou com a mala de ferramentas. Esperámos que o helicópetero o fosse buscar e seguimos viagem..
A minha comissão era de dois anos. Em Janeiro de 1973, no dia que recebi a primeira fotografia do meu filho que nasceu quando lá estava há seis meses, saí para a base de MOANHA. Sentei-me na parte de trás da Berliet e pus a G3 ao colo. Estava a comer uma sandes quando rebentou a segunda mina na parte da frente. O telegrafista que ia lá sentado ficou sem as pernas. Fiquei sentado no chão.
Depois foi esta. A da cadeira. Dia 23 de Junho de 1973. Eram 04H00. Saí do quartel em MECULA em direcção a NOVA FREIXO. Tínhamos passado por ali na an terior e pensámos: hoje não picamos este bocado. Dito e feito
Íamos 13 numa Berliet e a 10 Kms do quartel,antes do rio INCALAW, aquilo rebentou. Eram quatro minas ligadas por cordão detonador.Uma à frente e depois as outras. Rebentou tudo. A Berliet ficou desfeita. E fez um buraco que foi uma coisa maluca.
Fechando os olhos parece que estou a ver onde aquilo foi. Havia uma rocha grandalhona ali ao lado e do outro canavial de bambu. O motor ficou a cento e tal metros do buraco. Eu estava sentado na parte de trás, no vão com os bancos. Fui mandado pelo ar e fiquei pendurado numa árvore pelas calças. Quando me mexi é que caí. Parti a rótula esquerda e ofendi a coluna. A estrada era de areia e aquilo era só pó.
Não via nada. Ainda me pus de pé. Um enfermeiro de Beja andou por ali a perguntar onde está o Alentejano?Quando me encontrou deu-me água e depois deitaram-me noutra Berliet, com a cabeça para o lado do condutor. Estávamos dois vivos,com um negro entre nós. Perguntei ao meu alferes:
Como estão os meus camaradas?
Está calado que o pior és tu.
Depois ouvi: Eh pá,já são oito mortos.
Então há oito mortos e o pior sou?
Pois, tu estás a sofrer,eles já estão mortos
Éramos treze e só saímos dali três. Havia dois rapazes que já tinham acabado a comissão e estavam para vir para casa. Morreram.
Puseram-me numa prancha e levaram-me para o quartel.Mas as portas eram estreitas e quando ia a passar ofenderam-me o resto da coluna. Estive em coma. Se não fosse aquilo era capaz de me ter safo.
Isto foi às quatro da manhã. Ainda de noite tiveram que acender latas com gasóleo para iluminar a pista para nos levar. Ainda éramos três, mas um morreu na avioneta.
Isto foi em Junho e fiquei lá até Setembro.Vim no dia 12 de Setembro de 1973. Nunca tive um cobate, nem nunca disparei um tiro com a minha G3.Mas as minas é que era.
Normalmente ia uma equipa de cinco a picar o terreno. Um com um detector de metais para ver se havia minas e outros com a G3. Os carros iam atrás Eugostava de ir picar o terreno. Mas nunca encontrei uma mina. Ajudei a destapar. Desta pávamos aquilo e depois púnhamos lá um petardo. Às vezes tentava-se levantar, mas era raro. Era rebentar e pronto. Mas levávamos dias a pé para fazer um bocadito. Às tantas arriscávamos porque estávamos saturados daquilo. E depois os culpados éramos nós. Era o que nos diziam "VOCÊS É QUE SÃO OS CULPADOS".
ANTÓNIO ROCHA CARDOSO
Batalhão de Caçadores 3868
Companhia de Caçadores 3474
Comissão 1972-1973
O rebentamento de uma mina deixou-lhe a cara cheia de estilhaços. Eram os piores inimigos. Nos 13 meses que esteve em Mocimboa da Praia nunca viu um guerrilheiro da Frelimo. Só o fumo a sair das armas a disparar.
A despedida no Cais da Rocha do Conde de Óbidos, parecia Fátima. Eram milhares de pessoas com os lencinhos, a acenar. Eu não tinha lá ninguém. A minha família não sabia que eu ia embarcar. No fim de anterior, fui a casa, estive com eles e despedi-me, mas não lhes disse que ia. Nessa altura já sabia que partira para Moçambique a 4 de Dezembro de 1971. Consegui iludir a minha mãe, dizendo-lhe que ainda iam uns colegas antes de mim. Ao meu pai contei que estava mobilizado. Ele era mais forte. Mas não disse quando ia.
Era um sábado, antes de embarcar meti uma carta no correio para os meus pais e outra para os pais de um camarada que não sabia ler nem escrever.Era eu que que lhe enviava as cartas para os pais e para a mulher. Uns dias depois a minha mãe foi à feira e encontrou a dele a chorar. Disse-lhe: Então os nossos filhos já foram embora. A minha mãe não acreditava. O meu António disse que me avisava. Só que quando chegou a casa já lá estava a casa. Enfim, era duro. Ela chorava muito e não deixava o o meu irmão pôr o rádio a tocar. Era quase como um luto.
Desembarcámos em Mocímboa da Praia no dia 1 de Janeiro de 1972.
A nossa missão era a mais ingrata: acompanhar colunas de abastecimento às outras companhias instaladas no mato e dar protecção à engenharia que estava a rasgar a estrada de Mocímboa da Praia para Mueda. A picada era das coisas mais difíceis, por causa das minas.
Eu caí em cinco emboscadas e nunca vi nenhum guerrilheiro. O capim era tão alto que só víamos o fumo das armas a disparar. Noutra que caí, no Largo de Oasse, estava na 12ª viatura. Quando a guerra rebentou lá à frente saltei do carro e pedi o colete das granadas. Estava com o o morteiro. Meti-lhes três cargas na zona de onde saía o fumo. Depois atirei mais três e eles calaram-se. Virei-me para o alferes e disse-lhe: Ó meu alferes, fodi os gajos. Vamos ver? Ele disse que não, que íamos embora. E ainda bem porque podia ter caído numa armadilha. Não sei se os matámos ou não. Mas acabou.
Há um acidente que ficou gravado na memória, na picada para Diaca. Foi a 2 de Fevereiro de 1973, cinco dias antes de ser ferido. Eu ia na segunda viatura. O José Magalhães da Costa ia à frente , com o detector eléctrico, A certa altura ele sentiu qualquer coisa no detector, deu um passo atrás. deu um passo atrás e aquilo rebentou. Apanhou a ele e a um militar negro. Saltámos logo na direcção deles. À minha frente ia um camarada do meu grupo de combate que, quando viu o Magalhães desmaiou. Só ficou o tronco. Fui à Berliet buscar um pano, apanhei o bocadinho dele e embrulhei-o para o levar ao helicóptero. Do negro só ficaram as pernas.
Depois fui eu, na picada para Nambude. Eram 30 Kms de terra batida, mas eles minavam aquilo tudo, atravessavam árvores e armadilhavam-nas. Uma vez demorámos 35 dias para lá chegar.
Nesse dia 7 de Fevereiro de 1973 íamos entregar uma coluna de abastecimento à Companhia 3473. O ponto de encontro era a passagem do Rio Nango.Entregámos-lhes os mantimentos e voltámos.
Só que o pontão tinha sido destruído pela guerrilha e foi preciso meter o rebenta minas pelo rio. Quando ia a sair essaBerliet ficou atolada.
O condutor estava a tentar tirá-la e eu decidi deitar fora a água do cantil, que estava quente, Quando me levantei para olhar para a Berliet aquela porcaria rebentou de repente. Foi uma explosão tão grande que nunca me passou pela cabeça que tinha sido uma mina. A deslocação de ar quase me matou e atirou-me para o meio da água. Se tivesse desmaiado teria morrido afogado. Consegui rastejar e sair por mim. Não via nada. Só ouvia os gritos. Muitos.
Lembro-me de os meus colegas deitarem-me água para a cara e chamarem o enfermeiro. Ele tinha outros feridos e não havia grande coisa a fazer. Fiquei com a cara cheia de estilhaços.
Depois recordo de ouvir os bombardeiros a limpar a zona, da chegada dos helicópteros e da evacuação para Mueda e depois para Nampula. Fiquei cego vários dias. Quando os abri não sabia de era branco ou negro.
Fiquei em Moçambique vários meses. Ainda me enviaram de volta à companhia, mas mais tarde recebi ordem para vir embora para Portugal. Quando fui ferido tive de avisar os meus pais de que estava tudo bem. Mas quando voltei a Lisboa já não lhes disse nada. Achei que podiam ir esperar-me e como ia para o Hospital Militar da Estrela não valia a pena. Antes de embarcar escrevi-lhes a dizer que ia ter alta e que ia para Nampula, mas que a viagem era longa e não sabia quanto tempo ia demorar. Eles não faziam ideia das distâncias, mas assim ficavam tranquilos.
No Hospital da Estrela em Lisboa, fui operado aos olhos. Deram-me alta em Outubro e resolvi apanhar uma camioneta no Campo das Cebolas. Só que quando fui levantar a minha mala tinham-me roubado os 500 escudos que lá deixei. Quis matar o velho que lá estava Como é que me ia embora? Só tinha 200 escudos moçambicanos. Houve um rapaz que tinha um irmão em Moçambique que me perguntou quanto aquilo valia. Eu só queria o suficiente para o bilhete, que custava 60 escudos, Ele deu-me 100. Saí no Porto e à noite fui para Castelo de Paiva. Quando cheguei à Vila perguntei pelo meu pai, que era mineiro. Estive para esperar por ele, mas segui caminho. Assim que chegou soube logo que eu estava lá. A minha mãe tinha ido buscar erva para as ovelhas. Estava a conversar com a vizinha quando ela chegou. Assim que ouviu a minha voz atirou com o cesto. Então começou o choro e os gritos, agora de alegria.
JOSÉ MARIA DA SILVA PACHECO
2ª COMPANHIA DO BATALHÃO DE CAÇADORES PÁRAQUEDISTA
COMISSÃO 1971-1973
Preferia ser lançado numa base ou ser emboscado do que participar na guerra da psico onde não sabia onde estava o inimigo.Na primeira operação em Moçambique viu um pára-quedista morrer e 10 serem feridos num rebentamento duma mina.
Depois do curso de combate,tirei a especialidade de enfermeiro. Fui para Moçambique em rendição individual e levado para junto da minha companhia,que estava acampada em NANGADE,junto ao rio Rovuma, na fronteira com a Tânzania. Éramos comandados pelo então capitão Costa Lemos e víamos os barracões do inimigo do outro lado. Assim que me juntei aos meus camaradas fui logo enviado numa operação. Íamos acompanhar uma coluna de abastecimento, por picada, que seguia até PUNDANHAR. Nós, a cerca de 20 Kms devíamos sair e entrar na mata para fazer emboscadas a trilhos e detecção de inimigos.
A ordem que havia naquela zona era para abater tudo o que mexesse e apanhar as armas:fosse homem,mulher,velho ou criança. Isto não era em vão. Antes tinham ocorrido as operações "ZETA" e "NÓ GÓRDIO" onde foi apanhado material, mas não o grosso da coluna. Eles tinham as bases como a Beira e Gungunhanha perto da fronteira, que serviam para depositar as armas que traziam através do rio e destribuí-las por pequenos grupos. Ao irmos aestas bases podíamos matar os guerrilheiros, mas se não encontrássemos os paióis vinham outros e a guerra continuava.
A coluna onde seguíamos era liderada por um rebente-minas carregado de sacos de areia.Aquela picada tinha mais buracos que um queijo suiço.Não andávamos a mais de 5 ou 10 Kms por hora.eu ia na treceira viatura. Quando tínhamos feito 17Kms, rebentou uma mina à passagem da quarta Berliet, que ia carregada com pára-quedistas.uns foram projectadas, outros saltaram. Só que o inimigo tinha colocado granadas defensivas nas árvores à volta.Quando a malta caíu, puxou os fios que estavam dissimulados e que accionaram as granadas.Tivemos um morto e dez feridos.
Eu era o único enfermeiro, e foi o meu baptismo.Tinha o treino para aquilo,mas a situação de guerra é diferente e muito traumatizante.Uma pessoa chega a certa altura e não sabe a quem há-de acudir. Porque só se ouve:Enfermeiro vem cá....Enfermeiro vem cá.....Fui acudindo os que me pareciam que estavam piores. O Simeão,que morreu, apanhou com estilhaços na garganta e outro no peito. Teve morte imediata. Os helicópteros foram rápidos a responder e aterraram num sítio em que as pontas das pás cortavam os ramos das árvores para levar os feridos e o morto.
A manta que me havia sido distribuída para dormir no mato foi a cobrir o Simeão.
Feita a evacuação, o comandante decidiu que devíamos entrar na mata que era cerradíssima. Chegámos a andar de rastos pelos buracos dos javalis e dos animais. As lianas prendiam-se às armas e às mochilas e tínhamos de andar sempre em silêncio. Quando saímos, encontrámos uma zona de bolanha, uma área agrícola cultivada, redonda. À entrada estava uma cobra capelo levantada e virada para nós. Parecia um aviso. Afastámos a cobra com a arma e começámos a ouir galinhas. A estratégia foi abrir foi abrir para os dois lados. No direito localizámos palhotas. Uma equipa foi lá e voltou com a informação que havia lume e galinhas de lá ter estado alguém há pouco tempo.
Éramos cerca de 60 homens. Eu ia sempre nos cinco primeiros,os mais prováveis de sofrer emboscadas.O nosso comandante mandou uma secção verificar um trilho que havia do outro lado.Entrei uns dez a quinze metros para dentro dele.Não me apercebi de ser um trilho batido e regressámos para informar que aquilo,em pricípio,não tinha importância.Mas quando estava a chegar ao pé do comandante rebentou uma emboscada enorme no sítio onde tinha estado.
Infelizmente fêz-nos mais um ferido, um rapaz que estava deitado de frente para a zona de tiro. Uma bala passou-lhe rente à cabeça e cortou-lhe o gémeo da perna esquerda. Ripostámos, mas não sabemos se os atingimos ou não.
Ele foi evacuado e nós continuámos a andar.Chegámos a uma zona de cruzamento de trilhos bem batidos e o comandante pensou que era um sítio bom para montar uma emboscada.Eles haviam de ali passar. Ao fim de dois dias apareceram 12 inimigos. Foram dizimados.Para mim foi das operações mais dramáticas porque foi onde tivemos mais baixas de uma só vez.
Como enfermeiro não tinha um pelotão definido. Saía com quem calhava porque éramos menos. Resultado: enquanto os meus camaradas faziam 10 operações numa missão de de dois meses eu fazia 14 ou 15.
Se a primeira operação foi a mais dramática,a mais complicada em que estive foi um ataque à base Beira,a base chave deles. Não só pela posição estratégica,de passagem para a Tanzânia,mas por ter um hospital subterrâneo e trincheiras de defesa.
Eles era frequentemente visitados por nós e pelos Comandos. Isto foi em Dezembro de 1971, por altura do Natal. A base foi cercada à distância por tropas de outras unidades e nós fomos lançados de helicópteros. A porta do lado direito tinha metralhadora MG e nós saltávamos do esquerdo. Por cima tínhamos o hélicanhão. Só que depois de saltarmos, ficávamos por nossa conta. A nossa intervençãp foi rápida. Abatemos dois inimigos e continuámos a bater a zona durante seis dias.Mas dentro da base encontrámos dez toneladas de material por acaso.
Um militar ia a andar quando caiu dentro de um paiol. Os Macondes e Macuas faziam buracos profundos no chão que revestiam com um barro que parecia cimento.Era aí que guardavam os seus alimentos.Estava cheio de granadas de morteiro, RPG7, minas, carregadores, metralhadoras "costureirinhas". Ainda andámos à procura de outros, mas não conseguimos. Se tivéssemos detector de metais talvez conseguíssemos.
LUCIANO ANTÓNIO LAURÊNCIO
1ª COMPANHIA DO BATALHÃO CAÇADORES PÁRA-QUEDISTA Nº 32
COMISSÃO 1971-1973
Durante o ataque à base GUNGUNHANA ficou 14 dias no mato,em confrontos e emboscadas constantes.Estava em Moçambique há apenas cinco meses mas o desempenho nessa operação valeu-lhe a promoção a cabo-e mais 600 escudos por mês.
Fui para Moçambique 7 de Março de 1971. Saí daqui num T6 de carga, fomos levar material de guerra à Guiné, parámos um dia em Luanda e depois seguimos pata Lourenço Marques. Daí fomos para Nampula, na Beira e depois pata Nacala, para o BCP 32. Estavam lá duas Companhias. Eu fiquei colocado no quarto pelotão da primeira companhia.
Assim que lá chegámos fomos fazer uma operação para o VALE de MITEDA,no planalto dos MACONDES,na zona dos PAUS. Constava-se que havia uns dois anos que não iam lá tropas.
Fomos lançados de helicóptero, cerca de 80 homens,e começámos a aproximação a uma base.A segunda companhia foi depois deixada numa zona mais próxima.Estava tudo estudado.Enquanto uns iam à base os outros ficavam mais para trás para o caso de algum guerrilheiro conseguir fugir.Só que a segunda companhia que ficou a dar a protecção acabou por levar mais porrada do que nós.Eles tiveram três mortos e nós um.
A nossa vítima foi o Cunha. Progredimos durante a noite e fizemos o círculo para acamparmos. A certa altura ouvimos um tiro de pólvora seca para assinalar o sítio onde estávamos.A partir daí começámos a ser bombardeados com morteiros de 82 mm. Era a coisa que mais nos desmoralizava.Percebíamos quando ele era lançado e depois não sabíamos onde ia cair.Só mais perto ouvíamos o assobiar. E não podíamos responder.
Eu e o Cunha estensemos uma capa no chão, deitámo-nos e pusemos a outra por cima. Estávamos ao lado um do outro. Ele tinha o cantil a servir de almofada. Quando as morteiradas pararam chamei por ele, Cunha...Cunha....,e ele não disse nada. Joguei-lhe a mão à cabeça e senti-a cheia de sangue. Tinha sido atingido por um estilhaço. Ainda chamámos o enfermeiro mas ele já estava em coma.
Saímos de Mueda a 14 de Julho de 1971,para a operação LANCELOT. Só que eles estavam à nossa espera e derrubaram um helicóptero, o segundo. Eu seguia no primeiro. Ainda assim fomos largados,uns 20 e tal homens,e ficámos à espera de reforços. Só que nessa noite não houve hipótese de ir mais ninguém. Quando íamos para uma operação era a altura em que estávamos mais desguarnecidos. Não havia helicópteros suficientes para levar uma companhia. Levavam um pelotão e depois voltavam a Mueda para ir buscar mais pessoal. Só quando a Companhia estava completa é que começávamos a progredir.
Também era raro sermos largados próximo das bases inimigas. Ali foi ao contrário.Ficámos muito perto: até os ouvíamos a conversar durante a noite.Quando percebemos que não iam chegar mais ninguém, procurámos uma árvore de grande porte para nos protegermos. Depois não saíamos do sítio. A mata cerrada tinha tanto de negativo como de positivo. Para progredirmos, o primeiro tinha de ir com uma catana para cortar os galhos e ramos. Mas por outro lado, os morteiros rebentavam na copa das árvores. Eles sabiam que estávamos nas proximidades, mas não se aproximaram porque estávamos armados e não nos conseguiam ver.Passámos ali a noite e no outro dia os gajos da Frelimo levaram o helicóptero todo. Normalmente não deixávamos material no terreno,mas ali não houve condições para o recuperar. Quando os reforços chegaram pela manhã,saímos. Pertencia ao quarto pelotão e, como tinha a MG, ia à frente. Aquilo era rotativo.
A certa altura encontrámos uma clareira enorme, que tínhamos que atravessar. Levávamos um guia que tinha fugido à Frelimo que disse ao Capitão Carlos Alves:se entrarmos por essa clareira eles matam-nos a todos. Ficámos a debater o que devíamos fazer quando ele disse: se passar só um homem eles não disparam. O interesse deles era apanhar o grosso da coluna. Calhou-me a mim ser o primeiro. Aquilo à volta era mata cerrada. Levava o peso do mundo em cima de mim. Saí a andar devagarinho,enquanto o resto da companhia passava à volta. Juntámo-nos todos do outro lado. Aí,o Capitão achou por bem ficarmos quietos. Ninguém falava, bebia ou fumava. Só podíamos respirar. Estivemos ali duas horas. Como acharam estranho tanto silêncio vieram à nossa procura. Quando ouvimos uns barulhos num trilho fizemos uma emboscada imediata. A certa altura foram quatro homens para a esquerda e outros quatro para a direita.Eu fiquei no lado esquerdo. Eles apareceram do outro. Quando o alferes Vieira os viu, eles abriram fogo.O Borrego ainda disparou mas a G3 encravou. Pediram logo a MG. Fiz uma rajada e apanhei dois gajos.Agarrámos nas Kalashnikov e nos cintos mas os tipos não nos largaram com a morteirada.
Em fins de 1972 estávamos a descansar em Mueda, quando a Força Aérea foi contactada porque estava a haver uma infiltração de material da Tanzânia para dentro de Moçambique. Os aviões FIAT foram à frente e bombardearam aquilo tudo com Napalm. Nós esperámos uma ou duas horas na pista para dar tempo eles despejarem as bombas. Depois sa ímos de helicóptero.Eu ia sempre à porta por causa da MG. Tinha a mão de fora, que ficou gelada por causa do frio lá de cima.Mas quando o piloto começou a descer, era um calor insuportável por causa do Napalm. Um gajo queria respirar e mal conseguia.
Lá em baixo era um calor sem igual. A terra estava toda queimada. Púnhamos a bota no chão e ouvíamos o "PFF", "PFF" da crosta da terra a partir. Os helicópteros tiveram de voltar porque houve alguns de nós que não aguentaram estar ali com o calor. Os bichos saltavam e morriam por causa do Napalm .Fomos ajudados pelos tipos dos GRUPOS ESPECIAIS, que era quem ia buscar os gajos da Frelimo que se entregavam.Eles estavam habituados àquilo.
A certa altura encontrámos uma fonte de água. Enchemos os cantis e continuámos à procura do material. Quando voltámos para reabastecer estava uma carrada de armas novas encostadas umas às outras pelo cano. Pensámos que era uma armadilha. Fizemos a segurança e atirámos uma corda para puxar as armas e ver se aquilo estava armadilhado. Não estava. Aproximámo-nos e apanhámo-las. Ainda hoje estou para saber o que foi aquilo. Só posso pensar que estavam tão desesperados que foram beber água e deixaram-nas para trás. Até Março de 1973,participei em cento e tal operações,sempre na zona de Mueda e nunca me poupei.Mas tive sorte,passei sempre entre as balas.
ANTÓNIO CANDEIAS DA CONCEIÇÃO
1ª COMPANHIA DO BATALHÃO DE CAÇADORES PARAQUEDISTAS Nº 32
COMISSÃO 1968-1970
O meu primeiro mês em Moçambique foi feroz. Cheguei em Agosto de 1968 e no fim de duas semanas estava no mato a ver morrer um grande amigo. Íamos numa coluna, a f,azer a segurança a uma companhia do Exército que tinha chegado. À frente ia o rebente-minas, uma Berliet carregada de sacos de areia, só com o condutor e um soldado em cima com uma metralhadora. À passagem do oitavo veículo rebentou uma mina anti-carro. Ninguém morreu. Também não houve feridos . Só que o meu amigo saíu do Unimog para ver o buraco que aquilo tinha feito na picada quando rebentou uma mina anti-pessoal. Entrou-lhe um estilhaço no coração. Era tão pequeno que o pessoal não encontrava o ferimento. Morreu logo ali
Na altura estávamos aquartelados em NANGOLOLO. Dormíamos dentro da igreja. Ainda no primeiro mês fomos atacar um sítio onde havia um hospital, uma escola e muita gente armada. Hoje em dia fala-se em atacar uma escola e fica tudo em pânico. Ali era a guerra e eles misturavam-se com a população. Soubemos daquele sítio através de uns indivíduos que tinham sido apanhados e entregues à PIDE-DGS. As viaturas levaram-nos pela picada o mais perto possível e depois seguimos a corta-mato. Atacávamos sempre ao romper do dia.
Naquela vez não encontrámos nada, só palhotas vazias. No regresso, começámos a vê-los numa encosta lateral. Eles sabiam que íamos para a picada e ficaram à nossa espera para nos emboscar. Nós andávamos a cerca de 10 metros uns dos outros para evitar sermos apanhados em rajada. Ali tivemos azar; passámos todos e eles atingiram o que ia em último lugar com um riro nos intestinos.
O nosso enfermeiro era experiente e disse ao Capitãao que ele tiha que ser evacuado, senão morria. Encontrámos uma clareira que tinha uma árvore ao meio. Cortámo-la com catanas para o helicópetero poder aterrar e ficámos à volta a dar protecção.Eram 13H e o pessoal estava cansado e cheio de calor. Estava a beber uma lata de sumo, quando começaram a cair granadas de morteiro e de bazuca.O helicópetro aterrou, levou mais alguns feridos para Mueda e já não voltou. Aquilo foi um pandemónio. Houve um pára-quedista que chorava e que se meteu num buraco feito por uma granada. Depois não queria sair de lá. Dizia que ali não caía mais nenhuma.
A nossa Companhia era muito madura. Era feita por rendição individual e isso fazia com que houvesse sempre uma mistura de chekas (novos) e de kokuanas (velhos)
Ainda assim,tivemos que fugir. Pensei que se aquilo continuasse daquela maneira não voltava a casa. Ficámos com uma série de feridos, para levar às costas atravé de uma mata virgem que tinha de ser aberta à catanada. A mim e a mais três camaradas calhou-nos carregar o "Fafe", um matulão que foi atingido numa perna. Para o transportarmos tivemos de entregar as armas aos outros colegas. Na altura andava com uma ARMLIGHT, uma arma da NATO que era a melhor para aquela guerra; era leve e quilibrada. Comparada com ela, a G3 era um pedregulho.
Andámos horas e horas numa coluna comprida.Éramos 120 homens. Quando chegámos à picada, entrámos nas Berliets. Ali,as árvores juntavam-se e faziam uma espécie de túnel..pelo caminho os taipais das viaturas roçavam nas árvores. Quando chegámos a NANGOLOLO à noite,o ataque tinha sido ao almoço, tínhamos os veículos cheios de folhas.Fomos descansar para a igreja,o meu colchão estava no altar,é que verifiquei que faltava a minha arma..Perdê-la na guerra era grave. Andámos à sua procura e fomos encontrá-la numa Berliet, debaixo das folhas.
E foi por pressão de Julius Nyerere, da Tanzânia, que os movimentos dispersos acabaram por se fundir, a 25 de Junho de 1962, em Dar-es-Salam, numa única organização, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), liderada por Eduardo Mondlane.
Antigo estudante universitário na África do Sul e em Lisboa, Mondlane acabou por imigrar para os Estados Unidos onde deu aulas na Universidade de Columbia e onde trabalhou no secretariado da ONU.
O primeiro presidente da FRELIMO tornou-se uma figura carismática.
Os primeiros grupos de guerrilheiros, treinados na Argélia, começaram a entrar em Moçambique, vindos da Tanzânia, em Agosto de 1964.
Nesse mesmo mês, a FRELIMO fez a sua primeira vítima, o padre de Nangololo, segundo o relatório do BCAÇ 558 de 24 de Agosto.
A 24 e 25 de Setembro, a FRELIMO lançou ataques na zona de Mueda. Ao mesmo tempo, no Niassa, eram atacados o posto de Cóbué e, no lago, a lancha "Castor".
Ao contrário do que aconteceu em Angola, os primeiros confrontos não fizeram vítimas entre os colonos. A esmagadora maioria estava fixada no litoral, em Lourenço Marques e na Beira, onde a vida prosseguia normalmente, sem o mínimo contacto com a violência. Isto também facilitou a progressão da FRELIMO que, sem resistência, alargou a sua acção para sul.
A primeira nas forças portuguesas acabou por acontecer apenas a 16 de Novembro, num ataque ao posto de Muidumbe, na região de Xilama.
A diplomacia portuguesa soube jogar as suas peças. Em troca da cedência à França de uma base na ilha das Flores e da base de Beja à Alemanha, os governos de Paris e de Berlim vendiam a Portugal as munições e o armamento necessário à manutenção do controlo das "províncias ultramarinas". Só na década de 1960, a Alemanha vendeu a Portugal 226 aviões de combate.
Em África, o governo de Salazar criou uma série de "entendimentos" regionais. Primeiro com o regime Ian Smith, que a 11 de Novembro de 1965 proclamou a independência da Rodésia. O resultado foi o bloqueio do porto da Beira pela armada britânica, em Janeiro do ano seguinte, para impedir o fornecimento de petróleo à Rosário. Problema que foi contornado com esse mesmo abastecimento a ser feito através da África do Sul. A passagem de guerrilheiros da FRELIMO da Tanzânia para o Malawi e daí para território moçambicano também foi resolvida. Jorge Jardim, uma espécie de agente secreto do governo, chegou a acordo com o presidnte Hasting Banda para formar unidades especiais comandados por portugueses, no Malawi, e também para criar uma força naval no Lago Niassa-também ela dirigida por oficias portugueses. Ler a crónica de Francisco Manuel Lhano Preto
Ainda assim, a componente militar não foi descurada. No final de 1964 Portugal mais de 84 mil soldados distribuídos pelos três teatros de guerra-18 mil em Moçambique, número que viria a aumentar até aos 51 mil em 1973.
Os guerrilheiros, a partir de 1969 liderados por Samora Machel, actuavam em pequenos grupos, faziam emboscadas e minavam estradas e pistas. Eram mesmo as minas os piores inimigos das tropas portuguesas.
Apesar de ter sido o território com menos anos de conflito, foi em Moçambique que as tropas portuguesas tiveram o maior número de amputados: 697, contra 480 em Angola e 540 na Guiné. As estatísticas oficiais dizem que 1481 militares morreram em combate, 234 em acidentes com armas de fogo, 467 em acidentes de viação e 780 por outras causas. Ao todo, faleceram em Moçambique em Moçambique 2962 soldados e foram feridos 3455.
Com o 25 de Abril de 1974, Lisboa entregou os territórios ultramarinos aos movimentos de libertação
A guerra em África terminou para os portugueses. Só para começar um novo conflito, desta vez entre africanos.
FRANCISCO MANUEL LHANO PRETO
DESTACAMENTO DE FUZILEIROS ESPECIAIS Nº 9
COMISSÃO:1971-1973
COMISSÃO ESPECIAL:1973-1974
Deixei de ser o Francisco Preto e passei a ser o Mr.Lhano |
Cheguei a Moçambique em 1971.Era o 2º Comandante do Destacamento de Fuzileiros Especiais nº9. Nos dois anos de comissão só tivemos um morto e foi por azar. Íamos em direcção a uma base inimiga quando fomos emboscados. Reagimos muito bem e eles ao fugir começaram a disparar as AK voltadas para trás. Geralmente essas balas vão para o ar ou chão. Dessa vez acertaram num dos nossos marinheiros. Atingiram-no no coração. Foi azar.
Na guerra é preciso ter sorte, porque para mim heróis fomos todos. Eu levei um tiro numa perna e podia ter levado noutro lado qualquer. Ninguém sabe de onde vêm as balas. Em Tete, quando estávamos a fazer uma patrulha no rio, houve uma patrulha no rio, houve umas rajadas da margem e nós abicámos o bote em direcção ao inimigo. No meio da confusão, vi o carregador da G3 do camarada que ia ao meu lado saltar, atingido por um tiro. Outro acertou-lhe na coronha da arma que is junto à cintura. Eu também as senti passar ao lado e por cima. Mas ninguém foi ferido. Foi sorte.
1965. A lancha "REGULUS, vinda do Lumbo, a caminho de Metangula |
Mas, sem as autoridades malawianas saberem, tínhamos assinado um acordo secreto com a Marinha portuguesa onde garantíamos que se houvesse problemas do lado de lá da fronteira, voltávamos com as lanchas para Moçambique.
Deixei de ser o Francisco Preto e passei ser o Mr. Lhano. Para o cidadão comum era um inglês que vivia no Malawi.
Na altura era segundo tenente e auto promovi-me a "Captain",com três riscas iguais às de Mar-e -Guerra inglês.estavam comigo mais um oficial,três cabos e dois marinheiros que foram promovidos a sargentos.
Este processo não só ajudou não só ajudou a controlar os guerrilheiros,como também resolveu o problema do transporte de combustível para a base de Metangula, para abastecer os geradores, lanchas e botes que tínhamos no Lago. Levar os combustíveis através das picadas, era como transportar explosivos numa Berliet, de cada vez que rebentasse uma mina, explodia tudo. Para isso era preciso entrar no Malawi
Quando lá cheguei já tinha si do feito um contrato com a OILCOM,que nos fornecia combustível através do lago.Para o transporte,íamos a Dakota numa lancha de desembarque,que tinha sido transformada e pintada com as cores da SONAP,uma empresa de combustíveis.
Além das informações precisávamos,essencialmente,de controlar o lago Niassa. Por isso,Portugal cedeu três lanchas.Duas de combate,a JOHN CHILOMBWE (antiga CASTOR) e a CHIBISA ( antiga RÉGULUS),e uma mais pequena de treino e pesca,a LIMPASA.
A responsabilidade pelo que se passava na maior parte do Lago era nossa. Podíamos inspeccionar os navios de grande porte que percorriam a costa a transportar mercadorias e pessoas e impedir a infiltração no Malawi a partir da Tanzânia.
Transporte de tropas de Meponda a Metangula |
Uns dias depois,como ninguém se entendia em Portugal,eles quiseram saber o que se ia passar.E perguntaram-me: Como é?Porque nós é que dominávamos o lago.Eles tinham umas lanchas pequenas,atribuídas à polícia,mas as grandes,com armamento pesado e metralhadoras,eram as nossas.Só que nessa altura quem é que sabia em Lisboa o que se passava no Malawi e que nós estávamos em missão secreta?Tive de resolver o problema e garantir que iria manter a esquadra mesmo que houvesse problemas em Portugal. A coisa aliviou.Mas depois o presidente BANDA disse à polícia para me levar a BLANTYRE.
No Malawi isso significa prendam esse gajo e tragam-no.Assim foi.Nesse fim de tarde estava com a JOHN CHILOMBWE fundeada e a LIMPASA atracada ao lado quando comecei a ver indivíduos fardados de polícias a entrar nas lanchas sem autorização.Vinham com o pessoal da minha guarnição.Entrámos em negociações.Combinei que ia com eles,mas que a LIMPASA saía logo para Moçambique.Depois de falar com Metangula dei ordens para a JOHN CHILOMBWE zarpar no dia seguinte com a guarnição se eu não voltasse.
No caminho para Blantyre,parámos para almoçar em LILONGWE.Fui à casa de banho e pedi à recepcionista para me ligar para o número do Embaixador Português.Atendeu-se sua esposa e quando cheguei a Blantyre,as coisas já estavam mais ou menos conversadas.
Depois disso,o comandante-chefe mandou-me ir a Moçambique.Eu tinha contrato até 15 de Junho,mas eles pediram-me para continuar mais tempo.Fiquei só com um cabo e o Berbereia Moniz.Quando regressei,o governo do Malawi tentou convencer-me a permanecer lá depois da independência de Moçambique.Quando estive em combate recebia uns cinco mil escudos mensais.Ali ganhava 25 mil,mais sete mil KWACHAS para despesas.
Com as negociações para a entrega de Moçambique à Frelimo,foi decidido que as nossas lanchas ficavam no Malawi.Então em Julho fui a Blantyre para a entrega oficial e depois deveria regressar a Moçambique.na véspera ao telefone o Embaixador:Amanhã esteja às 07H00 na embaixada para tirar um passaporte Português que às 15H00 vamos cortar relações diplomáticas com o Malawi. Claro que já não houve entrega nenhuma.
Nós deveríamos regressar a Moçambique numa lancha Portuguesa que em princípio iria transportar um jeep,que seria entregue ao Malawi e trazer de volta as armas pesadas da JONH CHILOMBWE e da CHIBISA.
Em Moçambique tiveram a informação que tínhamos sido presos.Por isso,foram preparados para tudo,Estávamos em Monkey Bay ,a 27 de Julho,quando vimos uma quantidade de fuzileiros a colocar os zebros dentro de água.Fizemos sinal e eles perceberam que estava tudo bem e desembarcaram como se fosse uma coisa pacífica.Acabámos por entregar as lanchas mesmo ali e voltar para Moçambique.Sem cerimónias.ROSA GLÓRIA BARROSO DA COSTA A SERRA
ENFERMEIRA PÁRA-QUEDISTA
COMISSÃO 1973
ROSA GLÓRIA BARROSO DA COSTA SERRA |
Nunca pensei ser enfermeira pára-quedista.Trabalhava no Hospital de S.João no Porto quando uma colega me disse que nos tinha inscrito às duas e que íamos ser contactados para ir fazer provas.A minha reacção foi: és maluca?Eu alguma vez vou ser capaz de saltar de avião? Era uma rapariga ingénua, como todas as da época. Não sabia o que era a guerra. Tanto que a minha preocupação não foi ir para lá, foi entrar num avião e atirar-me cá para baixo.
A primeira vez que entrei num quartel foi horrível.Pensei que estava a meter-me num campo de concentração. Fomos de comboio de Lisboa para Tancos e no caminho, uma enfermeira que tinha tido um problema físicono curso anterior e passou para o nosso, foi o tempo todo a dizer como o salto da torre era horrível.
Quando passámos a porta de armas havia uma quantidade de rapazes novos,em tronco nu,com o capacete e a arma alinhados no chão à espera de serem vacinados. Foi a primeira vez que vi uma arma.
Levaram-nos para o CASAL DAS POMBAS,uma casa afastada dos alojamentos dos soldados,que não podiam lá entrar.
Estava convencida de que não ficava.Como passei nos exames médicos resolvi fazer as provas físicas. As piores foram as de corrida,acabei sempre em última.Quanto à torre,não sei se foi por ter imaginado uma coisa imensa ,achei que podia ser pior e não tive medo. Era um salto para o vazio, com um colete e arnês, tipo pára-quedas, para ficarmos penduradas.
Quando o instrutor dizia "JÁ" tínhamos de saltar logo. O problema era a decisão.E a torre era eliminatória: quem hesitava ou recuava chumbava.
A minha primeira comissão foi na Guiné em 1969. Nessa altura já tinha ideia do que ia encontrar. Estive lá 13 meses,até 1970 .Depois fui para Angola,para o BCAP nº 21,onde fiquei 15 meses, até Julho de 1971. No final dessa comissão vim para Tancos dar um curso de primeiros socorros a soldados..Em Janeiro de 1973 fui para Moçambique,onde fiquei até Dezembro.
Quando lá cheguei não tive dificuldades.Estive algumas semanas em LOURENÇO MARQUES para aprender como se faziam as evacuações transatlânticas. Aquilo é enorme. Havia o percurso de Lourenço Marques e da Beira para Lisboa,de Nampula para a Beira e de Mueda e Vila Cabral para Nampula. Tínhamos de conhecer uma quantidade de regras para nos munirmos do material necessário para as viagens que eram horríveis,de tão longas. Como Portugal não tinha relações diplomáticas com a maioria dos países da região,os aviões não podiam vir em linha recta.Parávamos em Angola,depois em Cabo Verde ou nas Canárias.Fora as vezes em que o avião avariava e tínhamos de aterrar.Isto implicava estar sempre a retirar e a embarcar doentes que vinham com soros,queimados,algaliados e pacientes de psiquiatria.Chegava estoirada. No outro dia de manhã, em Lisboa, não sabia onde estava. Nem reconhecia a minha casa.
A maioria das minhas colegas diz que a Guiné foi o pior sítio por onde passaram. Eu acho que Mueda foi o local mais difícil para estar a partir de 1972. É que a guerra não é só tiros e evacuações. É também o isolamento.
Éramos três enfermeiras.
Vivíamos numa vivenda com os médicos da enfermaria. Nós tínhamos um quarto e nós outro. Eu sentia uma necessidade enorme de me vestir à civil. Quando acabavam os voos mudava de roupa e ia tirar fotografias ao pôr do sol. Nem me lembrava que isso podia incomodar alguns militares. As minhas colegas não. Estavam de camuflado até à hora de ir para a cama. A comida era horrível. Foi onde emagreci mais: saí de lá com 58 Kgs.
Os estragos do ataque a Mueda |
Vivi aqueles anos intensamente,apesar do dramatismo e de ter visto coisas de que não gostei e de que não me esqueci.Fui buscar mortos e feridos completamente destruídos e desfigurados. Muito mais do que na Guiné, por causa das minas. Um dia entregaram-me uma capa de camuflado,atada com um nó,com os bocados de um homem lá dentro.Quando cheguei ao hospital entreguei-o e os médicos pediram-me que os ajudasse noutra situação.Quando ia para o bloco alguém abriu a trouxa e vi os restos de um humano que não se sabia se era branco ou negro.Estava tudo desfeito..era chocante.Vinha lá uma bota e só quando a tiraram viram que tinha lá um pé.Foi assim que soubemos que o ferido era branco.
Havia situações que nos deixavam a pensar no sofrimento das famílias.Em Julho ou Agosto de 1973,depois de MOCIMBOA DA PRAIA ser atacada,chamaram-me para fazer um transporte. Quando lá cheguei não era nenhum ferido, era uma mulher. O marido estava com ela em casa quando ouviu um rebentamento e veio cá fora.Abriu a porta e foi atingido. Ela estava com um ar completamente perdido. Não chorou, não falou, não olhou para mim nem nada. Tinha uma solidão profunda estampada no rosto. Fez-me muita impressão. Os nossos militares chamavam tanto pelas mães quando eram feridos e nós pensávamos o que elas podiam estar a passar .Mas ali é que vi o sofrimento real.
JOÃO NOVAIS MOLIOA
BATALHÃO DE CAÇADORES 19
COMISSÃO 1966 A 1968
João Novais Molioa e a sua esposa |
Depois de jurar a bandeira portuguesa, cumpriu a comissão em Belém (Niassa) e Nova Freixo até ser evacuado para o hospital de Lourenço Marques. Está há 11 anos em Portugal à procura de tratamento para o stress pós-trumático.
Sou natural de Nampula.A 26 de Fevereiro de 1966 fui incorporado no serviço militar obrigatório. Era o nosso dever como cidadãos portugueses prestar serviço e eu fi-lo.Jurei a bandeira nacional seis meses depois.Tinha 21 anos.
Quis ir para motorista, mas acabei por chumbar nos testes. Passei então para atirador de infantaria. Era apontador de morteiros. Em seguida fui para a escola de Cabos onde, onde concluí com 14 valores e daí fui para o terreno, promovido a 1º Cabo.
Colocaram-me em Nova Freixo e daí mandaram-me para Belém. Os aquartelamentos eram uns antigos armazéns de algodão. Como a guerra estava a intensificar-se, aquilo foi transformado em instalações militares. Improvisámos. Cercámos as instalações com arame farpado e dormíamos ali.Nós,nascidos em Moçambique, sabíamos que estávamos a fazer a guerra com irmãos. Tinhamos conhecimento de que a FRELIMO era um partido de guerrilha, mas como se tratavam de questões políticas, nem todos a compreendíamos. Havia sempre hipótese de passarmos para o outro lado,mas éramos controlados,. Quando já estávamos na tropa se não obedecêssemos, podíamos ser castigados ou presos ao abrigo do RDM. Ainda assim,houve quem tentasse desertar.Nós tínhamos dois elementos que tentaram fugir para o lado do inimigo e foram apanhados e colocados numa prisão,que guardávamos.
Naquela altura havia muita desconfiança. Mesmo entre nós. militares, por causa da PIDE. Era normal alguém pensar em abandonar o exército e tornar-se desertor. Os militares estavam cansados da guerra e se houvesse oportunidade piravam-se. Só não se dizia por causa dessa desconfiança.
Eu nunca pensei em fugir para o outro lado.Teria sido a pior asneira da minha vida. Ainda não tinha filhos, mas era casado. Havia ainda os meus pais,irmãs e irmãos.A lei mandava cumprir o serviço militar obrigatório e assim o fiz.
Não havia um bom relacionamento com a Polícia Militar. Lembro-me que um dia, ainda estava na recruta, em Nampula, o furriel Capela ia a passar pela porta de armas do qurtel-general e o praça do PM que estava de serviço não bateu continência. Ele exigiu que ele o fizesse, porque todos os graduados que por ali passavam tinham que ser saudados. O tipo recusou, Discutiram e o PM matou-o ali mesmo. Assisti a tudo. No outro dia todo o quartel estava revoltado.
Uma das nossas missões principais era acompanhar o comboio que saía de Nacala, ia até Nova Freixo até ao Catur. Algumas carruagens transportavam civis,outras mercadorias. Nós tínhamos de os proteger. Havia um pelotão que entrava na carruagem rebenta minas em Nova Freixo e depois nós íamos reforçá-los de Belém até ao Catur. Militares,civis e carga depois seguiam para os seus destinos em coluna auto.
Quando voltávamos para a companhia, em Belém, íamos seis dias para o mato, em patrulha, substituir os que lá andavam. Éramos levados de Berliet e ficávamos por lá até alguém voltar para nos render. Era à vez.
Chegávamos à zona de Mandimba, que fica a uns 40 kms de Belém, através de mata cerrada Muitas vezes éramos emboscados.
Andávamos pela povoações civis porque eles também eram atacados e raptados pela Frelimo, que lhes queimava as palhotas. Não os matavam.
Dizia-se que os levavam para a Tanzânia onde os treinavam e metiam nas fileiras. Houve um dia em que estávamos numa patrulha e a povoação veio ter connosco a dizer que os guerrilheiros tinham acabado de passar. Fomos lá e encontrámos uma senhora no chão, morta, com um tiro no peito. Ela devia estar a amamentar o bébé, porque ele estava ali a tentar mamar no seio da sua mãe.Aquilo chocou-me muito. Um dos meus colegas recolheu a criança e levou-a com ele. Não sei o que lhe aconteceu. Depois levámos o cadáver dali para fora, Aquilo chocou-me muito.
Fui hospitalizado em Maio de 1967,no Hospital Militar de Nampula.Como piorei enviaram-me para Lourenço Marques.fiquei internado por causa do stress de guerra.A imagem daquela senhora morta com a criança ao lado não me saía da frente.
João Novais Molioa |
JOSÉ JOAQUIM ALCINO ALBINO
COMPANHIA DE ARTILHARIA 3557
COMISSÃO 1971-1973
José Joaquim Alcino Albino |
Em 1971 foi enviado para Moçambique para uma comissão de serviço de dois anos.Cumpriu quase até ao fim e sobreviveu a três minas, mas a última deixou-o paraplégico.
Quando cheguei à Beira, em Moçambique, vi que ali não havia guerra. Não nos deram armas ,nem nada.Fiquei lá oito dias e chovia que era uma coisa maluca. Só quando saímos de lá é que nos deram a G3 e 20 munições. Em Marrupa é que foi carregar até dizer chega. Fiquei num destacamento do distrito de Nampula .Logo na primeira noite uma viatura civil de transporte de cerveja ficou avariada no caminho para MECULA. Fomos enviados para a guardar durante a noite, seis novos e seis velhos. Levava a G3 às costas e pensava:isto aqui não há guerra. Mas quando passava ao pé duma cova os mais velhos diziam:aqui morreu fulano numa mina,além morreu outro.Fui mudando de ideias.
Quando lá chegámos vimos a viatura ao longe. Batemos na zebra da camioneta para chamar o condutor. Gritámos, "Ó Rui, ó Rui" mas ninguém respondeu. Os mais velhos mandaram logo "deitem-se". Foi aí que pensei: pronto já começou. Mas não havia nada. Só lá estava o condutor e uma negra.
Era noite de 12 para 13 de Maio de 1972.Lembro-me porque um dos moços dizia: é hoje que a minha mãe vai saber que estou no Ultramar.O meu pai vai a Fátima e diz-lhe. Já lá estávamos há oito dias.Tremíamos como varas verdes. Levávamos ´s aquele poncho que nos davam.
Os mais velhos protegeram-se nas árvores por causa do cacimbo.Nós ficámos ali a noite e o outro dia quase todo.
Ao fim de 12 dias,ia numa missão a GOMBA, junto à fronteira com a Tanzânia, num Unimog, quando rebentou uma mina incendiária. Pensámos logo que estávamos a ser atacados. Foi esconder e aguentar. Depois começar a socorrer quem estava mal. Felizmente que só o mecânico se aleijou: levou com a mala de ferramentas. Esperámos que o helicópetero o fosse buscar e seguimos viagem..
A minha comissão era de dois anos. Em Janeiro de 1973, no dia que recebi a primeira fotografia do meu filho que nasceu quando lá estava há seis meses, saí para a base de MOANHA. Sentei-me na parte de trás da Berliet e pus a G3 ao colo. Estava a comer uma sandes quando rebentou a segunda mina na parte da frente. O telegrafista que ia lá sentado ficou sem as pernas. Fiquei sentado no chão.
Depois foi esta. A da cadeira. Dia 23 de Junho de 1973. Eram 04H00. Saí do quartel em MECULA em direcção a NOVA FREIXO. Tínhamos passado por ali na an terior e pensámos: hoje não picamos este bocado. Dito e feito
Íamos 13 numa Berliet e a 10 Kms do quartel,antes do rio INCALAW, aquilo rebentou. Eram quatro minas ligadas por cordão detonador.Uma à frente e depois as outras. Rebentou tudo. A Berliet ficou desfeita. E fez um buraco que foi uma coisa maluca.
Fechando os olhos parece que estou a ver onde aquilo foi. Havia uma rocha grandalhona ali ao lado e do outro canavial de bambu. O motor ficou a cento e tal metros do buraco. Eu estava sentado na parte de trás, no vão com os bancos. Fui mandado pelo ar e fiquei pendurado numa árvore pelas calças. Quando me mexi é que caí. Parti a rótula esquerda e ofendi a coluna. A estrada era de areia e aquilo era só pó.
O pior és tu. Os outros estão mortos |
Como estão os meus camaradas?
Está calado que o pior és tu.
Depois ouvi: Eh pá,já são oito mortos.
Então há oito mortos e o pior sou?
Pois, tu estás a sofrer,eles já estão mortos
Éramos treze e só saímos dali três. Havia dois rapazes que já tinham acabado a comissão e estavam para vir para casa. Morreram.
Puseram-me numa prancha e levaram-me para o quartel.Mas as portas eram estreitas e quando ia a passar ofenderam-me o resto da coluna. Estive em coma. Se não fosse aquilo era capaz de me ter safo.
Isto foi às quatro da manhã. Ainda de noite tiveram que acender latas com gasóleo para iluminar a pista para nos levar. Ainda éramos três, mas um morreu na avioneta.
Isto foi em Junho e fiquei lá até Setembro.Vim no dia 12 de Setembro de 1973. Nunca tive um cobate, nem nunca disparei um tiro com a minha G3.Mas as minas é que era.
Normalmente ia uma equipa de cinco a picar o terreno. Um com um detector de metais para ver se havia minas e outros com a G3. Os carros iam atrás Eugostava de ir picar o terreno. Mas nunca encontrei uma mina. Ajudei a destapar. Desta pávamos aquilo e depois púnhamos lá um petardo. Às vezes tentava-se levantar, mas era raro. Era rebentar e pronto. Mas levávamos dias a pé para fazer um bocadito. Às tantas arriscávamos porque estávamos saturados daquilo. E depois os culpados éramos nós. Era o que nos diziam "VOCÊS É QUE SÃO OS CULPADOS".
ANTÓNIO ROCHA CARDOSO
Batalhão de Caçadores 3868
Companhia de Caçadores 3474
Comissão 1972-1973
O rebentamento de uma mina deixou-lhe a cara cheia de estilhaços. Eram os piores inimigos. Nos 13 meses que esteve em Mocimboa da Praia nunca viu um guerrilheiro da Frelimo. Só o fumo a sair das armas a disparar.
A despedida no Cais da Rocha do Conde de Óbidos, parecia Fátima. Eram milhares de pessoas com os lencinhos, a acenar. Eu não tinha lá ninguém. A minha família não sabia que eu ia embarcar. No fim de anterior, fui a casa, estive com eles e despedi-me, mas não lhes disse que ia. Nessa altura já sabia que partira para Moçambique a 4 de Dezembro de 1971. Consegui iludir a minha mãe, dizendo-lhe que ainda iam uns colegas antes de mim. Ao meu pai contei que estava mobilizado. Ele era mais forte. Mas não disse quando ia.
Era um sábado, antes de embarcar meti uma carta no correio para os meus pais e outra para os pais de um camarada que não sabia ler nem escrever.Era eu que que lhe enviava as cartas para os pais e para a mulher. Uns dias depois a minha mãe foi à feira e encontrou a dele a chorar. Disse-lhe: Então os nossos filhos já foram embora. A minha mãe não acreditava. O meu António disse que me avisava. Só que quando chegou a casa já lá estava a casa. Enfim, era duro. Ela chorava muito e não deixava o o meu irmão pôr o rádio a tocar. Era quase como um luto.
Desembarcámos em Mocímboa da Praia no dia 1 de Janeiro de 1972.
A nossa missão era a mais ingrata: acompanhar colunas de abastecimento às outras companhias instaladas no mato e dar protecção à engenharia que estava a rasgar a estrada de Mocímboa da Praia para Mueda. A picada era das coisas mais difíceis, por causa das minas.
Eu caí em cinco emboscadas e nunca vi nenhum guerrilheiro. O capim era tão alto que só víamos o fumo das armas a disparar. Noutra que caí, no Largo de Oasse, estava na 12ª viatura. Quando a guerra rebentou lá à frente saltei do carro e pedi o colete das granadas. Estava com o o morteiro. Meti-lhes três cargas na zona de onde saía o fumo. Depois atirei mais três e eles calaram-se. Virei-me para o alferes e disse-lhe: Ó meu alferes, fodi os gajos. Vamos ver? Ele disse que não, que íamos embora. E ainda bem porque podia ter caído numa armadilha. Não sei se os matámos ou não. Mas acabou.
Há um acidente que ficou gravado na memória, na picada para Diaca. Foi a 2 de Fevereiro de 1973, cinco dias antes de ser ferido. Eu ia na segunda viatura. O José Magalhães da Costa ia à frente , com o detector eléctrico, A certa altura ele sentiu qualquer coisa no detector, deu um passo atrás. deu um passo atrás e aquilo rebentou. Apanhou a ele e a um militar negro. Saltámos logo na direcção deles. À minha frente ia um camarada do meu grupo de combate que, quando viu o Magalhães desmaiou. Só ficou o tronco. Fui à Berliet buscar um pano, apanhei o bocadinho dele e embrulhei-o para o levar ao helicóptero. Do negro só ficaram as pernas.
Depois fui eu, na picada para Nambude. Eram 30 Kms de terra batida, mas eles minavam aquilo tudo, atravessavam árvores e armadilhavam-nas. Uma vez demorámos 35 dias para lá chegar.
Nesse dia 7 de Fevereiro de 1973 íamos entregar uma coluna de abastecimento à Companhia 3473. O ponto de encontro era a passagem do Rio Nango.Entregámos-lhes os mantimentos e voltámos.
Só que o pontão tinha sido destruído pela guerrilha e foi preciso meter o rebenta minas pelo rio. Quando ia a sair essaBerliet ficou atolada.
O condutor estava a tentar tirá-la e eu decidi deitar fora a água do cantil, que estava quente, Quando me levantei para olhar para a Berliet aquela porcaria rebentou de repente. Foi uma explosão tão grande que nunca me passou pela cabeça que tinha sido uma mina. A deslocação de ar quase me matou e atirou-me para o meio da água. Se tivesse desmaiado teria morrido afogado. Consegui rastejar e sair por mim. Não via nada. Só ouvia os gritos. Muitos.
Lembro-me de os meus colegas deitarem-me água para a cara e chamarem o enfermeiro. Ele tinha outros feridos e não havia grande coisa a fazer. Fiquei com a cara cheia de estilhaços.
Depois recordo de ouvir os bombardeiros a limpar a zona, da chegada dos helicópteros e da evacuação para Mueda e depois para Nampula. Fiquei cego vários dias. Quando os abri não sabia de era branco ou negro.
Fiquei em Moçambique vários meses. Ainda me enviaram de volta à companhia, mas mais tarde recebi ordem para vir embora para Portugal. Quando fui ferido tive de avisar os meus pais de que estava tudo bem. Mas quando voltei a Lisboa já não lhes disse nada. Achei que podiam ir esperar-me e como ia para o Hospital Militar da Estrela não valia a pena. Antes de embarcar escrevi-lhes a dizer que ia ter alta e que ia para Nampula, mas que a viagem era longa e não sabia quanto tempo ia demorar. Eles não faziam ideia das distâncias, mas assim ficavam tranquilos.
No Hospital da Estrela em Lisboa, fui operado aos olhos. Deram-me alta em Outubro e resolvi apanhar uma camioneta no Campo das Cebolas. Só que quando fui levantar a minha mala tinham-me roubado os 500 escudos que lá deixei. Quis matar o velho que lá estava Como é que me ia embora? Só tinha 200 escudos moçambicanos. Houve um rapaz que tinha um irmão em Moçambique que me perguntou quanto aquilo valia. Eu só queria o suficiente para o bilhete, que custava 60 escudos, Ele deu-me 100. Saí no Porto e à noite fui para Castelo de Paiva. Quando cheguei à Vila perguntei pelo meu pai, que era mineiro. Estive para esperar por ele, mas segui caminho. Assim que chegou soube logo que eu estava lá. A minha mãe tinha ido buscar erva para as ovelhas. Estava a conversar com a vizinha quando ela chegou. Assim que ouviu a minha voz atirou com o cesto. Então começou o choro e os gritos, agora de alegria.
JOSÉ MARIA DA SILVA PACHECO
2ª COMPANHIA DO BATALHÃO DE CAÇADORES PÁRAQUEDISTA
COMISSÃO 1971-1973
JOSÉ MARIA DA SILVA PACHECO |
Depois do curso de combate,tirei a especialidade de enfermeiro. Fui para Moçambique em rendição individual e levado para junto da minha companhia,que estava acampada em NANGADE,junto ao rio Rovuma, na fronteira com a Tânzania. Éramos comandados pelo então capitão Costa Lemos e víamos os barracões do inimigo do outro lado. Assim que me juntei aos meus camaradas fui logo enviado numa operação. Íamos acompanhar uma coluna de abastecimento, por picada, que seguia até PUNDANHAR. Nós, a cerca de 20 Kms devíamos sair e entrar na mata para fazer emboscadas a trilhos e detecção de inimigos.
A ordem que havia naquela zona era para abater tudo o que mexesse e apanhar as armas:fosse homem,mulher,velho ou criança. Isto não era em vão. Antes tinham ocorrido as operações "ZETA" e "NÓ GÓRDIO" onde foi apanhado material, mas não o grosso da coluna. Eles tinham as bases como a Beira e Gungunhanha perto da fronteira, que serviam para depositar as armas que traziam através do rio e destribuí-las por pequenos grupos. Ao irmos aestas bases podíamos matar os guerrilheiros, mas se não encontrássemos os paióis vinham outros e a guerra continuava.
A coluna onde seguíamos era liderada por um rebente-minas carregado de sacos de areia.Aquela picada tinha mais buracos que um queijo suiço.Não andávamos a mais de 5 ou 10 Kms por hora.eu ia na treceira viatura. Quando tínhamos feito 17Kms, rebentou uma mina à passagem da quarta Berliet, que ia carregada com pára-quedistas.uns foram projectadas, outros saltaram. Só que o inimigo tinha colocado granadas defensivas nas árvores à volta.Quando a malta caíu, puxou os fios que estavam dissimulados e que accionaram as granadas.Tivemos um morto e dez feridos.
Eu era o único enfermeiro, e foi o meu baptismo.Tinha o treino para aquilo,mas a situação de guerra é diferente e muito traumatizante.Uma pessoa chega a certa altura e não sabe a quem há-de acudir. Porque só se ouve:Enfermeiro vem cá....Enfermeiro vem cá.....Fui acudindo os que me pareciam que estavam piores. O Simeão,que morreu, apanhou com estilhaços na garganta e outro no peito. Teve morte imediata. Os helicópteros foram rápidos a responder e aterraram num sítio em que as pontas das pás cortavam os ramos das árvores para levar os feridos e o morto.
A manta que me havia sido distribuída para dormir no mato foi a cobrir o Simeão.
Feita a evacuação, o comandante decidiu que devíamos entrar na mata que era cerradíssima. Chegámos a andar de rastos pelos buracos dos javalis e dos animais. As lianas prendiam-se às armas e às mochilas e tínhamos de andar sempre em silêncio. Quando saímos, encontrámos uma zona de bolanha, uma área agrícola cultivada, redonda. À entrada estava uma cobra capelo levantada e virada para nós. Parecia um aviso. Afastámos a cobra com a arma e começámos a ouir galinhas. A estratégia foi abrir foi abrir para os dois lados. No direito localizámos palhotas. Uma equipa foi lá e voltou com a informação que havia lume e galinhas de lá ter estado alguém há pouco tempo.
AOuvia-se um tiro e um de nós caía |
Infelizmente fêz-nos mais um ferido, um rapaz que estava deitado de frente para a zona de tiro. Uma bala passou-lhe rente à cabeça e cortou-lhe o gémeo da perna esquerda. Ripostámos, mas não sabemos se os atingimos ou não.
Ele foi evacuado e nós continuámos a andar.Chegámos a uma zona de cruzamento de trilhos bem batidos e o comandante pensou que era um sítio bom para montar uma emboscada.Eles haviam de ali passar. Ao fim de dois dias apareceram 12 inimigos. Foram dizimados.Para mim foi das operações mais dramáticas porque foi onde tivemos mais baixas de uma só vez.
Como enfermeiro não tinha um pelotão definido. Saía com quem calhava porque éramos menos. Resultado: enquanto os meus camaradas faziam 10 operações numa missão de de dois meses eu fazia 14 ou 15.
Se a primeira operação foi a mais dramática,a mais complicada em que estive foi um ataque à base Beira,a base chave deles. Não só pela posição estratégica,de passagem para a Tanzânia,mas por ter um hospital subterrâneo e trincheiras de defesa.
Eles era frequentemente visitados por nós e pelos Comandos. Isto foi em Dezembro de 1971, por altura do Natal. A base foi cercada à distância por tropas de outras unidades e nós fomos lançados de helicópteros. A porta do lado direito tinha metralhadora MG e nós saltávamos do esquerdo. Por cima tínhamos o hélicanhão. Só que depois de saltarmos, ficávamos por nossa conta. A nossa intervençãp foi rápida. Abatemos dois inimigos e continuámos a bater a zona durante seis dias.Mas dentro da base encontrámos dez toneladas de material por acaso.
Um militar ia a andar quando caiu dentro de um paiol. Os Macondes e Macuas faziam buracos profundos no chão que revestiam com um barro que parecia cimento.Era aí que guardavam os seus alimentos.Estava cheio de granadas de morteiro, RPG7, minas, carregadores, metralhadoras "costureirinhas". Ainda andámos à procura de outros, mas não conseguimos. Se tivéssemos detector de metais talvez conseguíssemos.
LUCIANO ANTÓNIO LAURÊNCIO
1ª COMPANHIA DO BATALHÃO CAÇADORES PÁRA-QUEDISTA Nº 32
COMISSÃO 1971-1973
LUCIANO ANTÓNIO LOURÊNCIO |
Fui para Moçambique 7 de Março de 1971. Saí daqui num T6 de carga, fomos levar material de guerra à Guiné, parámos um dia em Luanda e depois seguimos pata Lourenço Marques. Daí fomos para Nampula, na Beira e depois pata Nacala, para o BCP 32. Estavam lá duas Companhias. Eu fiquei colocado no quarto pelotão da primeira companhia.
Assim que lá chegámos fomos fazer uma operação para o VALE de MITEDA,no planalto dos MACONDES,na zona dos PAUS. Constava-se que havia uns dois anos que não iam lá tropas.
Fomos lançados de helicóptero, cerca de 80 homens,e começámos a aproximação a uma base.A segunda companhia foi depois deixada numa zona mais próxima.Estava tudo estudado.Enquanto uns iam à base os outros ficavam mais para trás para o caso de algum guerrilheiro conseguir fugir.Só que a segunda companhia que ficou a dar a protecção acabou por levar mais porrada do que nós.Eles tiveram três mortos e nós um.
A nossa vítima foi o Cunha. Progredimos durante a noite e fizemos o círculo para acamparmos. A certa altura ouvimos um tiro de pólvora seca para assinalar o sítio onde estávamos.A partir daí começámos a ser bombardeados com morteiros de 82 mm. Era a coisa que mais nos desmoralizava.Percebíamos quando ele era lançado e depois não sabíamos onde ia cair.Só mais perto ouvíamos o assobiar. E não podíamos responder.
Eu e o Cunha estensemos uma capa no chão, deitámo-nos e pusemos a outra por cima. Estávamos ao lado um do outro. Ele tinha o cantil a servir de almofada. Quando as morteiradas pararam chamei por ele, Cunha...Cunha....,e ele não disse nada. Joguei-lhe a mão à cabeça e senti-a cheia de sangue. Tinha sido atingido por um estilhaço. Ainda chamámos o enfermeiro mas ele já estava em coma.
Saímos de Mueda a 14 de Julho de 1971,para a operação LANCELOT. Só que eles estavam à nossa espera e derrubaram um helicóptero, o segundo. Eu seguia no primeiro. Ainda assim fomos largados,uns 20 e tal homens,e ficámos à espera de reforços. Só que nessa noite não houve hipótese de ir mais ninguém. Quando íamos para uma operação era a altura em que estávamos mais desguarnecidos. Não havia helicópteros suficientes para levar uma companhia. Levavam um pelotão e depois voltavam a Mueda para ir buscar mais pessoal. Só quando a Companhia estava completa é que começávamos a progredir.
Também era raro sermos largados próximo das bases inimigas. Ali foi ao contrário.Ficámos muito perto: até os ouvíamos a conversar durante a noite.Quando percebemos que não iam chegar mais ninguém, procurámos uma árvore de grande porte para nos protegermos. Depois não saíamos do sítio. A mata cerrada tinha tanto de negativo como de positivo. Para progredirmos, o primeiro tinha de ir com uma catana para cortar os galhos e ramos. Mas por outro lado, os morteiros rebentavam na copa das árvores. Eles sabiam que estávamos nas proximidades, mas não se aproximaram porque estávamos armados e não nos conseguiam ver.Passámos ali a noite e no outro dia os gajos da Frelimo levaram o helicóptero todo. Normalmente não deixávamos material no terreno,mas ali não houve condições para o recuperar. Quando os reforços chegaram pela manhã,saímos. Pertencia ao quarto pelotão e, como tinha a MG, ia à frente. Aquilo era rotativo.
A certa altura encontrámos uma clareira enorme, que tínhamos que atravessar. Levávamos um guia que tinha fugido à Frelimo que disse ao Capitão Carlos Alves:se entrarmos por essa clareira eles matam-nos a todos. Ficámos a debater o que devíamos fazer quando ele disse: se passar só um homem eles não disparam. O interesse deles era apanhar o grosso da coluna. Calhou-me a mim ser o primeiro. Aquilo à volta era mata cerrada. Levava o peso do mundo em cima de mim. Saí a andar devagarinho,enquanto o resto da companhia passava à volta. Juntámo-nos todos do outro lado. Aí,o Capitão achou por bem ficarmos quietos. Ninguém falava, bebia ou fumava. Só podíamos respirar. Estivemos ali duas horas. Como acharam estranho tanto silêncio vieram à nossa procura. Quando ouvimos uns barulhos num trilho fizemos uma emboscada imediata. A certa altura foram quatro homens para a esquerda e outros quatro para a direita.Eu fiquei no lado esquerdo. Eles apareceram do outro. Quando o alferes Vieira os viu, eles abriram fogo.O Borrego ainda disparou mas a G3 encravou. Pediram logo a MG. Fiz uma rajada e apanhei dois gajos.Agarrámos nas Kalashnikov e nos cintos mas os tipos não nos largaram com a morteirada.
Luciano António Laurêncio |
Lá em baixo era um calor sem igual. A terra estava toda queimada. Púnhamos a bota no chão e ouvíamos o "PFF", "PFF" da crosta da terra a partir. Os helicópteros tiveram de voltar porque houve alguns de nós que não aguentaram estar ali com o calor. Os bichos saltavam e morriam por causa do Napalm .Fomos ajudados pelos tipos dos GRUPOS ESPECIAIS, que era quem ia buscar os gajos da Frelimo que se entregavam.Eles estavam habituados àquilo.
A certa altura encontrámos uma fonte de água. Enchemos os cantis e continuámos à procura do material. Quando voltámos para reabastecer estava uma carrada de armas novas encostadas umas às outras pelo cano. Pensámos que era uma armadilha. Fizemos a segurança e atirámos uma corda para puxar as armas e ver se aquilo estava armadilhado. Não estava. Aproximámo-nos e apanhámo-las. Ainda hoje estou para saber o que foi aquilo. Só posso pensar que estavam tão desesperados que foram beber água e deixaram-nas para trás. Até Março de 1973,participei em cento e tal operações,sempre na zona de Mueda e nunca me poupei.Mas tive sorte,passei sempre entre as balas.
ANTÓNIO CANDEIAS DA CONCEIÇÃO
1ª COMPANHIA DO BATALHÃO DE CAÇADORES PARAQUEDISTAS Nº 32
COMISSÃO 1968-1970
A Operação ZETA parecia destinada ao fracasso qundo um militar se desviou da coluna e encontrouum paiol escondido no meio do mato, António Candeias estava lá. Cumpriu uma comissão de 26 meses e só num é que escapou ao mato- estava a representar a unidade num torneio de futebol de salão.
O meu primeiro mês em Moçambique foi feroz. Cheguei em Agosto de 1968 e no fim de duas semanas estava no mato a ver morrer um grande amigo. Íamos numa coluna, a f,azer a segurança a uma companhia do Exército que tinha chegado. À frente ia o rebente-minas, uma Berliet carregada de sacos de areia, só com o condutor e um soldado em cima com uma metralhadora. À passagem do oitavo veículo rebentou uma mina anti-carro. Ninguém morreu. Também não houve feridos . Só que o meu amigo saíu do Unimog para ver o buraco que aquilo tinha feito na picada quando rebentou uma mina anti-pessoal. Entrou-lhe um estilhaço no coração. Era tão pequeno que o pessoal não encontrava o ferimento. Morreu logo ali
Na altura estávamos aquartelados em NANGOLOLO. Dormíamos dentro da igreja. Ainda no primeiro mês fomos atacar um sítio onde havia um hospital, uma escola e muita gente armada. Hoje em dia fala-se em atacar uma escola e fica tudo em pânico. Ali era a guerra e eles misturavam-se com a população. Soubemos daquele sítio através de uns indivíduos que tinham sido apanhados e entregues à PIDE-DGS. As viaturas levaram-nos pela picada o mais perto possível e depois seguimos a corta-mato. Atacávamos sempre ao romper do dia.
Naquela vez não encontrámos nada, só palhotas vazias. No regresso, começámos a vê-los numa encosta lateral. Eles sabiam que íamos para a picada e ficaram à nossa espera para nos emboscar. Nós andávamos a cerca de 10 metros uns dos outros para evitar sermos apanhados em rajada. Ali tivemos azar; passámos todos e eles atingiram o que ia em último lugar com um riro nos intestinos.
O nosso enfermeiro era experiente e disse ao Capitãao que ele tiha que ser evacuado, senão morria. Encontrámos uma clareira que tinha uma árvore ao meio. Cortámo-la com catanas para o helicópetero poder aterrar e ficámos à volta a dar protecção.Eram 13H e o pessoal estava cansado e cheio de calor. Estava a beber uma lata de sumo, quando começaram a cair granadas de morteiro e de bazuca.O helicópetro aterrou, levou mais alguns feridos para Mueda e já não voltou. Aquilo foi um pandemónio. Houve um pára-quedista que chorava e que se meteu num buraco feito por uma granada. Depois não queria sair de lá. Dizia que ali não caía mais nenhuma.
A nossa Companhia era muito madura. Era feita por rendição individual e isso fazia com que houvesse sempre uma mistura de chekas (novos) e de kokuanas (velhos)
Ainda assim,tivemos que fugir. Pensei que se aquilo continuasse daquela maneira não voltava a casa. Ficámos com uma série de feridos, para levar às costas atravé de uma mata virgem que tinha de ser aberta à catanada. A mim e a mais três camaradas calhou-nos carregar o "Fafe", um matulão que foi atingido numa perna. Para o transportarmos tivemos de entregar as armas aos outros colegas. Na altura andava com uma ARMLIGHT, uma arma da NATO que era a melhor para aquela guerra; era leve e quilibrada. Comparada com ela, a G3 era um pedregulho.
Andámos horas e horas numa coluna comprida.Éramos 120 homens. Quando chegámos à picada, entrámos nas Berliets. Ali,as árvores juntavam-se e faziam uma espécie de túnel..pelo caminho os taipais das viaturas roçavam nas árvores. Quando chegámos a NANGOLOLO à noite,o ataque tinha sido ao almoço, tínhamos os veículos cheios de folhas.Fomos descansar para a igreja,o meu colchão estava no altar,é que verifiquei que faltava a minha arma..Perdê-la na guerra era grave. Andámos à sua procura e fomos encontrá-la numa Berliet, debaixo das folhas.
O segredo era para evitar fugas de informação. Nós estávamos no meio deles. E havia civis entre nós que os informavam. Tivemos um exemplo disso em Macomia, onde estivemos algum tempo a fazer segurança a uma companhia de engenharia. Lá à volta havia uma terra com civis. Um deles era o Faria, um tipo muito simpático que nos vendia aquelas imagens de oau preto. Um dia a companhia foi atacada pela FRELIMO. Nós reagimos e matámos uma série deles. Quando fomos ver quem eles eram estava lá o Faria, de arma na mão. Por isso, muitas vezes quando íamos para uma operação eles sabiam e fugiam.
Na ZETA isso não aconteceu. Levantámos voo e a operação esteve quase a abortar por causa do nevoeiro. Fizemos escala em Mocímboa da Praia, onde ficámos algumas horas no avião, de pára-quedas às costas.só mais tarde, já em Portugal, soube que fomos largados a 200 metros de altura, em salto automático. Se houvesse algum problema não havia tempo para nada. Éramos centenas de homens. O nosso objctivo era encontrar o qurtel para onde eles levavam as armas que depois eram distribuídas pelas bases. Fomos deixados numa clareira e depois juntámo-nos por companhia. Entrámos no mato e não encontrámos nada.
Parecia uma operação falhada.Só que no regresso, houve um que saíu da fila para ir urinar e viu uma barraca de capim..Chamou o sargento para ir ver o que havia ali e encontraram um paiol cheio de armas e munições.Começámos a vasculhar nas zonas à volta e localizámos várias como aquelas.Apanhámos 16 Toneladas de material sem disparar um tiro.Um helicóptero foi cheio de sabres e baionetas .Além das Kalashnikovs,morteiros e bazucas havia enxadas e cabeças de máquinas de costura Singer.Comparada com esta a Nó Górdio não prestou para nada.
Quando faltavam nove dias para vir embora, ainda eu estava em Nangololo. Tinha de voltar para Mueda numa coluna que às vezes demorava seis ou sete dias. Eu ia na viatura que levava o saco do pão e fiquei responsável por destribuí-las na hora da ração. Ainda havia carros dentro do arame farpado de Nangololo quando uma mina rebentou na parte da frente. A coluna parou logo.
Entretanto, o capitão Pires diz-me para ir levar o pão ao pessoal da frente. Eu já tinha acabado a minha comissão e estava preparado para vir embora. Então disse-lhe: meu Capitão, eu não saio da viatura. Então o barco já está à minha espera e vou arriscar?. Pôr os pés no chão era um suicídio. O Capitão respondeu-me que ia mesmo, saiu da viatura e ordenou-me: Venha comigo. Seguiu à minha frente, enquanto eu ia a pisar exactamente no mesmo sítio por onde ele tinha passado. Levei o pão à malta e voltei por onde tinha posto os pés. Ainda estivemos dois ou três dias ali parados. Depois apanhámos o NORD ATLAS para Nacala.
Foi a última coisa que fiz no mato.
CARLOS MANUEL DA SILVA BALHAU
2ª COMPANHIA DO BATALHÃO DE CAÇADORES PÁRA-QUEDISTA Nº 32
COMISSÃO 1971-1972
A missão dum enfermeiro não terminava quando uma coluna parava.Era preciso ver como estavam as mazelas dos camaradas.Uma vez um soldado disse-lhe que estava convencido de que se fosse para o mato,morria.Solução:cortou-lhe o pé como se ele tivesse pisado uma lata da ração de combate
A chegada a Moçambique foi um choque. Primeiro nunca tínhamos visto tanto negros. Depois o trânsito era pela esquerda. Achávamos que não vinha ninguém e de repente estavam a apitar. Estivemos cinco dias em Lourenço Marques. Apanhámos o avião para Nampula e aí entrámos num comboio que trabalhava a carvão. Quando chegámos a Nacala era Abril de 1971.
No BCP 32,recebemos ordem para um período operacional em Mueda na zona dos PAUS.Chegámos lá de helicóptero e assim que saltámos fomos atacados. Cada um de nós sabia que tinha que correr para a orla da mata.Eu,CHEKA,tinha preparado a mochila de enfermagem,comas rações para três dias e a bolsa de enfermagem com tudo e mais alguma coisa. Estávamos preparados para o que fosse preciso. Até tínhamos uma listagem com o grupo sanguíneo dos elementos do pelotão, para fazer uma transfusão directa, se fosse necessário. Além de todas estas coisas, a bolsa de enfermagem tinha uma coisa essencial: uma lanterna revestida a borracha. E eu perdi-a. Os gajos estavam aos tiros e eu ali à procura dela. Até que me mandaram atirar para o chão.
Entrámos na mata e encontrámos uma zona de palhotas. Lembro-me que fomos revistá-las e que eu trazia uma gaiola com um pássaro lá dentro quando rebentou uma fuzilaria tremenda. No meio da confusão, ouço: ENFERMEIRO ATRÁS!. Na primeira vez que se ouve aquilo no mato um gajo não pensa, põe-se de pé e desata a correr com o coração apertado. Não há tempo para ter medo.É algo instintivo.Quando cheguei ao meio da coluna o Alferes disse-me: vai-te embora,já não és preciso. Fui para o meu lugar e ele foi conferenciar com o comandante do pelotão: O Mora morreu! Estava a fazer segurança no perímetro e descuidou-se.Levou um tiro e morreu instantaneamente,no dia em que a mulher chegou ao BCP32. Foi um choque.O Comandante respondeu:Nós fodemos 3 gajos e apanhámos três armas.
Aquela era uma missão de três dias e acabámos por fazer seis. Estávamos numa zona e a 1ª Companhia progredia em paralelo.No último dia,estávamos a acabar de fazer o círculo,para dormir,quando ouvimos dois tiros. Depois eles começaram a atacar-nos com morteiros. Foi uma noite infernal. Mataram-nos,o Russo,com um estilhaço na cabeça. Estivemos a noite toda à volta dele, mas não deu para o salvar.
Quando estávamos para ser recolhidos, fizemos a protecção para os helicópteros aterrarem.De repente,rebentou um tiroteio e voltei a ouvir o ENFERMEIRO À FRENTE!.Corri para um individuo. Era o Rodrigues. Ele já tinha acabado a comissão e ainda estava no mato. Levou um tiro no músculo deltóide (no ombro) e já tinha outro enfermeiro à volta dele.
Não valia a pena fazer nada. A bala cortou-lhe a aorta e morreu com hemorragia interna. Foi a primeira pessoa que me morreu nas mãos.
Os aviões T6 tiveram que lá ir bombardear aquilo. Nos helicópteros percebemos que tínhamos deixado uma equipa de quatro no mato. Esquecemo-nos e tivemos de voltar. Quando desembarcámos em Mueda, houve um gajo que deixou cair um bidão. O barulho parecia o de um morteiro a rebentar e a malta atirou-se toda para chão, era o medo. Estávamos esfrangalhados. A partir de uma determinada hora a população entrava no quartel para tratamentos. Levavam injecções e tratávamos as mulheres esquentadas. Tentávamos evitar problemas de higiene, que foi um dos aspectos muito martelados no curso de enfermagem.
Depois do repouso,começávamos a sofrer da ansiedade da partida. Após o primeiro período operacional já pensamos no regresso para aquela merda e se vamos voltar de lá vivos. No início havia uma grande inconsciência Istoa apesar de,na formação para enfermeiro,ter corrido todos os serviços do Hospital Militar da Estrela e de ter visto situações chocantes: rapazes cegos,queimados,sem braços,pernas ou em cadeira de rodas.Mas havia aquela ideia de que aquilo não nos ia acontecer a nós, só aos outros. Estávamos intoxicados pelo espírito da defesa do Império. Era o que nos ensinavam. Aquilo era nosso.
Mais tarde fomos para Omar, ao pé do rio Rovuma. Aí apanhei paludismo e não participei na primeira operação. Na segunda já pude ir. Estava junto ao comando quando rebentou um tiroteio e apanhámos um tipo. O outro morreu, mas antes quase apanhou o rapaz que ia com a metralhadora MG: mesmo com as pernas esfaceladas continuou a disparar. Ele subiu à picada e acabou com ele. Quando chegou ao pé do prisioneiro disse-lhe: A este arranco-lhe o coração pelas costas. O tipo que só tinha levado um tiro de raspão. respondeu-lhe: Estou protegido pela Convenção de Genebra, a mim não me matas. Pensámos: Eh lá. Acabei por ser eu a fazer-lhe a primeira pergunta:
Como te chamas?
Fernando Timóteo Bila
Onde fica a base Nampula?
Fica aí algures. O que vinha comigo é que sabia onde
Era gente grande. Tinha saído de Dar-es-Salam na noite anterior. Antes fez aquele percurso pela União Soviética e tinha ido para a Tanzânia através de Varsóvia. Era engenheiro agrónomo e ia comandar a base Nampula, mas não sabia onse ela era. Nós também não a encontrámos. Estivemos em muitas bases , que não tinham ninguém. Em algumas tivemos a percepção que não os apanhámos por minutos.
Também estivemos em TETE, onde fizemos um salto operacional. Ainda hoje estou convencido de que aquilo era território da Rodésia. Caímos numa lavra de milho e melancia. Era uma operação de nove dias. A minha companhia matou seguramente mais de 4oo vacas, para os gajos não as comerem. Além delas não encontrámos mais nada. Entrámos em Moçambique por Mutare e depois seguimos para da Beira para Nacala. E já não voltei para o mato.
Vim fazer o Curso de Sargentos, Embarquei de regresso no dia 29 de Maio de 1972. Apesar de ter sido um alívio vir embora, quando cheguei de Moçambique tinha medo de andar na rua. Já não estava habituado à vida civil.
Na ZETA isso não aconteceu. Levantámos voo e a operação esteve quase a abortar por causa do nevoeiro. Fizemos escala em Mocímboa da Praia, onde ficámos algumas horas no avião, de pára-quedas às costas.só mais tarde, já em Portugal, soube que fomos largados a 200 metros de altura, em salto automático. Se houvesse algum problema não havia tempo para nada. Éramos centenas de homens. O nosso objctivo era encontrar o qurtel para onde eles levavam as armas que depois eram distribuídas pelas bases. Fomos deixados numa clareira e depois juntámo-nos por companhia. Entrámos no mato e não encontrámos nada.
Parte do armamento capturado na Operação ZETA |
Parecia uma operação falhada.Só que no regresso, houve um que saíu da fila para ir urinar e viu uma barraca de capim..Chamou o sargento para ir ver o que havia ali e encontraram um paiol cheio de armas e munições.Começámos a vasculhar nas zonas à volta e localizámos várias como aquelas.Apanhámos 16 Toneladas de material sem disparar um tiro.Um helicóptero foi cheio de sabres e baionetas .Além das Kalashnikovs,morteiros e bazucas havia enxadas e cabeças de máquinas de costura Singer.Comparada com esta a Nó Górdio não prestou para nada.
Quando faltavam nove dias para vir embora, ainda eu estava em Nangololo. Tinha de voltar para Mueda numa coluna que às vezes demorava seis ou sete dias. Eu ia na viatura que levava o saco do pão e fiquei responsável por destribuí-las na hora da ração. Ainda havia carros dentro do arame farpado de Nangololo quando uma mina rebentou na parte da frente. A coluna parou logo.
Entretanto, o capitão Pires diz-me para ir levar o pão ao pessoal da frente. Eu já tinha acabado a minha comissão e estava preparado para vir embora. Então disse-lhe: meu Capitão, eu não saio da viatura. Então o barco já está à minha espera e vou arriscar?. Pôr os pés no chão era um suicídio. O Capitão respondeu-me que ia mesmo, saiu da viatura e ordenou-me: Venha comigo. Seguiu à minha frente, enquanto eu ia a pisar exactamente no mesmo sítio por onde ele tinha passado. Levei o pão à malta e voltei por onde tinha posto os pés. Ainda estivemos dois ou três dias ali parados. Depois apanhámos o NORD ATLAS para Nacala.
Foi a última coisa que fiz no mato.
CARLOS MANUEL DA SILVA BALHAU
2ª COMPANHIA DO BATALHÃO DE CAÇADORES PÁRA-QUEDISTA Nº 32
COMISSÃO 1971-1972
CARLOS MANUEL DA SILVA BALHAU |
A chegada a Moçambique foi um choque. Primeiro nunca tínhamos visto tanto negros. Depois o trânsito era pela esquerda. Achávamos que não vinha ninguém e de repente estavam a apitar. Estivemos cinco dias em Lourenço Marques. Apanhámos o avião para Nampula e aí entrámos num comboio que trabalhava a carvão. Quando chegámos a Nacala era Abril de 1971.
No BCP 32,recebemos ordem para um período operacional em Mueda na zona dos PAUS.Chegámos lá de helicóptero e assim que saltámos fomos atacados. Cada um de nós sabia que tinha que correr para a orla da mata.Eu,CHEKA,tinha preparado a mochila de enfermagem,comas rações para três dias e a bolsa de enfermagem com tudo e mais alguma coisa. Estávamos preparados para o que fosse preciso. Até tínhamos uma listagem com o grupo sanguíneo dos elementos do pelotão, para fazer uma transfusão directa, se fosse necessário. Além de todas estas coisas, a bolsa de enfermagem tinha uma coisa essencial: uma lanterna revestida a borracha. E eu perdi-a. Os gajos estavam aos tiros e eu ali à procura dela. Até que me mandaram atirar para o chão.
Entrámos na mata e encontrámos uma zona de palhotas. Lembro-me que fomos revistá-las e que eu trazia uma gaiola com um pássaro lá dentro quando rebentou uma fuzilaria tremenda. No meio da confusão, ouço: ENFERMEIRO ATRÁS!. Na primeira vez que se ouve aquilo no mato um gajo não pensa, põe-se de pé e desata a correr com o coração apertado. Não há tempo para ter medo.É algo instintivo.Quando cheguei ao meio da coluna o Alferes disse-me: vai-te embora,já não és preciso. Fui para o meu lugar e ele foi conferenciar com o comandante do pelotão: O Mora morreu! Estava a fazer segurança no perímetro e descuidou-se.Levou um tiro e morreu instantaneamente,no dia em que a mulher chegou ao BCP32. Foi um choque.O Comandante respondeu:Nós fodemos 3 gajos e apanhámos três armas.
Aquela era uma missão de três dias e acabámos por fazer seis. Estávamos numa zona e a 1ª Companhia progredia em paralelo.No último dia,estávamos a acabar de fazer o círculo,para dormir,quando ouvimos dois tiros. Depois eles começaram a atacar-nos com morteiros. Foi uma noite infernal. Mataram-nos,o Russo,com um estilhaço na cabeça. Estivemos a noite toda à volta dele, mas não deu para o salvar.
Quando estávamos para ser recolhidos, fizemos a protecção para os helicópteros aterrarem.De repente,rebentou um tiroteio e voltei a ouvir o ENFERMEIRO À FRENTE!.Corri para um individuo. Era o Rodrigues. Ele já tinha acabado a comissão e ainda estava no mato. Levou um tiro no músculo deltóide (no ombro) e já tinha outro enfermeiro à volta dele.
Não valia a pena fazer nada. A bala cortou-lhe a aorta e morreu com hemorragia interna. Foi a primeira pessoa que me morreu nas mãos.
Os aviões T6 tiveram que lá ir bombardear aquilo. Nos helicópteros percebemos que tínhamos deixado uma equipa de quatro no mato. Esquecemo-nos e tivemos de voltar. Quando desembarcámos em Mueda, houve um gajo que deixou cair um bidão. O barulho parecia o de um morteiro a rebentar e a malta atirou-se toda para chão, era o medo. Estávamos esfrangalhados. A partir de uma determinada hora a população entrava no quartel para tratamentos. Levavam injecções e tratávamos as mulheres esquentadas. Tentávamos evitar problemas de higiene, que foi um dos aspectos muito martelados no curso de enfermagem.
Depois do repouso,começávamos a sofrer da ansiedade da partida. Após o primeiro período operacional já pensamos no regresso para aquela merda e se vamos voltar de lá vivos. No início havia uma grande inconsciência Istoa apesar de,na formação para enfermeiro,ter corrido todos os serviços do Hospital Militar da Estrela e de ter visto situações chocantes: rapazes cegos,queimados,sem braços,pernas ou em cadeira de rodas.Mas havia aquela ideia de que aquilo não nos ia acontecer a nós, só aos outros. Estávamos intoxicados pelo espírito da defesa do Império. Era o que nos ensinavam. Aquilo era nosso.
Entrada do Aquartelamento de OMAR em Agosto de 1974 |
Mais tarde fomos para Omar, ao pé do rio Rovuma. Aí apanhei paludismo e não participei na primeira operação. Na segunda já pude ir. Estava junto ao comando quando rebentou um tiroteio e apanhámos um tipo. O outro morreu, mas antes quase apanhou o rapaz que ia com a metralhadora MG: mesmo com as pernas esfaceladas continuou a disparar. Ele subiu à picada e acabou com ele. Quando chegou ao pé do prisioneiro disse-lhe: A este arranco-lhe o coração pelas costas. O tipo que só tinha levado um tiro de raspão. respondeu-lhe: Estou protegido pela Convenção de Genebra, a mim não me matas. Pensámos: Eh lá. Acabei por ser eu a fazer-lhe a primeira pergunta:
Como te chamas?
Fernando Timóteo Bila
Onde fica a base Nampula?
Fica aí algures. O que vinha comigo é que sabia onde
Era gente grande. Tinha saído de Dar-es-Salam na noite anterior. Antes fez aquele percurso pela União Soviética e tinha ido para a Tanzânia através de Varsóvia. Era engenheiro agrónomo e ia comandar a base Nampula, mas não sabia onse ela era. Nós também não a encontrámos. Estivemos em muitas bases , que não tinham ninguém. Em algumas tivemos a percepção que não os apanhámos por minutos.
Também estivemos em TETE, onde fizemos um salto operacional. Ainda hoje estou convencido de que aquilo era território da Rodésia. Caímos numa lavra de milho e melancia. Era uma operação de nove dias. A minha companhia matou seguramente mais de 4oo vacas, para os gajos não as comerem. Além delas não encontrámos mais nada. Entrámos em Moçambique por Mutare e depois seguimos para da Beira para Nacala. E já não voltei para o mato.
Vim fazer o Curso de Sargentos, Embarquei de regresso no dia 29 de Maio de 1972. Apesar de ter sido um alívio vir embora, quando cheguei de Moçambique tinha medo de andar na rua. Já não estava habituado à vida civil.
JOSÉ MANUEL REIS MARTINS
BATALHÃO DE ARTILHARIA 2989
COMISSÃO: 1969-1971
Depois de ser ferido numa patrulha,foi carregado ao ombro por um colega e passou a noite sem ser visto por um enfermeiro.Sobreviveu graças ao auxílio à distância de um médico que tinha conhecido a sua mulher em Lourenço Marques e reconheceu o seu nome.
Casei em Lourenço Marques durante a minha comissão. Tinha chegado a Moçambique em Dezembro de 1969. Desembarquei em Nacala e apanhámos o comboio para Vila Cabral.Nem sabíamos para onde estávamos a ir. Lembro-me que fomos atacados no caminho, uma flagelação comum naquela zona. A minha companhia tinha sido colocada em Nova Viseu,uma zona isolada,de mato,sem população. Fiquei aí algum tempo. Depois tínhamos destacamentos, postos avançados mais pequenos, ao nível de pelotão, que serviam de apoio e davam protecção às colunas de reabastecimento.
Em Março ou Abril de 1970,tive um pequeno ferimento num braço e num dedo.A Frelimo tinha montado uma armadilha,com uma granada pendurada numa árvore,que explodia quando o fio onde estava presa era puxado.Fui levado para Lourenço Marques e,ingénuo,pensei que a guerra tinha terminado para mim. A minha namorada foi lá ter comigo e casámos na Igreja da Polana. Mas 15 dias depois fui a uma consulta ao Hospital Militar e deram-me alta.Voltei para o mato.
A minha mulher, a Maria Cândida, ficou lá a dar aulas, na esperança de eu pudesse voltar. Mas não voltei. Ela ficou instalada na pensão NINI, onde conheceu a mulher de um médico do Exército.A minha mulher disse-lhe que eu também estava na zona. A diferença entre nós é que ele tinha facilidade em ir a Lourenço Marques. Eu não. Estava numa zona isolada.
Nos 24 meses da minha comissão nunca tive contacto com a população. Estivemos sempre no mato. Também acabei por não ser transferido porque a certa altura o capitão que nos comandava pisou uma mina, caiu em cima de outra e morreu. Como alferes miliciano era o único graduado e fiquei a comandar aquilo. Na altura intensifiquei as saídas ao mato para os soldados reagirem e esquecerem a morte dele. Mais tarde veio um segundo capitão, que acabou também por morrer, já eu não lá estado, num incidente no quartel: um soldado embriagado deu-lhe um tiro.
Em Abril de 1971 tive uma situação complicada.Estava no destacamento quando o cabo telegrafista veio ter comigo e disse-me: Alferes,tinho uma má notícia para si.Qual,perguntei eu.O seu pai morreu.Foi um choque.
Quando estava a 15 dias de me vir embora,saímos numa operação.Batemos uma zona e não encontrámos nada.No regresso por volta das 16h30,ao atravessarmos um riacho pisei uma mina que estava debaixo de água.Fui projectado e não me lembro de mais nada.
Foi pedida a evacuação,mas como os helicópteros não voavam a partir da 16H,do outro lado disseram que só no dia seguinte.
Segundo me contaram,a noite foi complicada.Por acaso,quando pediram a minha evacuação para Vila Cabral,falaram com o médico que tinha conhecido a minha mulher em Lourenço Marques,que reconheceu o meu nome.O Jorge Pereira da Silva esteve toda a noite em contacto com o maqueiro.Cerca das 23H foi preciso sangue e soro.Então,Vila Cabral enviou um táxi-aéreo que largou um pacote no pelado onde jogávamos futebol,que estava iluminado com latas de cerveja cheias de gasóleo.Eu estava acordado.Lembro-me de perguntar o que tinha e quando me falaram no pé nem tive coragem de ver..Na mana seguinte,o helicóptero chegou com o médico que tinha ajudado o maqueiro,que me preparou ali mesmo e me levou para Vila Cabral.
Quando acordei ele estava à minha beira.Ficámos amigos e convivemos em Lisboa..Mas foi bastante duro.Estava com 28 anos e sem um pé.A minha mulher,entretanto tinha regressado a Portugal.Em Dezembro de 1971,fui evacuado para o Hospital da Estrela em Lisboa onde voltei a ser operado porque a amputação não estava bem feita.Disse-me o Médico:Vou cortar mais um bocado e você fica impecável com uma prótese.E assim foi.
CARLOS GONÇALVES DA COSTA
1ª COMPANHIA DO BATALHÃO DE CAÇADORES PÁRAQUEDISTA Nº 31
COMISSÃO: 1968-1970
No caminho para uma base inimiga começaram a ser perseguidos por animais selvagens.Assustaram-nos com uma granada,mas eles fugiram em direcção aos soldados.Dois meses depois estavam a participar na oeração ZETA.
Na Guiné havia guerra,em Angola passava-se férias,em Moçambique combatia-se.Era o que se dizia na época.Eu passei pelos três sítios.
Quando fui para os Pára-quedistas tornei-me tratador de cães de guerra. Como não queria seguir a tropa fui para a Guiné, onde os tratadores só estavam seis meses porque os cães não aguentavam o clima. Quando queríamos entrar numa palhota ou numa cubata o animal ia à frente. Se estivesse lá alguém ele ladrava. Se estivesse vazia, regressava e abanava o rabo. Se houvesse armas, punha-se de pé.
Fui para a Guiné a 9 de Novembro de 1966 e fiquei lá pouco tempo porque tive a infelicidade de ser ferido e de ver o meu animal morrer em combate.Chama-se Zaire. Tínhamos saído de Nova Lamego para Teixeira Pinto. A Vila foi atacada numa sexta-feira eestivemos lá até domingo. Na manhã de 29 de Fevereiro de 1967 ficámos emboscados algumas horase, por volta das 10h da manhã, o rapaz que tinha a HK 21, o Jerónimo, disse-me que vinham lá dois gajos. Fui avisar os homens que estavam do outro lado para que não disparassem quando eu fosse ao encontro dos turras. Escondi-me atrás de um embondeiro, saí para a picada e apanhei-os à mão. O Zaire prendeu um pelo braço. Chamei-o e nessa altura ouvi o espoletar de uma granada. fugi para trás da árvore, mas o cão ficou da parte da frente: a granada caiu-lhe em cima. Eu ainda fiquei com estilhaços nas costas e numa perna. Depois levei o cão às costas durante 3 Kms para a zona de evacuação. Não deixávamos lá ninguém.
Vim para o Hospital Militar da Estrela e para não voltar para a Guiné,inscrevi-me no curso de sargentos.Chumbei e,em Junho de 1967 fui para Angola.Vim de lá em Abril de 1968 e a 11 de Agosto de 1968 cheguei no Vera Cruz a Moçambique.Fiquei colocado na Beira,mas a nossa vida era feita no norte:Mueda,Sagal,Macomia,Vila Cabral,Mocimboa da Praia...Durante 24 meses fiz 16 operações no mato. Como lá as picadas estavam todas armadilhadas o nosso comandante Sebastião Martins, costumava dizer: Poupo-vos o sangue, mas não vos poupo o suor. E não andávamos de viatura. Quando saíamos para uma operação abríamos a nossa picada. Mesmo que tivessemos que fazer 30 Kms íamos a pé. Às vezes levávamos uma semana.
Em Maio de 1969 saímos de MITEDA às 16H em direcção ao vale de NANGOLOLO,para atacar a base GUNGUNHANA.Tínhamos de estar prontos a atacar às 05h00.Como aquilo era um vale só podiamos lá entrar de noite.Ao fim da trde,por volta das 18H30,começámos a ouvir o rugido dos leões.Às 23h,como já estávamos só a uma hora do objectivo,fizemos o c´´irculo para pernoitarmos.Mas a certa altura um dos que estava a vigiar disse para os furrieis.Os leões estão a aproximar-se o que fazemos?Eles rsponderam: Se chegarem perto atira-lhes uma granada para a frente.Quando os leões se aproximavam o gajo mandou a granada com tanta força que ela foi cair atrás deles.Os leões em vez de recuarem,avançaram e passaram por toda a malta.Foi cá um susto.
A seguir a isso passei um mês em Nangololo.
A 7 de Junho de 1969 fui para operação ZETA com centenas de pára-quedistas.Estávamos acampados em Mocímboa da Praia e embarcámos em vários Nord Atlas, todos equipados. Saltámos a 200 metros e por sorte não perdemos ninguém.O primeiro NordAtlas largou-nos fora da zona onde devíamos aterrar e houve 80 gajos que caíram no pântano e deixaram lá os seus pára-quedas.Isso deu para o inimigo fazer propaganda.
Na altura estava com o rádio de transmissões. Quando acampávamos ele estava sempre montado para o caso de ser preciso. Eu aproveitava para ouvir os relatos da metrópole, com os auscultadores. Lembro-me perfeitamente que estava a dar um Varzim-Sporting quando mudei a onda e apanhei a rádio deles. Estavam a dizer que tinham matado 80 pára-quedistas
Nós íamos com a ideia de apanhar material de guerra.Mas quando chegámos ao depósito não encontrámos ninguém.Houve outra companhia que teve mais sorte:apanharam 16 toneladas de material.(Clik aqui para ver a cronica de António da Conceição Candeias)
No final da operação regressámos a Pundanhar para um salva de tiros em homenagem a um morto da 2ª Companhia. Estávamos alinhados e quando o comandante mandou apontar a arma para o ar e dar um tiro de segurança, houe um que fez isso sem tirar o carregador. Quando foi dar o outro estalinho tinha a arma virada para a frente e matou o Félix, que já devia ter voltado para a Portugal mas que se tinha oferecido para saltar mais uma vez.
Mas a operação que recordo com mais tristeza foi a 19 de Março de 1969, antes da ZETA.
Estávamos em Mueda e fomos enviados à base QUELIMANE.Devíamos estar oito dias no mato.Atacámos logo ao terceiro dia,às 03H30.Apanhámos seis ou sete os outros fugiram.Depois de destruirmos abase continuámos na zona.Quando a ração de combate e a água acabaram fiz tentativas de transmissão para Mueda e os gajos diziam-me que não podiam lá ir porque a zona estava cheia de anti-aéreas.
Achámos que íamos morrer.Nós normalmente comíamos bem.Não era como o pessoal do. Exército. Uma vez fui a um acampamento no LUNHO,em NOVA COIMBRA (Niassa),onde os rapazes há 18 meses não viam uma batata.Era só atum,feijão-frade,e dobrada. Foi preciso nós lá chegarmos para eles terem direito a bacalhau com batatas e ovo. No final, houve um primo que se agarrou a mim a chorar e a pedir que o deixássemos vir connosco. Ainda lá esteve seia meses. Nós, para encontrarmos água, tivemos de fazer um buraco de cinco metros de profundidade no leito de um rio seco. Depois, tivemos sorte porque choveu a potes e amarrámos as capas às ávores para enchermos os cantis.
A solução foi descobrir onde estavam as anti-aéreas. Lá nos deram as coordendas e acabámos por apanhar duas. Matámos dois gajos e capturámos outros tantos. Quando fizemos a transmissão para Mueda a avisar, eles lá vieram reabastecer-nos para mais uns dias.
JOSÉ ALVES CARDETAS
DESTACAMENTO de FUZILEIROS ESPECIAIS Nº 8
Comissão: 1966 - 1968
A guerra tinha começado há dois anos. Eu já tinha feito uma Comissão em Angola quando, em Novembro de 1966,fui enviado para Moçambique,para a zona do lago Niassa.Tínhamos a base do destacamento no Cóbué.
Na altura só havia outra base de Fuzileiros Especiais em Moçambique além da nossa ,a de Porto Amélia,.Passávamos seis meses numa e depois seis meses na outra.
Assim que chegámos ao Cóbué, disseram-nos que ali não havia nada de especial e que podíamos andar à vontade. Mas não era bem assim, apesar de a zona de Cabo Delgado ser a de maiores problemas. Na primeira operação que fizemos, pelo, mato,apanhámos população e tivemos informações que existiam bases militares ali perto.Julgo que nessa saída capturámos uma arma. Era de um indivíduo que ia numa zona aberta a proteger uma coluna de abastecimento e que, quando nos viu a avançar para ele, agachou-se e começou a fazer fogo.Nós abatêmo-lo. Penso que fui eu. Normalmente tentávamos evitar ferir ou matar. Preferíamos apanhá-los vivos. Foi uma postura adoptada pelo comandante do destacamento, o primeiro-tenente Pereira Bastos.
Quando não cumpríamos, éramos castigados. Eu andava sempre á frente com a metralhadora MG 42. Só que aquilo era mata cerrada, era preciso ir alguém abrir caminho à catanada. Eu levava sempre um rapaz que considerava meu pupilo e que tinha uns olhos de lince. Captava tudo. Uma vez, acho que foi na serra do Mapé (Cabo Delgado) ele só me disse "eh,chefe". Tinha sentido um fio e estava uma granada anti-pessoal pendurada ali ao lado. Ele ainda forçou um bocado, mas viu-a a tempo. Senão os que ali estávamos íamos à vida.
A operação que mais me marcou foi a 10 de Maio de 1968. Saímos do Cóbué e fomos para Metangula.O objectivo era atacar a base de Vila Cabral. Mas antes, era preciso fazer uma operação no Malawi para capturar um indivíduo que recrutava e treinava guerrilheiros para a Frelimo e também abastecia a própria base de Vila Cabral.Os responsáveis por aquilo eram o EngºJorge Jardim e o Orlando Cristina (que viria a ser o primeiro Secretário Geral da Renamo).
Quem nos deveria conduzir à base no Malawi eram os guerrilheiros que tinham passado para o nosso lado, o Orlando Cristina veio ter comigo e disse-me:Cabo Cardenas ,temos um missão para si.Ir ao outro lado com os homens e apanhá-lo,importa-se? Aceitei e ele foi falar com o comandante.O Tenente Pereira Bastos disselhe que eu não ia sózinho e mandou uma equipa comigo. Ele próprio também foi.Entrámos no Malawi e quando eles nos disseram qual era a palhota dispusemos os homens.Eram umas 23H. Os nativos tinham todos medo dele.Era um tipo forte e,segundo o Orlando Cristina,eu seria o único capaz de o segurar.
Chegámos à porta da palhota e eles começaram a falar. O gajo respondeu qualquer coisa na língua deles e ouvimos uma pistola a engatilhar.O rapaz disse-me: Gente é perigosa, gente tem arma.Pus o tradutor à frente da porta e eu fiquei ao lado com a G3.De repente a porta caíu e o guerrilheiro fugiu a correr. Nem tive tempo de lhe deitar a mão.Corri atrás dele.Era proibido fazer fogo..Peguei na minha arma e atirei-a na direcção do tipo.A G3 deu umas voltas no ar e enfiou-se-lhes nas costas.Caí em cima do gajo,que estava de bruços e agarrei-lhe nas mãos:ele estava a tentar engatilhar a arma que tinha encravado e começou aos gritos. Quando apareceu um tipo a dizer que aquele barulho não podia continuar,pedi-lhe que lhe segurasse um braço e dei-lhe um murro na boca que lhe parti os dentes todos da frente. Nós usávamos uns fios para os amarrar e trazê-los à nossa frente,tipo uma trela. Quando lhe olhámos para as costas estava lá um buraco redondinho.Era da minha G3.
Voltámos para Metangula mas já não continuámos a operação porque ele não estava em condições. Mais tarde soubemos que tinha lá ido uma companhia de paraquedistas.Regressámoa a Lisboa em Novembro de 1968 só com dois feridos.
Em 1974 ainda regressei a Angola, a Santo António do Zaire.
Fui condecorado com a Cruz de Guerra por serviços relevantes à Pátria, mas acho que a minha heroicidade foi como a dos outros: ir lá com medo e voltar como herói. Aquilo foi uma coisa para es
Ao ir para Moçambique achava que estava a cumprir um dever. Ainda tentou ser um bom soldado. Quando percebeu o que se passava realmente em África começou a delinear uma fuga, mas não teve tempo de a concretizar. Uma mina anti-pessoal estragou-lhe os planos.
O meu pai disse-me que faria tudo para me pôr em França e evitar que fosse para a guerra. Quase que o insultei. Na altura achava que era contra o Governo de Salazar, appesar de não perceber nada de política, e fartava-me de dizer mal dele com os meus amigos. Mas considerava que era meu dever ir defender a Pátria. Era difícil lutarmos contra a educação que nos tinham dado. Ensinaram-nos que Portugal começava no Minho e só acabava em Timor. Diziam-nos que as colónias eram Portugal e que tinham sido um grande feito dos nossos antepassados. Isso só demonstra o quanto era ignorante. Quando olho para trás, pergunto-me: por que aceitei ir combater?
Sei que a minha opinião foi mudando gradualmente graças ao que vi. Cheguei a Mueda a 12 de Fevereiro de 1972. Só soubemos que íamos para lá em alto-mar e poucos percebemos o que isso significava. A companhia que fomos render é que nos explicou o que íamos encontrar.
A minha primeira missão foi fazer a protecção a uma mina a céu aberto. Não sei o que extraíam de lá. Era Furriel Miliciano e comandava um pelotão na ausência do Alferes, o que aconteceu grande parte do tempo porque ele adoeceu com um problema gástrico.
Tivemos o nosso baptismo de fogo numa emboscada, quando percorríamos uma picada de Mueda para Omar. Nós íamos levar mantimentos e substituir pessoal. Era uma coluna muito grande. Levávamos mais ou menos uma semana para lá chegar. O caminho tinha minas às dezenas. Algumas foram levantadas. Eu, quando ia sózinho, não arriscava: punha lá um petardo com um papelinho a assinalar e a 30 metros disparava até aquilo explodir.
Muitas vezes nas emboscads , eles davam uns tiros e fugiam, enquanto nós gastávamos centenas de munições. Para eles isso era uma vitória. Bastava-lhes o desgaste psicológico.
Numa emboscada houve vários feridos e um morto, o Lourenço, que caiu ao meu lado atingido por um estilhaço. Na altura a minha reacção foi muito fria.Ainda não tinha dado o que chamo de salto psicológico. Tive um pico de adrenalina. Era o nosso primeiro morto e não fiquei impressionado. Acho que ainda estava disposto a ser um "bom soldado". Assimilei-a como um facto expectável. Estávamos ali para matar e morrer.
Também eu fui ferido numa dessa picadas,de Mueda para Sagal, na localidade de Chandorilho.
Ia alguém a picar, mas era difícil detectar minas. O processo era rudimentar. Tínhamos o ancinho, uma tábua com pregos presa a um cabo de banbu longo que era difícil de operar, e as picas, uma cana com a ponta de ferro. Esta também era perigosa porque se se picasse com muita força a mina rebentava.
A coluna começou a ser comandada por um Furriel, mais velho do que eu. Nessa manhã, de 4 de Junho de 1972, assisti a uma das coisas mais horríveis da minha vida, quando um soldado pisou uma mina anti-pessoal. O Furriel José Raimundo também foi atingido. Mas aí vi também dois actos de coragem. O primeiro foi quando o enfermeiro se levantou a correr para ir assistir os feridos, enquanto toda a gente estava a tentar proteger-se. É que às vezes, depois do rebentamento de uma mina, seguia-se uma emboscada. Ali não houve nada. O segundo acto foi do furriel Raimundo. Ele tinha a cara a escorrer sangue, mas disse ao emfermeiro para ver antes o outro.
Eles foram evacuados e passei eu a ser o comandante da coluna. Nessa tarde foi a minha vez de pisar uma mina que escapou à detecção. Fui projectado uns bons metros e fiquei inconciente durante alguns sgundos. Quando acordei ainda não estava a ter ajuda. Parecia que estava a despertar de um pesadelo. Foi essa a sensação: a de achar que sonhei com uma desgraça - não sabia exactamente qual - e que tudo aquilo ia passar. Mas não passou.
Depois, a visão da perna dilacerada é de tal modo chocante que não estamos preparados para a ter. É uma reacção de incredulidade. Aquilo não pode ser real. A perna de uma pessoa que pisa uma mina fica mais ou menos como a de um frango cozido com o osso à vista e os tendões pendurados. É algo demasiado horrível para nos estar a acontecer a nós.
Durante alguns segundos não acreditei. Depois tive consciência de que era real. Claro que nos dão muitas coisas para as dores, que nos deixam grogues, mas o estado de choque dura muito tempo. Lembro-me de estar na picada e dizer que nunca mais ia jogar à bola, eu que nunca joguei futebol na vida. Recordo-me de a fronteira pára-quedista tentar dialogar comigo no helicópetero e de termos de aterrar em Nangade porque estávamos a ser atacados.
A minha chegada a casa foi dramática. As enfermeiras com quem tenho falado dizem-me sempre que a primeira pessoa em quem os soldados feridos pensavam era na mãe. Sabia que a minha mãe era uma pessoa muito sensível e que a visão da amputação iria afectá-la bastante, como aconteceu.
Sei que se ão tivesse sido ferido, teria desertado durante as férias. Tinha guardado algum dinheiro para ir para a África do Sul e daí para a Rodésia. Como falava bem inglês era capaz de me desenrascar e de chegar à Europa.Tinha esse objectivo, mas as férias ainda estavam longe. Acabei por só lá estar quatro meses. Mas vim de lá com uma opinião diferente da que fui. A minha visão daquela guerra mudou.
ANTÓNIO GUERREIRO CALVINHO
COMPANHIA DE CAÇADORES 1553
COMISSÃO 1966-1968
COMISSÃO ESPECIAL 1968
Esteve no Exército e passou para os Comandos.Ao fim de cinco meses na tropa especial uma mina de fósforo matou-lhe o comandante e deixou-o com queimaduras profundas que o obrigaram a 25 transplantes de pele e o deixaram andar durante quatro anos.
Em Maio de 1966,o oficial de operações do meu Batalhão,em Muembe, era o então Capitão Ramalho Eanes.
Nós chegámos no dia 13 de Maio de 1966 e pouco tempo depois ele chamou-nos para nos mostrar que não estávamos ali de férias. Disse-nos para termos cuidado, para não nos aventurarmos nas picadas, por causa das minas, e aconselhou-nos a não sair à noite do aquartelamento. É que havia alguns soldados que tinham umas namoradas e arriscavam. No fim disse-nos: "agora vão ver o resultado de uma mina anti-pessoal". À frente dele estava um volume coberto. Destapou-o e foi um choque. Era uma mulher moçambicana que tinha pisado uma mina e ficou sem membros. Estava morta. Foi uma atitude pedagógica da parte dele - e teve impacto.
De Muembe fui para o Catur e daqui para Messangulo.Estive aqui dois meses e só fomos atacados uma vez.Fazíamos patrulhas e protegíamos a picada que ía do Catur para Vila Cabral..Era um picada onde circulava todo o tráfego,incluindo tropas e as lanchas enormes que íam para o lago Niassa com os Fuzileiros.No final regressei a Muembe para o correr normal da tropa: patrulhas,emboscadas,minas,todas essas situações difíceis.
A guerra mudava uma pessoa.Um dia ia numa coluna com géneros para o destacamento quando nos rebentou uma mina.Levei os feridos para trás no Unimog e deixei lá uma secção emboscada.Era Alferes Miliciano.Quando voltei os soldados estavam de pás na mão a enterrar uma mulher viva.Perguntei o que se passava ali e um Furriel disse-me:Esta puta deve ter vindo espreitar e fica no buraco para eles verem.Tirei-lhe o comando da secção e mandei-os desenterrá-la. Se participasse ele estava lixado. E se tivesse chegado meia hora depois ninguém tinha sabido daquilo.Isto acontecia na guerra. Miúdos de 20 e poucos anos começavam a fazer estas coisas.
Também tivemos operações fracassadas.Uma foi no início de 1967 com o Armando Maçanita, (Comandante do Sector "A" em Vila Cabral, em que uma série de Batalhões entraram no Malawi para destruir umas bases. Começou logo mal: dois soldados foram beber água a uma ribeira, rebentaram uma mina e morreram.;Depois aquilo era uma zona acidentada e a malta não sabia qual o posicionamento das outras companhias.Como a coluna era de vários quilómetros,a certa altura,já de noite,o pessoal que ia à frente começou a ver uns movimentos estranhos.Desataram a disparar,mas as balas atingiram o pessoal que vinha na parte de trás da coluna.Desatou tudo num fogachal e só por sorte não nos matámos uns aos outros.A operação durou três ou quatro dias e correu mal ao Maçanita. ele tinha ganhado reputação em Angola mas aquilo quebrou-o. Pelo menos foi a sensação que tive ao falar com os comandantes
Com o passar do tempo os superiores começaram a ter confiança em mim. Uma vez o Ramalho Eanes foi-me buscar para uma missão que foi das mais importantes da época: a prisão do Régulo Mataca, um dos descendentes do Gungunhanha. Quando o apanhámos, o Ramalho Eanes mandou-o pôr uma criança aos ombros. Ele tinha vários feridos e respondeu: Menino não é carga do Régulo. Mulher leva menino. Era uma vergonha para ele meter o filho às costas. Só o que o Ramalho Eanes teve uma atitude mais rígida e ele obedeceu. Depois levámo-lo. Ainda lá esteve uns meses, mas conseguiu fugir, libertado por Samora Machel.
A certa altura a PIDE fez uma investigação na companhia - em quase todas havia um informador, na minha era um sargento - e o capitão foi enviado para outro sítio. Fiquei a comandar a companhia durante dois a três meses. Era praticamente o único oficial. Tive de dizer ao Brigadeiro Alcides,comandante do sector de Vila Cabral, que tinha de mandar para lá alguém.Ele enviou o Capitão Horácio Valente,que até aí tinha dirigido a 4ª Companhia de Comandos e estava a ser castigado por desobediência. Quando chegou a Nacala e foi fazer um desfile, mandou os homens pôr a bala na câmara. O comandante da região disse-lhe: Mande os homens retirar a bala. Ele recusou porque eles estavam treinados para isso e foi destituído. O alferes também desobedeceu à ordem. Depois o Valente apanhou uns dias de prisão e foi comandar a CCAÇ 1553.
Criámos uma afinidade grande.No final de 17 meses de comissão ele dizia-me:Não se vá embora.Se eu for outra vez para a 4ª Companhia de Comandos, você vai comigo. Considero esta estadia sob a minha alçada e averbo-lhe o curso de comandos. Lá ponderei fazer nova comissão. Havia um sentimento de pátria que nos estava incutido. E aceitei. Aquilo que ele me disse foi aprovado.Devo ser o único Comando que não tem o curso.
Depois de passar uns meses de férias em Vila Coutinho,em Março de 1968 fui com ele para Vila Cabral, onde estava a 4ªCCMDS. Ali não havia pelotões. Eram grupos, com várias equipas. E eu comandava um. A actividade dos comandos era mais segura que na tropa normal. Só que a minha experiência foi muito efémera.
Em Agosto ,estávamos a regressar de uma operação e tínhamos em Metangula a barca que nos ia levar até Meponda, o porto mais perto de Vila Cabral, no Lago Niassa.
O Capitão Valente achava que a lancha tinha que sair de noite, mas o comandante dos fuzileiros disse-lhe que só ia de manhã. Como era casmurro, o Valente pediu via rádio uma coluna para nos ir buscar a Metangula, mas não falou por código, o que era proibido. As viaturas chegaram de madrugada, quando as lanchas já podiam sair. Antes, o Valente chamou-me para ver a paisagem do Lago Niassa. Era lindo, mas disse-lhe: Desculpe lá, mas a minha experiência diz-me para aproveitarmos esta areia da praia para enchermos as viaturas de sacos. Não custa nada. Ele respondeu que não valia a pena. Se vieram para cá, voltam para lá.
Estava na Berliet da frente com o Capitão Dinis de Almeida e o Capitão Valente apareceu com umas cervejas.Quando as deu disse: Ó Dinis,vai lá para a viatura de trás.Se houver mortes serão milicianos.Tu custaste muito dinheiro ao Estado e podes vir a ser general.Eu estava sentado no lado direito e ele mandou-me para o meio para ficar do lado da janela.Abrimos as cervejas e já não me lembro de mais nada.A mina rebentou debaixo do Valente.
O condutor foi projectado e caiu a uns 10 metros. O Capitão Valente bateu com a cabeça nos ferros que suportavam a capota da Berliet e morreu logo. eu tive sorte e passei pelo meio. Mas fiquei com o ombro cheio com miolos dele. Poa azar,a viatura voltou a cair dentro do buraco da mina que tinha sido reforçada com fósforo e continuou a arder. Acordei com uma mão agarrada aos testículos e outra no ar. Um furriel começou a puxar-me e ainda ouvi alguém gritar <<tragam um serrote para cortar a perna ao nosso alferes que ele não a consegue tirar>>
. Felizmente não foi preciso.
As chamas eram tão intensasque o cano da minha G3 derreteu. O Horácio Valente ficou reduzido a 11 kilos de ossos chamuscados.Fiquei com queimaduras numa grande percentagem do corpo.Mas não havia morfina para me dar.Tinha três fractura na perna esquerda,outra na direita e puseram-me numa Berliet com uma coisa a tapar-me por causa das moscas. Não havia helicópetero.Safei-me graças à intervenção do hospital de Fuzileiros em Metangula,a 12 Kms, para onde regressámos. Aí fizeram a primeira lavagem. Mandaram-me para Vila Cabral,depois para Nampula e Lourenço Marques. Aí tive sorteForam lá uns médicos Sul-Africanos que me fizeram umas lavagens para tirar crostas e porcarias.Mandaram-me para Lisboa, um mês depois do acidente,em Setembro de 1968.
Fiquei sem os dedos dos pés e a tibiotársica.Estive quatro anos no hospital.Ao todo fiz 25 anestesias gerais.Tiraram-me a pele do corpo todo para meter nas pernas.Nesse tempo andei numa cadeira de rodas.Até ao dia em que fui à Solmar (Cervejaria em Lisboa) e disse que não saía dali em cadeira de rodas.Pedi umas muletas e comecei a dar voltas devagar.Não andava há quatro anos.Aos poucos consegui recuperar e continuei sempre no activo até me reformar,aos 65 anos.
DESTACAMENTO DE FUZILEIROS ESPECIAIS Nº 11
COMISSÃO: 1972-1974
Ao fim de 20 meses no Niassa,foi enviado com o seu destacamento para manter a ordem em Lourenço Marques.Havia muita tensão no ar.A população branca estava na perspectiva de perder tudo e tentou virar a situação.O resultado foi uma vaga de violência nas vésperas da Indepêndencia.
O ambiente de África era-me familiar. Tenho uma irmã que nasceu em Angola e um irmão em Moçambique. O meu pai fez a vida lá e cheguei a viver na Beira, no Macúti, mesmo encostado á praia. Voltei para Lisboa com 10 anos. Quando acabei o curso de Fuzileiro Especial, em 1968, ofereci-me para o primeiro destacamento que foi para a Guiné. O primeiro impacto não me causou uma impressão especial. Depois, no ambiente de guerra, verificámos que o curso de Fuzileiros preparava-nos bem para o que íamos encontrar. Até em termos de terreno. Isso facilitou-nos muito a chegada à guerra.
Fiz 21 meses na Guiné, de Abril de 1968 a Janeiro de 1970. Fiquei os dois anos seguintes na metrópole até ser destacado para Moçambique, já como comandante de destacamento. Aquilo não tinha comparação com o que encontrei na primeira comissão. Enquanto na Guiné o terreno era plano e pantanoso com um inimigo forte, ali era uma zona montanhosa, o desgaste físico era enorme e a nossa área de actividade muito grande.
Na época havia três destacamentos de Fuzileiros em Moçambique.Um em Porto Amélia,em Cabo Delgado,outro na zona de Tete,no Magué,e o nosso no Niassa,no Cóbué. Graças à acção dos destacamentos anteriores o inimigo foi-se afastando das margens do Lago Niassa. Para o encontrar tínhamos de andar dois dias para o interior e outros dois para o regresso.A nossa missão era detectar as passagens de guerrilheiros da Tanzânia para dentro do território e afugentá-los das bases que havia na zona.eles tinham um acampamento central em Mepotche,de onde saíam para aborrecer os quartéis de Exército.Depois tinham bases de segurança para onde mudavam.Foi numa delas que tivemos alguns feridos,incluindo eu próprio.
Levámos dois dias para chegar.Na parte final fui falar com o guia,o Franco,para tentarmos calcular a distancia e decidir a que horas devíamos sair. Ele era um homem de confiança, caçador, muito resistente e que acabou por ser abatido pela Frelimo depois da independência. Mas como todos eles, não era muito bom a calcular distâncias. Estava previsto chegarmos à zona ainda de noite ou, no máximo, ao amanhecer. Entrámos num rio de leito seco, entre duas paredes escarpadas, uma espécie de Canyon apertado com uns 50 metros.
Comecei a ver umas palhotas junto à beira duma escarpa.Por sorte não estava ninguém.Continuámos até aparecer o caminho.Quando subimos,vimos-nos de repente dentro da base.Éramos cerca de 20 homens.O guia precipitou-se e abriu fogo antes do tempo.Eles reagiram.Alguns fugiram,outros foram abatidos.Houve um que noa atirou uma granada.Os estilhaços atingiram um dos meus homens na cabeça,outro na barriga e a mim na mão.Apanhámos umas armas e fizemos o caminho de regresso.Ali não era possível sermos recolhidos por um helicóptero. Juntámos-nos ao resto do destacamento e só aí fomos evacuados para Vila Cabral.Isto foi a 18 de Abril de 1974. Uma semana depois tive de voltar lá para mudar o penso e foi o piloto que me disse que tinha havido qualquer coisa em Lisboa, mas não sabia bem o quê.
Continuámos as operações até ao fim de Junho. Recebemos a informação de que a Frelimo se preparava para intensificar as actividades de modo a estar numa posição de força nas negociações que estavam a começar. Nós tivemos ordenspara fazer o mesmo. Entretanto,surgiram sinais de que poderiam começar a haver problemas nas Cidades e fomos enviados para Lourenço Marques,ao fim de 20 meses no Niassa.
Em Lourenço Marques ficámos mesmo no centro da cidade, junto ao comando naval, contra a minha vontade: mesmo ao lado havia a célebre Rua Araújo, onde estavam concentrados os bares e as boates.
Lourenço Marques estava calma,mas sentia-se uma tensão muito grande,sobretudo entre a população branca que se apercebera de que a intenção do poder em Lisboa era entregar o território à Frelimo. Sabia-se que ia acontecer alguma coisa. Havia conversas, rumores. O próprio pessoal foi aliciado. Mas só houve em Setembro, na altura dos encontros de Lusaka que iam resultar na independência.
Foi tudo de repente. Os brancos estavam organizados e puseram a população na rua. Era uma pressão um bocado utópica, tendo em conta o que estava previsto. Mas a revolta vinha do interior das pessoas. Era gente que vivia lá desde sempre e não via com bons olhos ser despejado dos seus bens e ter de pegar nas malas. Foi-lhes também dito que poderia haver apoio dda Rodésia e da África do Sul numa tentativa de não entregar o território à Frelimo. E eles acreditaram. A 7 de Setembro tomaram o Rádio Clube,que passou a fazer apelos à população e aos Estados vizinhos.
Estava previsto que uma coisa daquelas pudesse acontecer e o edifício estava rodeado de polícia. Ainda assim eles entraram por ali dentro e tomaram conta daquilo (Clika aqui para leres o livro de Clotilde Mesquitela : Moçambique 7 de Setembro de 1974). Nós,não recebemos ordens,mas ficámos na situação de estar a fazer segurança ao Rádio Clube ocupado.Tal como protegemos o aeroporto.Isso levou a uma retaliação da Frelimo.Os confrontos fizeram muitos mortos e feridos.
Houve outra situação complicada, que resultou da ordem de fazermos patrulhas mistas com a Frelimo. Eu recusei. T´nhamos vindo do mato e tido feridos há pouco tempo. Não se passa de inimigo para amigo de repente..A Companhia de Comandos aceitou. Passado pouco tempo já estavam de armas apontadas uns aos outros. Uma tarde apareceram uma Berliets na baixa da cidade cheias de Comandos que começaram a disparar para o pessoal da Frelimo que lá estava. As pessoas meteram-se debaixo das mesas das esplanadas até lá chegar a Polícia Militar.
A Frelimo teve depois uma reacção forte contra a população à volta de Lourenço Marques. Começaram a fazer cortes nas estradas e a não deixar ninguém passar. Aí houve cenas parecidas com as dos primeiros acontecimentos de Angola, com gente à catanada e coisas do género. Andámos a correr de um lado para o outro a apagar fogos.Muitas vezes por iniciativa própria, porque a descoordenação de comando era grande.
Eles ainda chegaram a deter um homem nosso, que ía a passar de motorizada em frente à sede deles.Pararam-no,identificaram-no e prenderam-no.Tive que lá ir falar com o responsável e dar-lhe um determinado tempo para o pôr cá fora.Disse-lhe que se não o fizesse que lhe atirava o edifício abaixo à bazucada.Cinco minutos depois estava na rua. Nós viemos embora em Outubro.
Esta foi a parte mais dolorosa da comissão.Ficámos com um sentimento de revolta por perdermos na rectaguarda uma guerra que estava a ser vencida no terreno.
BATALHÃO DE ARTILHARIA 2989
COMISSÃO: 1969-1971
Depois de ser ferido numa patrulha,foi carregado ao ombro por um colega e passou a noite sem ser visto por um enfermeiro.Sobreviveu graças ao auxílio à distância de um médico que tinha conhecido a sua mulher em Lourenço Marques e reconheceu o seu nome.
Casei em Lourenço Marques durante a minha comissão. Tinha chegado a Moçambique em Dezembro de 1969. Desembarquei em Nacala e apanhámos o comboio para Vila Cabral.Nem sabíamos para onde estávamos a ir. Lembro-me que fomos atacados no caminho, uma flagelação comum naquela zona. A minha companhia tinha sido colocada em Nova Viseu,uma zona isolada,de mato,sem população. Fiquei aí algum tempo. Depois tínhamos destacamentos, postos avançados mais pequenos, ao nível de pelotão, que serviam de apoio e davam protecção às colunas de reabastecimento.
Em Março ou Abril de 1970,tive um pequeno ferimento num braço e num dedo.A Frelimo tinha montado uma armadilha,com uma granada pendurada numa árvore,que explodia quando o fio onde estava presa era puxado.Fui levado para Lourenço Marques e,ingénuo,pensei que a guerra tinha terminado para mim. A minha namorada foi lá ter comigo e casámos na Igreja da Polana. Mas 15 dias depois fui a uma consulta ao Hospital Militar e deram-me alta.Voltei para o mato.
A minha mulher, a Maria Cândida, ficou lá a dar aulas, na esperança de eu pudesse voltar. Mas não voltei. Ela ficou instalada na pensão NINI, onde conheceu a mulher de um médico do Exército.A minha mulher disse-lhe que eu também estava na zona. A diferença entre nós é que ele tinha facilidade em ir a Lourenço Marques. Eu não. Estava numa zona isolada.
Nos 24 meses da minha comissão nunca tive contacto com a população. Estivemos sempre no mato. Também acabei por não ser transferido porque a certa altura o capitão que nos comandava pisou uma mina, caiu em cima de outra e morreu. Como alferes miliciano era o único graduado e fiquei a comandar aquilo. Na altura intensifiquei as saídas ao mato para os soldados reagirem e esquecerem a morte dele. Mais tarde veio um segundo capitão, que acabou também por morrer, já eu não lá estado, num incidente no quartel: um soldado embriagado deu-lhe um tiro.
Aquartelamento de Nova Viseu |
Quando estava a 15 dias de me vir embora,saímos numa operação.Batemos uma zona e não encontrámos nada.No regresso por volta das 16h30,ao atravessarmos um riacho pisei uma mina que estava debaixo de água.Fui projectado e não me lembro de mais nada.
Foi pedida a evacuação,mas como os helicópteros não voavam a partir da 16H,do outro lado disseram que só no dia seguinte.
Segundo me contaram,a noite foi complicada.Por acaso,quando pediram a minha evacuação para Vila Cabral,falaram com o médico que tinha conhecido a minha mulher em Lourenço Marques,que reconheceu o meu nome.O Jorge Pereira da Silva esteve toda a noite em contacto com o maqueiro.Cerca das 23H foi preciso sangue e soro.Então,Vila Cabral enviou um táxi-aéreo que largou um pacote no pelado onde jogávamos futebol,que estava iluminado com latas de cerveja cheias de gasóleo.Eu estava acordado.Lembro-me de perguntar o que tinha e quando me falaram no pé nem tive coragem de ver..Na mana seguinte,o helicóptero chegou com o médico que tinha ajudado o maqueiro,que me preparou ali mesmo e me levou para Vila Cabral.
O médico esteve a noite toda a dizer ao maqueiro o que fazer. |
CARLOS GONÇALVES DA COSTA
1ª COMPANHIA DO BATALHÃO DE CAÇADORES PÁRAQUEDISTA Nº 31
COMISSÃO: 1968-1970
No caminho para uma base inimiga começaram a ser perseguidos por animais selvagens.Assustaram-nos com uma granada,mas eles fugiram em direcção aos soldados.Dois meses depois estavam a participar na oeração ZETA.
Na Guiné havia guerra,em Angola passava-se férias,em Moçambique combatia-se.Era o que se dizia na época.Eu passei pelos três sítios.
Quando fui para os Pára-quedistas tornei-me tratador de cães de guerra. Como não queria seguir a tropa fui para a Guiné, onde os tratadores só estavam seis meses porque os cães não aguentavam o clima. Quando queríamos entrar numa palhota ou numa cubata o animal ia à frente. Se estivesse lá alguém ele ladrava. Se estivesse vazia, regressava e abanava o rabo. Se houvesse armas, punha-se de pé.
Fui para a Guiné a 9 de Novembro de 1966 e fiquei lá pouco tempo porque tive a infelicidade de ser ferido e de ver o meu animal morrer em combate.Chama-se Zaire. Tínhamos saído de Nova Lamego para Teixeira Pinto. A Vila foi atacada numa sexta-feira eestivemos lá até domingo. Na manhã de 29 de Fevereiro de 1967 ficámos emboscados algumas horase, por volta das 10h da manhã, o rapaz que tinha a HK 21, o Jerónimo, disse-me que vinham lá dois gajos. Fui avisar os homens que estavam do outro lado para que não disparassem quando eu fosse ao encontro dos turras. Escondi-me atrás de um embondeiro, saí para a picada e apanhei-os à mão. O Zaire prendeu um pelo braço. Chamei-o e nessa altura ouvi o espoletar de uma granada. fugi para trás da árvore, mas o cão ficou da parte da frente: a granada caiu-lhe em cima. Eu ainda fiquei com estilhaços nas costas e numa perna. Depois levei o cão às costas durante 3 Kms para a zona de evacuação. Não deixávamos lá ninguém.
Vim para o Hospital Militar da Estrela e para não voltar para a Guiné,inscrevi-me no curso de sargentos.Chumbei e,em Junho de 1967 fui para Angola.Vim de lá em Abril de 1968 e a 11 de Agosto de 1968 cheguei no Vera Cruz a Moçambique.Fiquei colocado na Beira,mas a nossa vida era feita no norte:Mueda,Sagal,Macomia,Vila Cabral,Mocimboa da Praia...Durante 24 meses fiz 16 operações no mato. Como lá as picadas estavam todas armadilhadas o nosso comandante Sebastião Martins, costumava dizer: Poupo-vos o sangue, mas não vos poupo o suor. E não andávamos de viatura. Quando saíamos para uma operação abríamos a nossa picada. Mesmo que tivessemos que fazer 30 Kms íamos a pé. Às vezes levávamos uma semana.
Em Maio de 1969 saímos de MITEDA às 16H em direcção ao vale de NANGOLOLO,para atacar a base GUNGUNHANA.Tínhamos de estar prontos a atacar às 05h00.Como aquilo era um vale só podiamos lá entrar de noite.Ao fim da trde,por volta das 18H30,começámos a ouvir o rugido dos leões.Às 23h,como já estávamos só a uma hora do objectivo,fizemos o c´´irculo para pernoitarmos.Mas a certa altura um dos que estava a vigiar disse para os furrieis.Os leões estão a aproximar-se o que fazemos?Eles rsponderam: Se chegarem perto atira-lhes uma granada para a frente.Quando os leões se aproximavam o gajo mandou a granada com tanta força que ela foi cair atrás deles.Os leões em vez de recuarem,avançaram e passaram por toda a malta.Foi cá um susto.
A seguir a isso passei um mês em Nangololo.
A 7 de Junho de 1969 fui para operação ZETA com centenas de pára-quedistas.Estávamos acampados em Mocímboa da Praia e embarcámos em vários Nord Atlas, todos equipados. Saltámos a 200 metros e por sorte não perdemos ninguém.O primeiro NordAtlas largou-nos fora da zona onde devíamos aterrar e houve 80 gajos que caíram no pântano e deixaram lá os seus pára-quedas.Isso deu para o inimigo fazer propaganda.
Na altura estava com o rádio de transmissões. Quando acampávamos ele estava sempre montado para o caso de ser preciso. Eu aproveitava para ouvir os relatos da metrópole, com os auscultadores. Lembro-me perfeitamente que estava a dar um Varzim-Sporting quando mudei a onda e apanhei a rádio deles. Estavam a dizer que tinham matado 80 pára-quedistas
Nós íamos com a ideia de apanhar material de guerra.Mas quando chegámos ao depósito não encontrámos ninguém.Houve outra companhia que teve mais sorte:apanharam 16 toneladas de material.(Clik aqui para ver a cronica de António da Conceição Candeias)
Carlos Gonçalves da Costa |
Mas a operação que recordo com mais tristeza foi a 19 de Março de 1969, antes da ZETA.
Estávamos em Mueda e fomos enviados à base QUELIMANE.Devíamos estar oito dias no mato.Atacámos logo ao terceiro dia,às 03H30.Apanhámos seis ou sete os outros fugiram.Depois de destruirmos abase continuámos na zona.Quando a ração de combate e a água acabaram fiz tentativas de transmissão para Mueda e os gajos diziam-me que não podiam lá ir porque a zona estava cheia de anti-aéreas.
Achámos que íamos morrer.Nós normalmente comíamos bem.Não era como o pessoal do. Exército. Uma vez fui a um acampamento no LUNHO,em NOVA COIMBRA (Niassa),onde os rapazes há 18 meses não viam uma batata.Era só atum,feijão-frade,e dobrada. Foi preciso nós lá chegarmos para eles terem direito a bacalhau com batatas e ovo. No final, houve um primo que se agarrou a mim a chorar e a pedir que o deixássemos vir connosco. Ainda lá esteve seia meses. Nós, para encontrarmos água, tivemos de fazer um buraco de cinco metros de profundidade no leito de um rio seco. Depois, tivemos sorte porque choveu a potes e amarrámos as capas às ávores para enchermos os cantis.
A solução foi descobrir onde estavam as anti-aéreas. Lá nos deram as coordendas e acabámos por apanhar duas. Matámos dois gajos e capturámos outros tantos. Quando fizemos a transmissão para Mueda a avisar, eles lá vieram reabastecer-nos para mais uns dias.
JOSÉ ALVES CARDETAS
DESTACAMENTO de FUZILEIROS ESPECIAIS Nº 8
Comissão: 1966 - 1968
Entrou numa base Frelimo no Malawi e apanhou sozinho um instrutor dos guerrilheiros que tinha informações precisas sobre a localização da base Beira.Os serviços relevantes à Pátria valeram-lhe a condecoração com a Cruz de Guerra.
A guerra tinha começado há dois anos. Eu já tinha feito uma Comissão em Angola quando, em Novembro de 1966,fui enviado para Moçambique,para a zona do lago Niassa.Tínhamos a base do destacamento no Cóbué.
Aquartelamento do Cóbué |
Assim que chegámos ao Cóbué, disseram-nos que ali não havia nada de especial e que podíamos andar à vontade. Mas não era bem assim, apesar de a zona de Cabo Delgado ser a de maiores problemas. Na primeira operação que fizemos, pelo, mato,apanhámos população e tivemos informações que existiam bases militares ali perto.Julgo que nessa saída capturámos uma arma. Era de um indivíduo que ia numa zona aberta a proteger uma coluna de abastecimento e que, quando nos viu a avançar para ele, agachou-se e começou a fazer fogo.Nós abatêmo-lo. Penso que fui eu. Normalmente tentávamos evitar ferir ou matar. Preferíamos apanhá-los vivos. Foi uma postura adoptada pelo comandante do destacamento, o primeiro-tenente Pereira Bastos.
Quando não cumpríamos, éramos castigados. Eu andava sempre á frente com a metralhadora MG 42. Só que aquilo era mata cerrada, era preciso ir alguém abrir caminho à catanada. Eu levava sempre um rapaz que considerava meu pupilo e que tinha uns olhos de lince. Captava tudo. Uma vez, acho que foi na serra do Mapé (Cabo Delgado) ele só me disse "eh,chefe". Tinha sentido um fio e estava uma granada anti-pessoal pendurada ali ao lado. Ele ainda forçou um bocado, mas viu-a a tempo. Senão os que ali estávamos íamos à vida.
A operação que mais me marcou foi a 10 de Maio de 1968. Saímos do Cóbué e fomos para Metangula.O objectivo era atacar a base de Vila Cabral. Mas antes, era preciso fazer uma operação no Malawi para capturar um indivíduo que recrutava e treinava guerrilheiros para a Frelimo e também abastecia a própria base de Vila Cabral.Os responsáveis por aquilo eram o EngºJorge Jardim e o Orlando Cristina (que viria a ser o primeiro Secretário Geral da Renamo).
Quem nos deveria conduzir à base no Malawi eram os guerrilheiros que tinham passado para o nosso lado, o Orlando Cristina veio ter comigo e disse-me:Cabo Cardenas ,temos um missão para si.Ir ao outro lado com os homens e apanhá-lo,importa-se? Aceitei e ele foi falar com o comandante.O Tenente Pereira Bastos disselhe que eu não ia sózinho e mandou uma equipa comigo. Ele próprio também foi.Entrámos no Malawi e quando eles nos disseram qual era a palhota dispusemos os homens.Eram umas 23H. Os nativos tinham todos medo dele.Era um tipo forte e,segundo o Orlando Cristina,eu seria o único capaz de o segurar.
Chegámos à porta da palhota e eles começaram a falar. O gajo respondeu qualquer coisa na língua deles e ouvimos uma pistola a engatilhar.O rapaz disse-me: Gente é perigosa, gente tem arma.Pus o tradutor à frente da porta e eu fiquei ao lado com a G3.De repente a porta caíu e o guerrilheiro fugiu a correr. Nem tive tempo de lhe deitar a mão.Corri atrás dele.Era proibido fazer fogo..Peguei na minha arma e atirei-a na direcção do tipo.A G3 deu umas voltas no ar e enfiou-se-lhes nas costas.Caí em cima do gajo,que estava de bruços e agarrei-lhe nas mãos:ele estava a tentar engatilhar a arma que tinha encravado e começou aos gritos. Quando apareceu um tipo a dizer que aquele barulho não podia continuar,pedi-lhe que lhe segurasse um braço e dei-lhe um murro na boca que lhe parti os dentes todos da frente. Nós usávamos uns fios para os amarrar e trazê-los à nossa frente,tipo uma trela. Quando lhe olhámos para as costas estava lá um buraco redondinho.Era da minha G3.
Base Naval de Metangula (Lago Niassa) |
Em 1974 ainda regressei a Angola, a Santo António do Zaire.
Fui condecorado com a Cruz de Guerra por serviços relevantes à Pátria, mas acho que a minha heroicidade foi como a dos outros: ir lá com medo e voltar como herói. Aquilo foi uma coisa para es
MANUEL CORREIA BASTOS
BATALHÃO DE ARTILHARIA 3876
COMPANHIA DE ARTILHARIA 3503
COMISSÃO 1970
COMISSÃO 1970
O meu pai disse-me que faria tudo para me pôr em França e evitar que fosse para a guerra. Quase que o insultei. Na altura achava que era contra o Governo de Salazar, appesar de não perceber nada de política, e fartava-me de dizer mal dele com os meus amigos. Mas considerava que era meu dever ir defender a Pátria. Era difícil lutarmos contra a educação que nos tinham dado. Ensinaram-nos que Portugal começava no Minho e só acabava em Timor. Diziam-nos que as colónias eram Portugal e que tinham sido um grande feito dos nossos antepassados. Isso só demonstra o quanto era ignorante. Quando olho para trás, pergunto-me: por que aceitei ir combater?
Sei que a minha opinião foi mudando gradualmente graças ao que vi. Cheguei a Mueda a 12 de Fevereiro de 1972. Só soubemos que íamos para lá em alto-mar e poucos percebemos o que isso significava. A companhia que fomos render é que nos explicou o que íamos encontrar.
A minha primeira missão foi fazer a protecção a uma mina a céu aberto. Não sei o que extraíam de lá. Era Furriel Miliciano e comandava um pelotão na ausência do Alferes, o que aconteceu grande parte do tempo porque ele adoeceu com um problema gástrico.
Tivemos o nosso baptismo de fogo numa emboscada, quando percorríamos uma picada de Mueda para Omar. Nós íamos levar mantimentos e substituir pessoal. Era uma coluna muito grande. Levávamos mais ou menos uma semana para lá chegar. O caminho tinha minas às dezenas. Algumas foram levantadas. Eu, quando ia sózinho, não arriscava: punha lá um petardo com um papelinho a assinalar e a 30 metros disparava até aquilo explodir.
Muitas vezes nas emboscads , eles davam uns tiros e fugiam, enquanto nós gastávamos centenas de munições. Para eles isso era uma vitória. Bastava-lhes o desgaste psicológico.
Numa emboscada houve vários feridos e um morto, o Lourenço, que caiu ao meu lado atingido por um estilhaço. Na altura a minha reacção foi muito fria.Ainda não tinha dado o que chamo de salto psicológico. Tive um pico de adrenalina. Era o nosso primeiro morto e não fiquei impressionado. Acho que ainda estava disposto a ser um "bom soldado". Assimilei-a como um facto expectável. Estávamos ali para matar e morrer.
Também eu fui ferido numa dessa picadas,de Mueda para Sagal, na localidade de Chandorilho.
Ia alguém a picar, mas era difícil detectar minas. O processo era rudimentar. Tínhamos o ancinho, uma tábua com pregos presa a um cabo de banbu longo que era difícil de operar, e as picas, uma cana com a ponta de ferro. Esta também era perigosa porque se se picasse com muita força a mina rebentava.
A coluna começou a ser comandada por um Furriel, mais velho do que eu. Nessa manhã, de 4 de Junho de 1972, assisti a uma das coisas mais horríveis da minha vida, quando um soldado pisou uma mina anti-pessoal. O Furriel José Raimundo também foi atingido. Mas aí vi também dois actos de coragem. O primeiro foi quando o enfermeiro se levantou a correr para ir assistir os feridos, enquanto toda a gente estava a tentar proteger-se. É que às vezes, depois do rebentamento de uma mina, seguia-se uma emboscada. Ali não houve nada. O segundo acto foi do furriel Raimundo. Ele tinha a cara a escorrer sangue, mas disse ao emfermeiro para ver antes o outro.
Eles foram evacuados e passei eu a ser o comandante da coluna. Nessa tarde foi a minha vez de pisar uma mina que escapou à detecção. Fui projectado uns bons metros e fiquei inconciente durante alguns sgundos. Quando acordei ainda não estava a ter ajuda. Parecia que estava a despertar de um pesadelo. Foi essa a sensação: a de achar que sonhei com uma desgraça - não sabia exactamente qual - e que tudo aquilo ia passar. Mas não passou.
Estávamos ali para matar e para morrer |
Durante alguns segundos não acreditei. Depois tive consciência de que era real. Claro que nos dão muitas coisas para as dores, que nos deixam grogues, mas o estado de choque dura muito tempo. Lembro-me de estar na picada e dizer que nunca mais ia jogar à bola, eu que nunca joguei futebol na vida. Recordo-me de a fronteira pára-quedista tentar dialogar comigo no helicópetero e de termos de aterrar em Nangade porque estávamos a ser atacados.
A minha chegada a casa foi dramática. As enfermeiras com quem tenho falado dizem-me sempre que a primeira pessoa em quem os soldados feridos pensavam era na mãe. Sabia que a minha mãe era uma pessoa muito sensível e que a visão da amputação iria afectá-la bastante, como aconteceu.
Sei que se ão tivesse sido ferido, teria desertado durante as férias. Tinha guardado algum dinheiro para ir para a África do Sul e daí para a Rodésia. Como falava bem inglês era capaz de me desenrascar e de chegar à Europa.Tinha esse objectivo, mas as férias ainda estavam longe. Acabei por só lá estar quatro meses. Mas vim de lá com uma opinião diferente da que fui. A minha visão daquela guerra mudou.
ANTÓNIO GUERREIRO CALVINHO
COMPANHIA DE CAÇADORES 1553
COMISSÃO 1966-1968
COMISSÃO ESPECIAL 1968
Esteve no Exército e passou para os Comandos.Ao fim de cinco meses na tropa especial uma mina de fósforo matou-lhe o comandante e deixou-o com queimaduras profundas que o obrigaram a 25 transplantes de pele e o deixaram andar durante quatro anos.
Em Maio de 1966,o oficial de operações do meu Batalhão,em Muembe, era o então Capitão Ramalho Eanes.
Nós chegámos no dia 13 de Maio de 1966 e pouco tempo depois ele chamou-nos para nos mostrar que não estávamos ali de férias. Disse-nos para termos cuidado, para não nos aventurarmos nas picadas, por causa das minas, e aconselhou-nos a não sair à noite do aquartelamento. É que havia alguns soldados que tinham umas namoradas e arriscavam. No fim disse-nos: "agora vão ver o resultado de uma mina anti-pessoal". À frente dele estava um volume coberto. Destapou-o e foi um choque. Era uma mulher moçambicana que tinha pisado uma mina e ficou sem membros. Estava morta. Foi uma atitude pedagógica da parte dele - e teve impacto.
O comboio que fazia a ligação Nacala - Catur |
A guerra mudava uma pessoa.Um dia ia numa coluna com géneros para o destacamento quando nos rebentou uma mina.Levei os feridos para trás no Unimog e deixei lá uma secção emboscada.Era Alferes Miliciano.Quando voltei os soldados estavam de pás na mão a enterrar uma mulher viva.Perguntei o que se passava ali e um Furriel disse-me:Esta puta deve ter vindo espreitar e fica no buraco para eles verem.Tirei-lhe o comando da secção e mandei-os desenterrá-la. Se participasse ele estava lixado. E se tivesse chegado meia hora depois ninguém tinha sabido daquilo.Isto acontecia na guerra. Miúdos de 20 e poucos anos começavam a fazer estas coisas.
Também tivemos operações fracassadas.Uma foi no início de 1967 com o Armando Maçanita, (Comandante do Sector "A" em Vila Cabral, em que uma série de Batalhões entraram no Malawi para destruir umas bases. Começou logo mal: dois soldados foram beber água a uma ribeira, rebentaram uma mina e morreram.;Depois aquilo era uma zona acidentada e a malta não sabia qual o posicionamento das outras companhias.Como a coluna era de vários quilómetros,a certa altura,já de noite,o pessoal que ia à frente começou a ver uns movimentos estranhos.Desataram a disparar,mas as balas atingiram o pessoal que vinha na parte de trás da coluna.Desatou tudo num fogachal e só por sorte não nos matámos uns aos outros.A operação durou três ou quatro dias e correu mal ao Maçanita. ele tinha ganhado reputação em Angola mas aquilo quebrou-o. Pelo menos foi a sensação que tive ao falar com os comandantes
Com o passar do tempo os superiores começaram a ter confiança em mim. Uma vez o Ramalho Eanes foi-me buscar para uma missão que foi das mais importantes da época: a prisão do Régulo Mataca, um dos descendentes do Gungunhanha. Quando o apanhámos, o Ramalho Eanes mandou-o pôr uma criança aos ombros. Ele tinha vários feridos e respondeu: Menino não é carga do Régulo. Mulher leva menino. Era uma vergonha para ele meter o filho às costas. Só o que o Ramalho Eanes teve uma atitude mais rígida e ele obedeceu. Depois levámo-lo. Ainda lá esteve uns meses, mas conseguiu fugir, libertado por Samora Machel.
A certa altura a PIDE fez uma investigação na companhia - em quase todas havia um informador, na minha era um sargento - e o capitão foi enviado para outro sítio. Fiquei a comandar a companhia durante dois a três meses. Era praticamente o único oficial. Tive de dizer ao Brigadeiro Alcides,comandante do sector de Vila Cabral, que tinha de mandar para lá alguém.Ele enviou o Capitão Horácio Valente,que até aí tinha dirigido a 4ª Companhia de Comandos e estava a ser castigado por desobediência. Quando chegou a Nacala e foi fazer um desfile, mandou os homens pôr a bala na câmara. O comandante da região disse-lhe: Mande os homens retirar a bala. Ele recusou porque eles estavam treinados para isso e foi destituído. O alferes também desobedeceu à ordem. Depois o Valente apanhou uns dias de prisão e foi comandar a CCAÇ 1553.
Criámos uma afinidade grande.No final de 17 meses de comissão ele dizia-me:Não se vá embora.Se eu for outra vez para a 4ª Companhia de Comandos, você vai comigo. Considero esta estadia sob a minha alçada e averbo-lhe o curso de comandos. Lá ponderei fazer nova comissão. Havia um sentimento de pátria que nos estava incutido. E aceitei. Aquilo que ele me disse foi aprovado.Devo ser o único Comando que não tem o curso.
Os Capitães Valente e Tomé em Meponda |
Em Agosto ,estávamos a regressar de uma operação e tínhamos em Metangula a barca que nos ia levar até Meponda, o porto mais perto de Vila Cabral, no Lago Niassa.
O Capitão Valente achava que a lancha tinha que sair de noite, mas o comandante dos fuzileiros disse-lhe que só ia de manhã. Como era casmurro, o Valente pediu via rádio uma coluna para nos ir buscar a Metangula, mas não falou por código, o que era proibido. As viaturas chegaram de madrugada, quando as lanchas já podiam sair. Antes, o Valente chamou-me para ver a paisagem do Lago Niassa. Era lindo, mas disse-lhe: Desculpe lá, mas a minha experiência diz-me para aproveitarmos esta areia da praia para enchermos as viaturas de sacos. Não custa nada. Ele respondeu que não valia a pena. Se vieram para cá, voltam para lá.
Estava na Berliet da frente com o Capitão Dinis de Almeida e o Capitão Valente apareceu com umas cervejas.Quando as deu disse: Ó Dinis,vai lá para a viatura de trás.Se houver mortes serão milicianos.Tu custaste muito dinheiro ao Estado e podes vir a ser general.Eu estava sentado no lado direito e ele mandou-me para o meio para ficar do lado da janela.Abrimos as cervejas e já não me lembro de mais nada.A mina rebentou debaixo do Valente.
A Berliet da 4ªCCMDS, onde faleceu o Cap. Horácio Valente |
. Felizmente não foi preciso.
As chamas eram tão intensasque o cano da minha G3 derreteu. O Horácio Valente ficou reduzido a 11 kilos de ossos chamuscados.Fiquei com queimaduras numa grande percentagem do corpo.Mas não havia morfina para me dar.Tinha três fractura na perna esquerda,outra na direita e puseram-me numa Berliet com uma coisa a tapar-me por causa das moscas. Não havia helicópetero.Safei-me graças à intervenção do hospital de Fuzileiros em Metangula,a 12 Kms, para onde regressámos. Aí fizeram a primeira lavagem. Mandaram-me para Vila Cabral,depois para Nampula e Lourenço Marques. Aí tive sorteForam lá uns médicos Sul-Africanos que me fizeram umas lavagens para tirar crostas e porcarias.Mandaram-me para Lisboa, um mês depois do acidente,em Setembro de 1968.
Fiquei sem os dedos dos pés e a tibiotársica.Estive quatro anos no hospital.Ao todo fiz 25 anestesias gerais.Tiraram-me a pele do corpo todo para meter nas pernas.Nesse tempo andei numa cadeira de rodas.Até ao dia em que fui à Solmar (Cervejaria em Lisboa) e disse que não saía dali em cadeira de rodas.Pedi umas muletas e comecei a dar voltas devagar.Não andava há quatro anos.Aos poucos consegui recuperar e continuei sempre no activo até me reformar,aos 65 anos.
António Coucinho Fazendas
Batalhão de Caçadores Pára-Quedistas nº 31
Batalhão de Caçadores Pára-Quedistas nº 31
1ª Companhia de Caçadores Pára-Quedistas
Comissão 1972 -1974
Na primeira missão ficou 23 dias no mato. Com o seu grupo de pára-quedistas apanharam uma série de armas e de minas. Pensou que ia ser sempre assim, mas enganou-se: nunca mais teve uma operação tão longa.
Como fui tirar o curso de cabos, cheguei a Moçambique três meses depois do pessoal da minha recruta.
Cheguei à Beira a 4 de Abril de 1972 e saí dois dias depois. Voámos num Nord Atlas em direcção a FURANCUNGO, a norte de TETE, para uma missão de 23 dias. Íamos tentar apanhar turras que vinham do Malawi e atravessavam a fronteira junto do Lago Niassa. Acabou por ser a única operação em que ouvi tiros nossos. A certa altura emboscámo-nos num trilho e ficámos à espera. Até que apareceram. Era um grupo grande, que não teve hipótese. Assim que passaram fizemos algumas rajadas. Alguns ainda escaparam porque o rapaz que costumava levar a metralhadora MG estava para vir embora e andava a empurrá-la para outro, que não estava habituado e meteu mal a fita. Até a desencravar houve uns quantos que fugiram, com as tripas de fora. Matámos um "turra" e dois carregadores. Um deles era uma mulher, coitada. Apanhámos uma Kalashnikov, três Simonov, 25 minas anti-carros e uma 40 anti-pessoais. Por isso mais tarde recebemos 150 escudos cada um.
Recolhemos o material, chamámos os helicópteros para o transportar e continuámos por ali o resto do tempo. Leváavamosas rações de combate e dois cantis de dois litros na mala, além do lateral. Éramos reabastecidos de quatro em quatro dias.
Mais tarde tive outra operação assustadora. Saímos com o alferes Aires em direcção a uma base em Cabo Delgado. Arrancámos de manhã e fomos deixados de helicóptero a certa distância para continuarmos a pé. A mata era muito cerrada e os camuflados vinham sempre rotos. Quando se fêz noite, parámos. O da MG ia à frente, acompanhado com um pára-quedista com uma G3. Eu, que ia com a HK, ficava atrás. com outro. Estávamos a preparar para comer e dormir quando apareceu um "turra" com uma machada às costas. O rapaz da MG assustou-se e deu-lhe uma rajada. O barulho denunciou-nos. Estávamos muito perto da base deles e passámos a noitea ser flageados com morteiros. Havia pessoal casado que gritava pela mulher, outros pelos filhos, outros pelas namoradas. Aí senti o meu sangue frio.
O alferes Aires também tomou uma acção de coragem: em vez de recuar, mandou-nos avançar uns 200 metros. Ficámos tão perto deles que os ouvíamos a falar e o barulho dos morteiros a sair. Foi o melhor que fizemos. A zona onde estávamos e daí para trás foi toda atingida.
Se tivéssemos chegado mais cedo éramos capazes de ter atacado. Assim, acabámos por ir embora quando começou a fazer-se dia.
A parte mais triste da minha comissão foi a morte de cinco camaradas nossas num acidente, no parque natural da Gorongosa. a certa altura a FRELIMO começou a distribuir panfletos a avisar que no dia 18 de Julho de 1973 ia atacar a Gorongosa. E atacou mesmo. As companhias do BCP 32 avançaram para a zona dos morros e nós fomos para lá à civil para proteger os turistas. Andávamos dentro das carrinhas que os levavam às zonas dos animais, mas com as armas debaixo dos assentos. Ninguém desconfiava que éramos tropas.
Havia lá um posto avançado, a 13 Kms, onde estava sempre um grupo de cinco ou seis, que eram rendidos para a refeição. No dia 19 de Julho foram rendidos mais tarde. O condutor que os levava tinha chegado há poucos dias e quando lhe disseram para acelerar, ele obedeceu. Numa curva perdeu o controle do carro e caíram numa ravina. Eles foram cuspidos e a viatura caiu em cima deles. O único sinal do acidente foi uma G3 que ficou caída no capim. Um grupo de turistas quando chegou à porta de armas, disse que tinha visto uma arma na estrada. O pessoal foi lá ver o que se passava e deu com aquela desgraça. Morreram cinco e houve um que ficou paraplégico.
A melhor medalha que tenho é ter vindo com pernas e braços.
Quando se deu o 25 de Abril já estava na Beira à espera de vir embora. Soubemos através do passa - palavra. Dizia-se que a guerra ia acabar, mas como estávamos quase a voltar não nos preocupámos muito. Afinal, fiquei lá mais algum tempo. Toda a gente queria deixar aquilo, civis e militares, e não havia aviões suficintes. Acabei por voltar a 13 de Maio de 1974.
Cheguei à Beira a 4 de Abril de 1972 e saí dois dias depois. Voámos num Nord Atlas em direcção a FURANCUNGO, a norte de TETE, para uma missão de 23 dias. Íamos tentar apanhar turras que vinham do Malawi e atravessavam a fronteira junto do Lago Niassa. Acabou por ser a única operação em que ouvi tiros nossos. A certa altura emboscámo-nos num trilho e ficámos à espera. Até que apareceram. Era um grupo grande, que não teve hipótese. Assim que passaram fizemos algumas rajadas. Alguns ainda escaparam porque o rapaz que costumava levar a metralhadora MG estava para vir embora e andava a empurrá-la para outro, que não estava habituado e meteu mal a fita. Até a desencravar houve uns quantos que fugiram, com as tripas de fora. Matámos um "turra" e dois carregadores. Um deles era uma mulher, coitada. Apanhámos uma Kalashnikov, três Simonov, 25 minas anti-carros e uma 40 anti-pessoais. Por isso mais tarde recebemos 150 escudos cada um.
Recolhemos o material, chamámos os helicópteros para o transportar e continuámos por ali o resto do tempo. Leváavamosas rações de combate e dois cantis de dois litros na mala, além do lateral. Éramos reabastecidos de quatro em quatro dias.
A melhor medalha que tenho é ter vindo com pernas e braços |
O alferes Aires também tomou uma acção de coragem: em vez de recuar, mandou-nos avançar uns 200 metros. Ficámos tão perto deles que os ouvíamos a falar e o barulho dos morteiros a sair. Foi o melhor que fizemos. A zona onde estávamos e daí para trás foi toda atingida.
Se tivéssemos chegado mais cedo éramos capazes de ter atacado. Assim, acabámos por ir embora quando começou a fazer-se dia.
A parte mais triste da minha comissão foi a morte de cinco camaradas nossas num acidente, no parque natural da Gorongosa. a certa altura a FRELIMO começou a distribuir panfletos a avisar que no dia 18 de Julho de 1973 ia atacar a Gorongosa. E atacou mesmo. As companhias do BCP 32 avançaram para a zona dos morros e nós fomos para lá à civil para proteger os turistas. Andávamos dentro das carrinhas que os levavam às zonas dos animais, mas com as armas debaixo dos assentos. Ninguém desconfiava que éramos tropas.
Havia lá um posto avançado, a 13 Kms, onde estava sempre um grupo de cinco ou seis, que eram rendidos para a refeição. No dia 19 de Julho foram rendidos mais tarde. O condutor que os levava tinha chegado há poucos dias e quando lhe disseram para acelerar, ele obedeceu. Numa curva perdeu o controle do carro e caíram numa ravina. Eles foram cuspidos e a viatura caiu em cima deles. O único sinal do acidente foi uma G3 que ficou caída no capim. Um grupo de turistas quando chegou à porta de armas, disse que tinha visto uma arma na estrada. O pessoal foi lá ver o que se passava e deu com aquela desgraça. Morreram cinco e houve um que ficou paraplégico.
A melhor medalha que tenho é ter vindo com pernas e braços.
Quando se deu o 25 de Abril já estava na Beira à espera de vir embora. Soubemos através do passa - palavra. Dizia-se que a guerra ia acabar, mas como estávamos quase a voltar não nos preocupámos muito. Afinal, fiquei lá mais algum tempo. Toda a gente queria deixar aquilo, civis e militares, e não havia aviões suficintes. Acabei por voltar a 13 de Maio de 1974.
DESTACAMENTO DE FUZILEIROS ESPECIAIS Nº 11
COMISSÃO: 1972-1974
Ao fim de 20 meses no Niassa,foi enviado com o seu destacamento para manter a ordem em Lourenço Marques.Havia muita tensão no ar.A população branca estava na perspectiva de perder tudo e tentou virar a situação.O resultado foi uma vaga de violência nas vésperas da Indepêndencia.
O ambiente de África era-me familiar. Tenho uma irmã que nasceu em Angola e um irmão em Moçambique. O meu pai fez a vida lá e cheguei a viver na Beira, no Macúti, mesmo encostado á praia. Voltei para Lisboa com 10 anos. Quando acabei o curso de Fuzileiro Especial, em 1968, ofereci-me para o primeiro destacamento que foi para a Guiné. O primeiro impacto não me causou uma impressão especial. Depois, no ambiente de guerra, verificámos que o curso de Fuzileiros preparava-nos bem para o que íamos encontrar. Até em termos de terreno. Isso facilitou-nos muito a chegada à guerra.
Fiz 21 meses na Guiné, de Abril de 1968 a Janeiro de 1970. Fiquei os dois anos seguintes na metrópole até ser destacado para Moçambique, já como comandante de destacamento. Aquilo não tinha comparação com o que encontrei na primeira comissão. Enquanto na Guiné o terreno era plano e pantanoso com um inimigo forte, ali era uma zona montanhosa, o desgaste físico era enorme e a nossa área de actividade muito grande.
Na época havia três destacamentos de Fuzileiros em Moçambique.Um em Porto Amélia,em Cabo Delgado,outro na zona de Tete,no Magué,e o nosso no Niassa,no Cóbué. Graças à acção dos destacamentos anteriores o inimigo foi-se afastando das margens do Lago Niassa. Para o encontrar tínhamos de andar dois dias para o interior e outros dois para o regresso.A nossa missão era detectar as passagens de guerrilheiros da Tanzânia para dentro do território e afugentá-los das bases que havia na zona.eles tinham um acampamento central em Mepotche,de onde saíam para aborrecer os quartéis de Exército.Depois tinham bases de segurança para onde mudavam.Foi numa delas que tivemos alguns feridos,incluindo eu próprio.
Levámos dois dias para chegar.Na parte final fui falar com o guia,o Franco,para tentarmos calcular a distancia e decidir a que horas devíamos sair. Ele era um homem de confiança, caçador, muito resistente e que acabou por ser abatido pela Frelimo depois da independência. Mas como todos eles, não era muito bom a calcular distâncias. Estava previsto chegarmos à zona ainda de noite ou, no máximo, ao amanhecer. Entrámos num rio de leito seco, entre duas paredes escarpadas, uma espécie de Canyon apertado com uns 50 metros.
Comecei a ver umas palhotas junto à beira duma escarpa.Por sorte não estava ninguém.Continuámos até aparecer o caminho.Quando subimos,vimos-nos de repente dentro da base.Éramos cerca de 20 homens.O guia precipitou-se e abriu fogo antes do tempo.Eles reagiram.Alguns fugiram,outros foram abatidos.Houve um que noa atirou uma granada.Os estilhaços atingiram um dos meus homens na cabeça,outro na barriga e a mim na mão.Apanhámos umas armas e fizemos o caminho de regresso.Ali não era possível sermos recolhidos por um helicóptero. Juntámos-nos ao resto do destacamento e só aí fomos evacuados para Vila Cabral.Isto foi a 18 de Abril de 1974. Uma semana depois tive de voltar lá para mudar o penso e foi o piloto que me disse que tinha havido qualquer coisa em Lisboa, mas não sabia bem o quê.
Continuámos as operações até ao fim de Junho. Recebemos a informação de que a Frelimo se preparava para intensificar as actividades de modo a estar numa posição de força nas negociações que estavam a começar. Nós tivemos ordenspara fazer o mesmo. Entretanto,surgiram sinais de que poderiam começar a haver problemas nas Cidades e fomos enviados para Lourenço Marques,ao fim de 20 meses no Niassa.
Em Lourenço Marques ficámos mesmo no centro da cidade, junto ao comando naval, contra a minha vontade: mesmo ao lado havia a célebre Rua Araújo, onde estavam concentrados os bares e as boates.
Lourenço Marques estava calma,mas sentia-se uma tensão muito grande,sobretudo entre a população branca que se apercebera de que a intenção do poder em Lisboa era entregar o território à Frelimo. Sabia-se que ia acontecer alguma coisa. Havia conversas, rumores. O próprio pessoal foi aliciado. Mas só houve em Setembro, na altura dos encontros de Lusaka que iam resultar na independência.
Foi tudo de repente. Os brancos estavam organizados e puseram a população na rua. Era uma pressão um bocado utópica, tendo em conta o que estava previsto. Mas a revolta vinha do interior das pessoas. Era gente que vivia lá desde sempre e não via com bons olhos ser despejado dos seus bens e ter de pegar nas malas. Foi-lhes também dito que poderia haver apoio dda Rodésia e da África do Sul numa tentativa de não entregar o território à Frelimo. E eles acreditaram. A 7 de Setembro tomaram o Rádio Clube,que passou a fazer apelos à população e aos Estados vizinhos.
7 de Setembro a população de Lourenço Marques a manifestar-se contra
a entrega do território à Frelimo
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Estava previsto que uma coisa daquelas pudesse acontecer e o edifício estava rodeado de polícia. Ainda assim eles entraram por ali dentro e tomaram conta daquilo (Clika aqui para leres o livro de Clotilde Mesquitela : Moçambique 7 de Setembro de 1974). Nós,não recebemos ordens,mas ficámos na situação de estar a fazer segurança ao Rádio Clube ocupado.Tal como protegemos o aeroporto.Isso levou a uma retaliação da Frelimo.Os confrontos fizeram muitos mortos e feridos.
Houve outra situação complicada, que resultou da ordem de fazermos patrulhas mistas com a Frelimo. Eu recusei. T´nhamos vindo do mato e tido feridos há pouco tempo. Não se passa de inimigo para amigo de repente..A Companhia de Comandos aceitou. Passado pouco tempo já estavam de armas apontadas uns aos outros. Uma tarde apareceram uma Berliets na baixa da cidade cheias de Comandos que começaram a disparar para o pessoal da Frelimo que lá estava. As pessoas meteram-se debaixo das mesas das esplanadas até lá chegar a Polícia Militar.
A Frelimo teve depois uma reacção forte contra a população à volta de Lourenço Marques. Começaram a fazer cortes nas estradas e a não deixar ninguém passar. Aí houve cenas parecidas com as dos primeiros acontecimentos de Angola, com gente à catanada e coisas do género. Andámos a correr de um lado para o outro a apagar fogos.Muitas vezes por iniciativa própria, porque a descoordenação de comando era grande.
Eles ainda chegaram a deter um homem nosso, que ía a passar de motorizada em frente à sede deles.Pararam-no,identificaram-no e prenderam-no.Tive que lá ir falar com o responsável e dar-lhe um determinado tempo para o pôr cá fora.Disse-lhe que se não o fizesse que lhe atirava o edifício abaixo à bazucada.Cinco minutos depois estava na rua. Nós viemos embora em Outubro.
Esta foi a parte mais dolorosa da comissão.Ficámos com um sentimento de revolta por perdermos na rectaguarda uma guerra que estava a ser vencida no terreno.
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