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Livros da guerra colonial

Miandica terra do outro mundo


segunda-feira, 15 de julho de 2024

O MASSACRE DE MUEDA EM 16 DE JUNHO DE 1960

 Entrevista:

O MASSACRE DE MUEDA EM 16 DE JUNHO DE 1960

DEPOIMENTO DAS TESTEMUNHAS
Apresentação de Yussuf Adam e
Hilário Alumasse Dyuti




O Massacre de Mueda é um acontecimento utilizado pelos historiadores contemporâneos de Moçambique para ilustrar a natureza do Estado colonial e a oposição das populações ao sistema.
A documentação escrita publicada noutro lugar deste neste número ilustra a interpretação do massacre pelas diversas camadas de funcionários do Estado colonial. As camadas mais altas do aparelho
de Estado português encararam o massacre não como resultado de conspirações internacionais e da subversão mas como consequência das políticas repressivas da administração. As fontes da administração colonial são omissas quanto ao número de mortos e à reacção da população.
Para alem de relatos em primeira mão, o testemunho daqueles que presenciaram o massacre traz também interpretações que têm bastante a ver com as versões oficiais dos desenvolvimentos políticos
na zona. O conteúdo das reivindicações apresentadas é transformado para corresponder ao catecismo político da actualidade: alegadamente, a reivindicação dos partidos políticos era de uma independência total de Moçambique (e não apenas de Mueda), de libertação de todos os moçambicanos independentemente da cor, credo religioso, etnia, etc.
Porém, o conteúdo dos programas políticos das diversas organizações que actuaram em Mueda antes da Frelimo faz parte de uma questão ainda em aberto. Algumas dessas organizações
encaravam Mueda como parte da Tanzania e naturalmente participavam na dinâmica independentista daquele país vizinho. Outras queriam apenas libertar os macondes.
E, no entanto, todos os informadores se manifestam como tendo estado contra a MANU desde o início, como tendo sido sempre anti-tribalistas e anti-racistas. É negado, portanto, aquilo que seria lógico e natural: o surgimento de um movimento local de base étnica defendendo a integração da região na Tanzania.
ARQUIVO. Maputo (Moçambique), 14:117-128, Outubro de 1993. 117
Assim, Mueda permanece sobretudo como ilustração do funcionamento do sistema colonial, das suas contradições internas e da necessidade de violência que o Estado colonial tinha para se manter quando já não era capaz de responder às pressões populares.
Apresentamos aqui alguns depoimentos de pessoas que presenciaram os acontecimentos de 16 de Junho de 1960, em Mueda. O primeiro e o segundo, respectivamente de Daniel Muilundo e
Cornélio João Mandanda, procuram dar uma versão cabal dos acontecimentos. O de Mandanda foi, aliás, dactilografado pelo próprio e depositado na Direcção Provincial de Educação e Cultura de Cabo Delgado, em 1977. O terceiro, de Rachid Katame, ilustra bem o mecanismo "ideológico" atrás referido, de atribuição clara, desde o início, da reivindicação de independência nacional para todo o
Moçambique em 1960, por um grupo de camponeses macondes situado nos confins do território setentrional de Cabo Delgado.
Finalmente, o testemunho de Jacinto, Ornar ilustra claramente a ligação do massacre de Mueda com a formação da Frelimo e o desencadeamento da luta armada de libertação nacional. Ligação essa, aliás, que constitui um dos pilares da leitura que a historiografia nacionalista faz de todo este processo: o massacre de Mueda cristaliza o conjunto de indicações segundo as quais o regime colonial nunca
abdicaria do poder pacificamente e, portanto, só pela força das armas poderiam os moçambicanos aspirar à sua independência.
Memorial em Mueda aos mortos do massacre de Mueda em 16-6-1960

1. DANIEL MUILUNDO
(Aldeia Comunal de Mualela, Palma, Cabo Delgado, 21 de Julho
de 1981).
Fui a Mueda assistir às conversações entre o governo colonial e o Faustino [Vanomba]. Saí no dia 15 de Junho de Mualela para Imbuhu e pernoitei lá. No dia 16 cheguei a Mueda. Quando lá cheguei as
pessoas já se encontravam concentradas. Havia homens, mulheres e algumas crianças. Muitas pessoas estavam bem vestidas. Havia pessoa de diversas raças: indianos, brancos e pretos. Momentos depois os colonialistas içaram quatro bandeiras. O administrador de Mueda pediu à população que fosse participar no içar das bandeiras. Mas a população negou-se a içar [a bandeira] dizendo que tinham ido lá para ouvir as palavras do Faustino [Vanomba] e do Kibiriti [Divane]. Oibiriti e o Faustino estavam de baixo de uma mangueira.
11 8 ARQUIVO. Maputo (Moçambique), 14:117-128, Outubro de 1993.
Informaram-nos que o governador só chegaria às 15 horas, mas quando chegou às 15 horas o governador saiu de casa do administrador. O governador escolheu dois padres da Missão de
Imbuhu, um indiano conhecido por "China" e também os régulos para se concentrarem na varanda da secretaria [da administração]. O governador ordenou a um dos padres que abençoasse o grupo do
Faustino ao mesmo tempo que o pretendia matar! Um soldado saiu para fora e explicou ao povo que o Kibiriti seria morto porque cometeu um erro.
Depois, o governador chamou-os individualmente lá para dentro. Porém, não conseguiram matá-lo [ao Kibiriti] e em seguida chamaram o Faustino Vanomba e tudo se repetiu porque ele nã morreu. Os dois saíram amarrados para o carro e nós apanhámos o carro e dissemos que "esse carro não vai avançar. Fizeram isto com os do primeiro grupo, da Modesta, mas hoje isso não vai acontecer".
Foi neste momento que a população reclamou, começando a atirar pedras. Então o governador mandou abrir o fogo. Como os soldados estavam próximos da administração, abriram fogo e mataram um dos meus conhecidos, de nome Kanjigwili, natural de Mueda. Quando istaconteceu fugimos e eu esqueci-me lá da minha bicicleta. Fiquei durante algum tempo [na aldeia de Mpeme] e voltei mais tarde para ir buscar a bicicleta. Quando lá cheguei vi por volta de 17 pessoas mortas.
Depois do massacre andavam os cipaios de casa em casa a recolher as nossas armas e a mandarem-nos depois para Nangade, para registo das armas. O Faustino e o Kibiriti foram levados para Pemba.



2. CORNÉLIO JOÃO M ANDANDA
(Mueda, Cabo Delgado, 1977).
Foi em 1959 que chegou Faustino Vanomba a Mueda, onde permaneceu dois dias, findos os quais pediu para falar com o senhor administrador da Circunscrição de Mueda sobre a independência do povo moçambicano. Ora o senhor administrador não aceitou este pedido do Faustino Vanomba. Mandou-o regressar para a Tanzania, onde estava refugiado. O administrador organizou cipaios para irem
[com ele] ao Posto de Mocímboa do Rovuma. Saíram. Tendo chegado a esse ponto de referência, o Chefe do Posto recebeu-os e organizou
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mais pães [mantimentos para a viagem?] e ordenou a mais cipaios que o acompanhassem até à fronteira, no rio Rovuma.
A razão que levou os portugueses a procederem desta forma foi a seguinte:
a) talvez o Faustino Vanomba tivesse deixado mais companheiros pelo caminho;
b) se ele começasse a tomar qualquer posição de força sobre o "Uhuru" os cipaios matá-lo-iam. Assim,
fizeram o Faustino Vanomba atravessar a fronteira de Moçambique
para a Tanzania.
No mesmo ano, poucos dias depois, chegou o segundo grupo vindo da Tanzania. Este grupo era chefiado por uma mulher, filha de Neva, e assim chamada Binti Neva [filha de Neva]. Este grupo veio a Moçambique depois de se ter encontrado com o Faustino Vanomba, quelhes deu um relatório sobre a sua viagem, tendo afirmado que os portugueses "resistem até hoje e comigo não chegaram a nenhum acordo". O grupo, que era constituído por dois homens e uma mulher, esta a responsável, dirigiu-se directamente para a Circunscrição de Mueda, para a sua administração. Encontraram-se com o senhor administrador, que lhes perguntou:
- De onde é que vocês vêm?
- Nós somos moçambicanos refugiados na Tanzania.
- Se vocês vieram da Tanzania, o que vieram cá fazer?
- Nós chegámos aqui para vos dizer que deverão dar a independência ao povo moçambicano e vós devereis ir para a vossa terra, Lisboa. Esta terra é para os moçambicanos.
Este grupo trazia mandioqueiras [e uma mensagem para os moçambicanos]:
- Nós trazemos estas estacas de mandioca para irem plantar na vossa terra, símbolo de que já regressámos à nossa terra. E vós, a partir de hoje deveis pegar na enxada para plantar estas estacas de
mandioca e ficar a saber que esta terra não é dos colonialistas portugueses mas sim dos moçambicanos!
Depois destas palavras, proferidas pela Binti Neva, o administrador disse:
- Vale [mais] a pena dar a independência a um macaco do que um moçambicano como tu. Tu, mulher, o que é que tu sabes para te dar independência?... Nós sabemos muito bem que vós sois enganados pelo Nyerere, mas fiquem a saber que esta terra é dos portugueses e ali é a Tanzania. Portanto aqui estão sob controlo dos portugueses.
120 ARQUTVO. Maputo (Moçambique), 14:117-128, Outubro de 1993.
Os colonialistas portugueses, tendo em vista esta reivindicação de libertação, decidiram prender todos os moçambicanos que ali se encontravam. Durante a acção, quando o grupo era mandado para a
prisão, Binti Neva exprimiu as seguintes palavras:
- É bem sabido o que nos vão fazer. Podem-nos prender e massacrar mas os moçambicanos são muitos e têm o objectivo de libertar moçambique, a nossa terra.
Este grupo foi preso e encarcerado na cadeia. Em seguida, o senhor administrador fez um encontro (banja) junto dos régulos,capitães-mores e população, tendo-se dirigido [a eles] nos seguintes
termos:
- Quero informar a todos vós aqui presentes que deverão ficar alerta com as pessoas que vêm da Tanzania; elas trazem muitos problemas porque são enganadas pelo Nyerere, que lhes diz "vão a
Moçambique falar com o governo português para vos dar a vossaterra". Essas pessoas são muitas e, portanto, quando aparecerem devem amarrá-las e mandá-las para a administração; quando encontrarem pessoas que levam bengalas são do mesmo grupo e deveis trazê-las à administração; as que falam língua swahili, como as que têm rádios, devem ser presas, porque são as mesmas pessoas que
querem estragar o mundo. Quando chegarem hóspedes a vossas casas deveis informar os régulos e capitães-mores para ficarem a par da situação.
Depois do encontro o administrador organizou um grupo no seio dos régulos e capitães-mores, para andar de povoação em povoação recolhendo informações para a administração. Isso deu-se
nos fins de 1959.
Tendo chegado ao país irmão da Tanzania [notícia] que o grupo que seguira para Moçambique tratar do problema do "Uhuru" (independência) fora preso pelos colonialistas portugueses, muitos
Moçambicanos organizaram o terceiro grupo.
No dia 11 de Junho de 1960 chegou o terceiro grupo chefiado pelo Kibiriti [Divane], Faustino Vanomba e Modesta [?] a uma povoação do régulo Mbavala, perto da Circunscrição de Mueda.
Passaram a noite toda na povoação desse régulo. No dia 12 de Junho de 1960 avançaram até à Circunscrição de Mueda para falarem com o administrador. Depois de chegarem à administração entraram em contacto com os cipaios para que eles fossem comunicar ao senhor administrador a chegada deles e o que queriam fazer. Os cipaios responderam:
As bengalas dos Régulos:LIDIMO; MBAVALA; NDYAKAL

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- O que vamos informar? Nós sabemos que vocês são as pessoas que vêm da Tanzania para estragar o mundo.
Aqueles elementos insistiram muito, até que os cipaios, por fim, foram informar o intérprete da administração. O intérprete, por sua vez, saiu para ver quem eram eles. O mesmo perguntou o que
queriam falar com o senhor administrador. Eles responderam:
- O nosso assunto não é consigo. Nós queremos falar com o próprio administrador.
Ele saiu e foi ter com o senhor administrador. Tendo chegado a
palavra ao senhor administrador este disse-lhe para os ir chamar. E o
administrador perguntou-lhes:
- Vocês precisam de mim? O que é que vocês querem falar
comigo?
Responderam aqueles homens:
- O objectivo da nossa vinda não é diferente do dos nossos
companheiros que vieram anteriormente. O objectivo é o mesmo.
-Qual é?...
- Queremos a independência da nossa terra. O senhor administrador, depois de ouvir estas palavras, disse-lhes:
- Bem, se todos vós têm essa intenção única e se os vossos objectivos são os mesmos, terão que regressar para casa e compareçam cá no dia 14 de Junho de 1960, para nós podermos preparar [as
coisas] e chamar os régulos, os capitães-mores e a população, para podermos perguntar se o povo moçambicano quer a liberdade. Para vos dar a vossa terra, para transferirmos para vocês o poder na
presença de todos.
Em seguida a delegação saiu para Muatide, onde estavam outros elementos que vendiam cartões. Os portugueses não sabiam que o grupo se dirigiu para onde era a base deles.
Nesse dia as populações, não foram informadas de que haviam chegado da Tanzania elementos da organização moçambicana.
Poucos participantes foram a Mueda. Muitas pessoas pensaram que os portugueses fariam uma manobra para poder matá-los. Assim, apareceram em Mueda no dia 14 de Junho de 1960 apenas os régulos,
capitães-mores e cipaios. Ora, chegada a delegação diante do administrador, este, vendo que não chegara muita gente, decidiu dispersá-los, determinando assim o dia 16 de Junho de 1960 para de novo se encontrarem. Ao mesmo tempo apelou aos régulos e capitães-mores que fossem fazer um encontro maior para transmitir às populações que não faltassem no dia marcado. A delegação da
organização moçambicana tornou a regressar para onde estava
hospedada, Muatide.


122 ARQUIVO. Maputo (Moçambique). 14:117-128, Outubro de 1993.

O dia 16 de Junho chegou. Compareceu neste dia, jurando ser o dia da independência, muita gente. Quando acabaram de chegar as populações, os régulos e capitães-mores, o administrador dividiu-os em
grupos. Régulos e capitães-mores de um lado, e as populações do outro.
Finalmente, ordenou que os cipaios formassem um outro grupo em volta das populações ali presentes.. Todas as pessoas estavam em frente da administração.
A tropa do exército português havia-se enfiado nas cavernas do monte Chudi, organizada para defender as autoridades governamentais e fascistas do colonialismo português.
Tudo pronto. O administrador informou os elementos da delegação, cerca das 10 horas desse dia que deviam ter a conversa pelas [15 horas] porque estavam a aguardar a chegada do senhor
governador do Distrito de Cabo Delgado.
Saíram os cipaios para fora a informar as populações de que a conversa se iria iniciar pelas [15 horas] porque se aguardava [a chegada] do governador fascista. Aguardando a chegada, as populações nem se podiam mexer. Nesse dia chovia torrencialmente mas as populações não se retiraram do lugar.
Chegado o governador, o senhor administrador entendeu que se deveria manter uma boa posição para saudarmos o "nosso governador e, ao mesmo tempo, saudarmos a bandeira da República Portuguesa.
No mesmo momento em que os portugueses quiseram saudar a bandeira as populações começaram a desprezar a lei, dizendo que
"nós não viemos com este objectivo, o nosso objectivo hoje é ouvir aquilo que vão dizer aos nossos irmãos Kibiriti e seus companheiros.
Não temos nada a ver comia bandeira colonialista portuguesa."
Os colonialistas portugueses, com os seus sequazes, saudaram a bandeira. Depois da saudação à bandeira portuguesa, acompanhada de muitos gritos das nossas populações reclamando que não queriam essa bandeira. Outros, porque confiavam na religião dos mandamentos da lei de Deus, em que matar é pecado mortal, e além disso devido à presença dos padres, sentiam-se seguros de que nada lhes aconteceria.
Todavia, Kibiriti foi chamado para o gabinete do senhor governador, acompanhado pelos cipaios. Mal entrou, o governador
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começou a perguntar-lhe:
- De que precisas? O que vieste cá fazer? Qual é o teu objectivo, uma vez que tu és da Tanzania? És vadio? Queres estragar o mundo?
Kibiriti respondeu:
- Eu não sou filho da Tanzania, mas sim sou moçambicano.
Estou aqui porque quero liberdade. Sinto bastante ver o meu povo a ser torturado, massacrado, fazer o trabalho forçado nas machambas de Mpanga, desde o amanhecer até ao pôr do sol. Vale mais a terra estar nas mãos do povo moçambicano, para ele se governar a si próprio. Portanto, venho da Tanzania. O que me levou a ir instalar-me naquele país foi a exploração que se verifica aqui em Moçambique. No
entanto, para hoje quero a liberdade e nada mais. Bem sei que o povo não estudou e não saberá governar-se, mas mesmo assim esta terra pertence-nos.
Mediante esta locução do senhor Kibiriti, o senhor governador
disse:
- Independência, independência, não! Eu penso que o problema é de estabelecer a paz no país. A partir de hoje faremos o  seguinte:
a) havemos de aumentar os preços de todos os produtos;
 b)havemos de vos dar carros, lojas, etc.; 
c) comeremos juntos; 
d) hão-de casar-se com os brancos; e) a partir de hoje todos vocês são
portugueses.
Aquele delegado respondeu:
- Não nos fale do que não pedimos. O nosso objectivo não está centrado nas boas coisas, comer junto convosco, haver casamentos entre os pretos e os brancos, aumento de salários e dos preços dos nossos produtos. O nosso objectivo é dar independência ao povo moçambicano, para ele se governar a si próprio. Tudo o que se trate daquilo que nos falou havemos de organizar nós mesmos.

Neste meio tempo, quando o governador acabou de falar, chamou o Faustino Vanomba e, lá fora, as populações estavam em grande silêncio. Mal chegou o Faustino Vanomba ao pé do governador, este perguntou-lhe [o mesmo] pela primeira vez. E o Faustino Vanomba logo respondeu:
- Os objectivos que tenho são os que foram aqui apontados pelo meu amigo Kibiriti.
Percebeu o senhor governador e fez um aviso aos delegados,
da seguinte maneira:
- Sei bem que a vossa palavra é a única. Ide para fora.
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Eles foram conduzidos pelos cipaios para a varanda. Em seguida, o governador saiu do seu gabinete para fora, para informar as populações qual tinha sido a conversa na sala, com o Kibiriti e o
Faustino Vanomba. Tendo parado no meio de toda a população, o senhor governador disse-lhes:
- Conseguimos tratar de bons assuntos que vão manter a paz na nossa terra de Moçambique. A partir de hoje todos vós sois portugueses; os vossos produtos serão vendidos a preços muito bons;
terão maior salário; terão carros, casas, estarão bem vestidos; haverá casamentos no seio dos pretos e dos brancos.
Nesta altura em que o senhor governador falava, o Kibiriti, o Faustino Vanomba e a Modesta eram amarrados com algemas. As populações, quando viram tudo isto não deram ouvidos às palavras de
senhor governador e preferiram salvar os seus irmãos. Gritaram, dizendo: "Vale mais a pena sermos amarrados todos!" Ao mesmo tempo outras populações começaram a agarrar o carro em que seguiam os irmãos, e outras pessoas começaram a lançar lama, areia e pedras em sinal de protesto pela prisão de seus irmãos Kibiriti, Faustino Vanomba e Modesta. As populações, zangadas por ter resposta negativa, voltaram a empurrar o senhor governador ao mesmo tempo que eram arrancadas as divisas que ele trazia. Neste momento o senhor governador, quando se sentiu apertado pêlos nacionalistas de Moçambique, ordenou aos seus cipaios que abrissem fogo contra as populações indefesas.
Choveram muitas balas e todas elas incidiram nos corpos das populações. Neste espaço de tempo as populações, agarrando o carro em que estavam para seguir os delegados da organização
moçambicana, tiveram a coragem de dizer: Não deixemos seguir os irmãos!
A princípio as armas eram disparadas para o ar e ultimamente apontavam as populações ali muitas. A população caiu como se fossem mangas em tempo de ciclone. Parecia que os tiros dessas armas incidiam nos seus corpos. Metade da população começou a fugir... para onde?!... poucas pessoas se salvaram e mais de 500 foram mortas barbaramente.
Depois de cessarem os tiroteios os padres saíram de batina para a frente dos corpos tombados, alegando que prestavam os últimos sacramentos. Foram os seguintes padres que participaram no massacre de Mueda: Guilherme Kiples, da Missão de Imbuhu, Guy Humberg, da Missão de Bomela (Lipelwa), e um padre da Missão de Nangololo, de que desconhecemos o nome.


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Neste mesmo dia, quando a população foi dar esta informação aos padres da Missão de Nangololo, um dos padres disse:
- Um elefante não se compara com uma formiga. Se essa formiga tentar gabar-se, será esmagada. Este ditado testemunhava, no nosso caso, que nós não respeitámos as autoridades portuguesas.
Momentos depois de os padres terem acabado o seu trabalho diante dos corpos mortos, apareceram ali as tropas que dispararam para todos os cantos. Terminado o disparo a tropa começou a abrir grandes covas onde cabiam dezenas e dezenas de corpos dos moçambicanos mortos inocentemente.
O senhor governador, mal acabou de responder ao povomoçambicano através de balas, tornou a regressar para a sua capital de Porto Amélia (Pemba).
Não foi o fim. O processo continuou. No ano de 1962 já haviam sido formadas as forças com o mesmo objectivo.

3..RACHID KATAME
(Aldeia de Namaua, Mueda, Cabo Delgado, 6 de Fevereiro de
1982).
Medo não tínhamos. Porque o nosso interesse era de obter a independência. Nós estávamos cansados de ser colonizados e por isso chorávamos pela independência. Tínhamos confiança de que os portugueses iriam sair através das palavras desse grupo vindo da Tanzania. Por isso quando a administração convocou essa reunião todos decidimos participar. (...) Eles andaram a avisar de povoação em
povoação.
Diziam que tinham chegado a Mueda pessoas importantes vindas da Tanzania, para discutir os problemas da independência do país. (...) A primeira vez que convocaram as pessoas não foram.
Foram quando se convocou a segunda vez. E foi dessa vez que ocorreu o massacre. O primeiro encontro foi restrito entre o grupo de Kibiriti e o administrador de Mueda. Só no segundo encontro é que fomos convocados todos nós para poder participar na reunião. (...) A guerra começou quando o administrador tomou a decisão de prender o grupo de Kibiriti. Esse grupo estava na secretaria. Mas quando os macondes se aperceberam da situação quiseram entrar à força para tirar os seus dirigentes. Foi nessa altura que o governador de Pemba ordenou às tropas que começassem a disparar e a matar pessoas.
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Os soldados que estavam na secretaria tiveram que saltar para sair para fora, utilizando a janela. Eu encontrava-me debaixo do carro.
Estava escondido debaixo do carro e só assim escapei da morte. (...)
 Nós tínhamos ido pedir a nossa independência. Nós próprios queríamos governar o nosso país. Mas
também dissemos aos portugueses que quem quisesse ficar, muito bem, podia desde que aceitasse as nossas ordens. Os portugueses podiam ficar em Moçambique na condição de estrangeiros. Ao
dizermos isso os tipos opunham-se e consideravam-nos como gajos que não sabiam nada, sobretudo escrever. Nós queríamos a independência do nosso país, Moçambique. O Nkavandame tinha a
ideia [da independência do Rovuma até ao Messalo] mas nós não. 
Nós fomos pedir a independência de todo o nosso território.
 A independência que nós fomos pedir não era só para os macondes 
ou macuas, mas para todos os moçambicanos.

4. JACINTO OMAR
(Aldeia de Muatide, Mueda, Cabo Delgado 10 de Julho de 1981).
Quando os portugueses efectuaram o massacre de Mueda eu pessoalmente assisti. Nessa reunião estiveram todas as populações de toda a região. Estiveram ern Mueda velhos, mulheres e nós, jovens,
que seguíamos os nossos pais. Quando começaram os disparos eu presenciei e tive que fugir. Corri até casa. Chegado a casa quis voltar de novo para Mueda mas os velhos disseram que não devia. Falaram
comigo alguns velhos que também tinham estado em Mueda. Os velhos sabiam da perda de vidas em Mueda.
Depois disso, os velhos que haviam escapado ao massacre de Mueda, e mesmo aqueles que não tinham ido a Mueda, decidiram fazer várias notas e confiaram em mim para as levar para Dar-es-
Salaam Tãnzania). Os velhos disseram que tinham confiança em mim por eu ser esperto
E disseram também que comigo era possível fazer chegar as notas ao destino na Tanzania.
Na Tanzania, cheguei primeiro a Lindi, onde deixei a primeira nota.
Depois fui para Dar-es-Salaam deixar outra nota e finalmente fui para Tanga deixar última nota. Quando eu passava as pessoas perguntavam sobre o massacre de Mueda e eu explicava.
Depois disso regressei de novo para aqui. Logo a seguir ao meu regresso apareceu o senhor Ntwahumu que veio revistar as minhas malas, que continham roupa.
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Ele estava a suspeitar que eu tivesse cartões da Frelimo. Na verdade eu tinha os cartões só que ele não os conseguiu localizar. A partir daí os velhos tiveram mais confiança na minha pessoa, por ver que o
senhor Ntwahumu não conseguiu saber onde se encontravam os cartões da Frelimo. Os velhos diziam que eu era esperto demais e decidiram que eu fosse regularmente à Tanzania apresentar aos
dirigentes os problemas que afectavam a vida de Moçambique. Portanto, os velhos depositaram toda a confiança em mim.
128 ARQUIVO. Maputo (Moçambique), 14:117-128. Outubro de 1993.

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