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Livros da guerra colonial

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segunda-feira, 22 de julho de 2024

BIOGRAFIA E ENTREVISTA A VALERIANO BAÚLQUE . FURRIEL MILICIANO DA 6ª COMPANHIA DE COMANDOS DE MOÇAMBIQUE

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Texto retirado do livro de Dalila Cabrita Mateus:Memórias do Colonialismo e da GuerraEntrevista a: Valeriano BaúlqueFurriel Miliciano da 6ª Companhia de Comandos de Moçambique.BIOGRAFIA:Nasceu em ZAVALA, em 1950. Em 1971, completou o curso geral do Comércio, em Lourenço Marques.
Ao completar 21 anos, foi seleccionado para um curso de Comandos, vindo a integrar, como furriel, de Agosto de 1972 a Agosto de 1974, a 6ª Companhia de Comandos de Moçambique.
Esteve no grupo de Comandos que, ao lado da PIDE/DGS, participou na carnificina de WIRIYAMU.
Nos levantamento dos colonos  em 7 de Setembro de 1975, teve um papel destacado na defesa da cidade e da população negra.
Após a independência, participou na reunião da direcção da FRELIMO com os chamados "COMPREMETIDOS"
De 1984 a 1986, a pedido de Samora Machel, integrou o grupo de Comandos que dirigiu a reorganização do Exército Moçambicano, na cidade de Maputo.

Oficiais da 6ª CCMDS Moçambique. À Dirª, o Alferes Antonino Melo
ENTREVISTA: P- Não há problema nenhum, se não me quiser dar o seu nome. De qualquer modo, o senhor já foi filmado, já houve uma informação para a televisão. Foi filmado pelo Antonino Melo, não foi?
R- Sim, em 1984
P- Mas se não quiser dar o nome, digo apenas que foi antigo comando.
R- Sim, fui comando. Pertenci à 6º Companhia de Comandos de Moçambique. Não vejo inconveniente em dizer o nome, porque aquilo que vou dizer é aquilo que sei e vi.
Chamo-me Valeriano Baúlque e pertenci à 6ª Companhia de Comandos
P- Nasceu em...
R- Nasci em Moçambique, na província de Inhambane. Sou natural de Zavala e nasci em 18 de Janeiro de 1950
 P- Onde estudou? 
 R- Estudei aqui em Lourenço Marques, onde fiz o Curso Geral do Comércio. Acabei o curso em 1971
P- Tinha, então 21 anos. Estava, pois, na altura de ir para a tropa?
R- Exactamente
 P- É aí que vai para o sector especial?
R- Chegada a altura de cumprir o serviço militar obrigatório, incorporei-me em Boane no ano de 1971. Como apresentei a documentação escolar um pouco atrasada, transitei para 1972. Fui seleccionado para o 6º curso de Comandos e quem me seleccionou foi o Major Glória Belchior. Fui para o curso e fiquei apto. Eu e os outros formámos a 6ªCCMDS de Moçambique, desde 9 de Agosto de 1972 a 9 de Agosto de 1974. Altura em que terminámos a nossa missão como militares.
P- Como estavam organizados os Comandos da 6ª Companhia?
R- A Companhia estava organizada em seis grupos e cada grupo era constituído por vinte e cinco homens. Os vinte e cinco homens formavam cinco equipas, cada uma das quais com cinco homens. Cada equipa era liderada por um Furriel coadjuvado por um cabo, sendo o comandante de cada de cada grupo um Alferes. Tínhamos, portanto, seis Alferes, que eram comandantes de seis grupos e um comandante de Companhia, quer dizer, os seis grupos formavam uma Companhia, quer dizer, os seis grupos formaram a Companhia que foi comandada pelo Capitão Gonçalo Fevereiro.

Gonçalo Fevereiro a ser condecorado na época da sua comissão na 4ª CCMDS de Lamego. Esta Companhia esteve no Niassa de Dezembro de 1966 a Novembro de 1968

P- Qual era o seu posto ?
R- Fui Furriel Miliciano.
P- Então, o seu recrutamento foi precisamente como se fosse para a tropa. E os outros foram todos recrutados assim?
R-  Os critérios de recrutamento eram os mesmos. Todos éramos recrutados para a tropa normal. E durante a fase de treinamento, a fase de formação dos instruendos, havia a selecção para a tropa especial. Nós fomos seleccionados para essa tropa especial, não é? E outros foram seleccionados para outros grupos especiais, tais como GEP(Grupos Especiais Para quedistas)e os GE (Grupos Especiais), para além da tropa normal que também tinha a especialidade de Infantaria. Havia outras especialidades como motoristas, engenharia e outras. Mas nós fomos para os Comandos.
 P- Era um treino difícil?
R- Difícil e perigoso, disso não restam dúvidas.
 P- Era muito violento?
R-  Era sim senhor, muito violento. mas isso tinha a sua razão de ser, porque o rigor e também as exigências que nos eram impostas, era para sermos preparados para fazer face à nossa missão.
P- Quer dizer, homens preparados para tudo!

R- Exactamente. Quem entrasse para o curso de Comandos, no início tinha receio de não ser capaz de chegar ao fim. Mas, a meio do curso, já ganhava outra mentalidade. Mas isto, dado a quê? A uma espécie de campanha psicológica que o próprio curso tinha e que se incutia nos instruendos, para que assumissem o curso e tivessem a imagem de que é o inimigo. Definia-se o inimigo, e este devia ser enfrentado mais ou menos nessa base. Acabávamos, assim, por pertencer àquela especialidade.
P- Pode dar o exemplo de um treino que tenha sido complicado, difícil. Para poder ficar a saber se passavam fome ou sede. Diga-me, mais ou menos como era.

Um Grupo de Instruendos do Curso Comandos, após a prova de sede

R-  Dos treinos que tivemos, a prova mais difícil que enfrentámos foi a prova de sede. São seis dias em que os instruendos tem que aguentar as vinte e quatro horas com um cantil  de água. Um cantil de água é um litro só e aquele litro era água para a higiene pessoal e para aguentar os dias em treinos intensivos. Fazia muito sede, porque éramos largados num campo onde nos dias anteriores tinha sido queimado o capim, ficando só a cinza, e nós tinha-mos de acampar nesse local, montando aí as nossas barracas, que faziam um envolvimento ao campo de treino. E davam-nos um litro de água por dia, isto durante seis dias. Era o treino mais difícil que tínhamos
 P- Falando de treinos, referiu o campo de treino. Onde é que ficava concretamente o campo de treinos?
R- Ficava no meio do mato. O curso de Comandos era ministrado no Norte, na Província de Cabo Delgado, todos os treinos se efectuavam lá. Este treino era dado a cerca de cinquenta kms acima do quartel.
P- Sei que os Flechas eram recrutados pelo Daniel Roxo. Ouviu falar dele? Conhece alguma coisa?
R-  Ouvi falar dele, sim senhor. 
Nota do BLOG: Em Moçambique nunca houve Flechas. Os homens comandados por Daniel Roxo era dado o nome de Mílicias
 P-  Sabe que um antigo preso político viu o Daniel Roxo ir aqui à Cadeia da Machava levar homens à força. Sabe se, habitualmente, as populações ou os presos das cadeias eram obrigados a ir com ele?
R- Não. Confesso que a missão do senhor Roxo, não a cheguei a conhecer, embora tenha ouvido falar dos Flechas. Mas como eram recrutados, confesso que não sei.
P - Esteve por acaso em WIRIYAMU ou ouviu falar de Wiriyamu? 
R - Ah! Sim. Feliz ou infelizmente, fui participante. O meu grupo participou na carnificina de Wiriyamu, na província de Tete, em Dezembro de 72 ou 73.

Luís Wiriyamu, um dos sobreviventes do massacre, Em 16-12-1972, tinha 25 anos


P - Foi-vos dada uma missão e vocês sabiam à partida o que iam fazer? Ou só quando chegaram ao local é que se aperceberam do que tinham que fazer?

R - A instrução dada foi a de assumirmos uma operação que tinha como objectivo dar cabo duna zona. Não nos disseram que era um aldeamento, não nos disseram que havia lá pessoas a viver. Era uma zona suspeita, a partir da qual o inimigo actuava. Quando lá chegámos apercebemos-nos de que era um aldeamento já formado. Sabe o que é um aldeamento?   
P - Sei sim.
R - Quando lá chegámos apercebemos-nos que já era um aldeamento formado. Mas a nossa operação foi dirigida directamente pelos elementos da PIDE/DGS. Fomos largados de helicópteros. Éramos dois grupos da Companhia. O meu grupo e o outro fomos largados de helicóptero. Mas no dia anterior já tinha sido largado um grupo para fazer o envolvimento à zona. Fomos largados com os membros da PIDE/DGS, que andavam mais ou menos pelos 20 homens
P - Lembra-se de o nome de algum?
R - O Chico
P - O Chico feio?! Incrível, esse era o carrasco aqui da Vila Algarve e da Machava
R - Havia lá um outro Chico, que liderava o grupo, mas não me recordo do nome de nenhum deles. Fomos largados, juntámos as populações e quem fazia as investigações e as perguntas às populações eram os pides
NOTA DA AUTORA: Trata-se CHICO KACHAVI, agente negro da PIDE/DGS, conhecido pela sua muita força, e muito temido pelas torturas de que se encarregava na prisão de Tete 
P - Então vocês estavam ali a proteger os pides?
R - Sim, praticamente isso, porque quem tinha o papel, quem tinha as orientações fundamentais, era esse grupo da PIDE/DGS. Concentraram as populações, fizeram perguntas e a dada altura... os pides também estavam armados.
P - Ah! Estavam armados!
R - Armados, sim. Chegou uma dada altura em que eles começaram a dar porrada a algumas pessoas da população e a lançarem granadas. Quando nos apercebemos daquela desordem, o nosso comandante teve de intervir.

Alferes Antonino Melo com uma criança ao colo


P -  O vosso  comandante era o era o Alferes Antonino Melo?
R - Sim. Antonino Melo chamou a atenção para o facto de aquela gente dever ser tratada doutra maneira, porque, no fim de contas, se aquele aldeamento não figurava no projecto de formação dos aldeamentos da ZOT, que era a zona operacional de Tete, porque recebíamos as instruções da ZOT, era melhor levar ao conhecimento do comandante da ZOT que ali existia um aldeamento com muita gente em vez de andarmos a fazer o que estávamos a fazer (está comovido)
NOTA DA AUTORA: esta versão é confirmada pelo Padre Adrien Hastings que afirma: Diz uma testemunha que um oficial militar tinga seguido via da clemência no sentido de conduzir aquela pobre gente para um possível aldeamento. Mas a voz sinistra do agente Chico fez-se ouvir ainda com mais furor: São ordens do nosso chefe: Matar a todos.
P - Quem era o comandante da ZOT?
Nota do Blog: O Comandante da ZOT, era o então Coronel Pára-quedista Armando Videira.
R - Esqueço-me o nome dele. Mas naquela confusão toda, ninguém deu ouvidos a ninguém. Começaram a atirar granadas contra as populações. Metiam as pessoas dentro das palhotas e atiravam granadas lá pare dentro.
P- Não percebo nada de armas. Como eram as granadas? Eram normais?
R - Sim, eram normais. Puchava-se uma cavilha e explodiam. E as explosões incendiavam uma palhota. A operação durou o tempo que durou e a verdade é que morreu muita gente.
P - Durou quanto tempo a operação?
R - A operação durou acima de duas horas, talvez três
P - Deve ter sido horrível?
R - Isso foi horrível. Foi horrível sim senhor, isso foi.
P - Não havia população a tentar fugir das palhotas?
R - Ah! Havia população que não era atingida , havia outras pessoas que eram mortas com espingardas. éramos portadores de G3. As populações fugiam, e nós que estávamos a envolver, a proteger o trabalho, quando a população aparecia ali, nada podíamos fazer, a uns até deixámos passar, porque víamos que era uma injustiça que estava a ser praticada.
Mas no fim, já no dia seguinte salvo erro, não dormimos ali. Tivemos de nos afastar do local onde se verificou o massacre. E fomos recolhidos por helicóptero.
Só que passado uma semana, salvo  erro, depois do resultado do trabalho que foi feito ter sido espalhado a nível de imprensa e chegado ao conhecimento de outras individualidades, os padres, que conheciam aquele aldeamento, fizeram questão de ir lá ver o que acontecera.
Foi quando voltámos a receber novas instruções, para voltarmos ao local e recolhermos e enterrarmos os cadáveres, para mostrar que nada tinha acontecido naquele local. Mas não foi fácil o trabalho de recolha dos cadáveres. Basta ver como, passado uma semana, fica um cadáver, como ficam os corpos. Fizemos o trabalho e voltámo(a voz é de uma tristeza indescritível)
Alferes Antonino Melo

P - Foi terrível para as pessoas que assistiram, porque vocês eram treinados para lutar contra um exército, neste caso os guerrilheiros. E não para matar a população civil.
R - Claro que não. A nossa especialidade era para fazer frente ao inimigo declarado, no caso concreto a FRELIMO, contra armas convencionais. Aquelas pessoas estavam indefesas, por isso não tivemos nenhuma acção, quando muito o trabalho que deveríamos ter feito era recolher aquela gente, criar condições para recolher aquela gente para um lugar mais seguro, era esse o trabalho que deveria ter sido feito. 
P - Pois. Mas, concerteza  que o comandante da ZOT, se calhr, sabia que aquela população daria guarida aos guerrilheiros ou os alimentava e, portanto, era necessário aniquilar a população, porque dava apoio aos guerrilheiros.?!
R - É possível, sim senhor.
P - Além desta carnificina, tomou conhecimento de mais alguma tenha sido cometida pela PIDE/DGS, ou pelo Exército Português?
R - Eh! Bom..!
P - Há pessoas que falam de JUWAU?!
R - Das carnificinas de que tenho memória, foi esta de Wiriyamu e outras que se comentavam cá fora. Dos Comandos, não.
P - Havia grupos de Comandos só de brancos?
R - De brancos e de negros, era uma mistura.
P - Como é que os negros eram tratados pelos brancos?
R - Ali tratávamos-nos por igual, não havia qualquer racismo.
Um Grupo de Comandos da 6ªCCMDS de Moçambique

P - E nas outras especialidades da Forças Armadas Portuguesas? Como é que, por exemplo, a Força Aérea olhava para vocês?
R - Essa é a duvida. As tropas especiais eram respeitadas e eram mesmo olhados como tropa de elite.
P - Eram mesmo olhados como tropa de elite, independentemente da cor da pele?
R - Ah! Isso sim, não havia qualquer diferença. Éramos todos tratados por igual. Isso era o resultado do curso de formação e era, também, um trabalho de bom relacionamento.
P - Durante o tempo que pertenceu aos Comandos, alguma vez se viu a utilização pelas tropas portuguesas de bombas de napalm, de gás laranja, de desfolhamento ou de outras bombas que fossem utilizadas contra a população civil?
R - Bombas de napalm foram utilizadas pela Força Aérea, recordo-me de algumas operações que fizemos terreno e a aviação, no ar. A aviação provocava as bases, e nós tínhamos de estar no terreno para acolher os provocados. Geralmente, quando  uma pessoa é provocada, tem tendência a fugir. Eram as tais operações conjuntas que fazíamos. A Infantaria com a Força Aérea, principalmente em Cabo Delgado.
Em Moçambique não tenho conhecimento de outro  tipo de bomba. Metralhadoras  da Força Aérea, sim. E bombas de napalm, sim.
A Força Aérea quando era incumbida duma missão, essa tinha que ser cumprida. E alguma bases foram mesmo atingidas. Existia a BASE BEIRA, a BASE GUNGUNHANHA e outras. Não era fácil a tropa penetrar lá.. Por mais que uma base fosse localizada, programar uma operação para a destruir não era tarefa fcil. Mas tudo se fez para tentar destruir o que houvesse
P - Só actuou lá em cima, Cabo Delgado
R - Andei por Cabo Delgado, por Tete e por Manica e Sofala.
P - Alguma vez foi ferido?
R - Felizmente, não.
P - Com certeza que o vosso grupo apanhou várias vezes guerrilheiros? Como é que o guerrilheiro era tratado?
R - Como guerrilheiro era mal tratado e não havia qualquer desculpa.
P - Mas não o matavam?
R - Dependia das circunstâncias em que era apanhado. Se fosse apanhado com uma arma, era morto. Da mesma maneira que nós os emboscávamos, também eles o faziam a nós.
Mas, felizmente a nossa companhia só teve um morto e três ou quatro feridos em 125 homens.
Havia uma diferença em relação às outras companhias em que as baixas foram mais de um quarto. Mas nós, não, até havia uma espécie de lenda segundo a qual as companhias pares sofriam menos que as ímpares. No caso concreto a 3ª e a 5ª CCMDS tiveram enormes baixas.
O Cap. Júlio Oliveira, CMDT do BCMDS de Moçambique,  a analisar o material de guerra capturado à FRELIMO pela 3ª CCMDS de Moçambique


P - Não sei a que tropas especiais pertenciam, mas não ouviu falar dos mandiocas;?
R - Bom, rastejar foi uma posição tomada na altura, se fosse necessário. Mas houve uma operação chamada Operação Mandioca.
P - O que foi a "Operação Mandioca"?
R - Operações que eram feitas  nas machambas dos guerrilheiros, que eram machambas de mandioca, daí o nome.
P - Alguém me contou que, no 7 de Setembro, o senhor estava aqui em Lourenço Marques e assistiu ao levantamento dos colonos, à forma como eles se organizaram. Segundo me contaram, o senhor teve nesse dia um papel importante em defesa da cidade e da população africana. Ma, ainda na véspera, estava ao lado das topas portuguesas. Nesse dia o que é que falou dentro de si? O sofrimento do seu irmão, o sentido de justiça?
R - Houve, de facto um levantamento em vésperas do 7 de Setembro , um levantamento de brancos que não acolheram a posição da independência, achando aquilo uma injustiça. Revoltaram-se, pois, contra a posição tomada pelo Governo da altura. Então o que é que fizeram?. Pois formaram grupos, que caçavam negros o sentido de vitória por terem ficado independentes. Esses colonos chegaram a tomar o Rádio Club. E nos bairros da periferia da cidade controlavam os movimentos dos negros.
P - Quer dizer, uma coisa era a guerra, outra...Começou a sentir-se mal?
R - Naturalmente que sim, porque, enquanto estivemos em guerra, eu queria era que acabasse a guerra. Ora encontrara-se o mecanismo para acabar com a guerra e, no entanto, havia pessoas que não acolhiam tal ideia, que não a acatavam, que não se conformavam. Iam começar outra guerra, para que estava farto de guerra, para que não tinha paciência nem coragem para pegar novamente em armas. antes pelo contrário. O trabalho devia ser mobilizar e explicar o que se passava às populações, que não estavam esclarecidas. esse foi o papel que tivemos ao nível dos nossos bairros.
P - Dos Comandos, sei que foi o senhor e um outro Comando que tiveram um papel importante na defesa da cidade e na protecção à população negra.
R - Bom, nos Comandos havia sempre camaradagem e solidariedade . Fui eu e outros.
P - Ah! Não foram só dois? É que me falam só de dois.
R - Não. Não. Houve mais. Um deles foi o Aurélio Lebon, que foi à Rádio e falou para que as populações se mantivessem calmas e aguardassem por instruções oficiais para pôr termo a todas aquelas movimentações.
P . Foi o senhor que ajudou o Amaral Matos?
R - Não, não fui eu. Foi um Comando, mas não recordo o nome dele.
P - em 1982, houve uma reunião com o presidente Samora Machel, onde os senhores estiveram, não foi?. O território de Moçambique estava a ser invadido pelas tropas de Ian Smith e já existiam as forças da RENAMO. Quem estava nessa reunião?
R - Estavam membros da antiga Assembleia Popular Nacional, informadores da PIDE, elementos dos GEP, dos Comandos, do Movimento Nacional Feminino,  e outros que não me recordo agora.
P - Onde é que a reunião se realizou?
R - Foi na Escola Josina Machel.
P - Lembra-se se havia brancos entre os pides que lá estavam?
R - Não, eram só negros.
P - Qual foi a sensação que tiveram, quando vos foi dito para se concentrarem na escola para terem uma reunião? O que é que passou pela cabeça do senhor?
R - Pensávamos que estávamos mortos, que íamos ser fuzilados.
P - E depois?
R - Enquanto a reunião se desenrolou, o decurso da foi sempre ameaçador. O presidente Samora dirigia-se-nos num tom de ameaça, o que alimentava em nós o desespero, porque tinham informações pormenorizadas de elementos de cada um dos grupos e fundamentalmente da antiga ANP e dos pides. Ao mesmo tempo que dizia que tinhamos sido instrumentalizados pelo Exército Colonial.
De modo que o presidente Machel insistia sobretudo na ANP e na PIDE com base nas investigações que fizera a estas duas organizações.
Pensávamos que no final, haveria um fuzilamento global.
P - Lembra-se se estava alguém da imprensa a assistir?
R - Não. Ele não permitiu que a imprensa assistisse.
R - Mas acho que havia por ali jornalista estrangeiros
R - A verdade é que o presidente Samora disse abertamente que a imprensa não entrava lá.
P - Ah. disse mesmo!
R - Disse, sim. Não chegámos a ver jornalistas. Não queria a imprensa ali. Era uma conversa connosco, os comprometidos.
P - Estava alguém do Bureau Político da FRELIMO a assistir? Ou era só o presidente Samora?
R - Estavam só do Bureau Político, mas este estava quase em peso.
P - Quem era mais duro? O Bureau Político ou o presidente Samora.
R - Era o presidente Samora. No Bureau Político circulavam papelinhos, algumas perguntas vinham deles. O Bureau Político colaborava com o interlocutor directo, que era o Presidente Samora Machel.
Houve um grupo que estudou o que fazer, não é?! Programou a reunião e foi investigando. Alguns fulanos foram escorraçados dali para fora, porque quiseram ocultar aquilo que sabiam, portanto isso agravou a articulação da reunião. Eram tirados da sala e iam presos
P - Foram presos muitos?
R - Posso dizer que não chegaram a dez. Cada grupo tinha as pessoas marcadas.
P - Quantos dias demorou a reunião?
R - Cinco dias, durou cinco dias, salvo erro.
P - E quando chegou ao fim, o que pensaram?
R - (Risos) Até ao último minuto, tão desesperados estávamos. Mas ele anunciou que já não éramos comprometidos, que tínhamos passado a pertencer à sociedade moçambicana, que não devíamos ser tratados como comprometidos e como filhos de Moçambique, que tudo quanto se passara era para esquecer e que passávamos a fazer parte integrante da sociedade moçambicana. E pronto! Aí foi uma alegria.
Olhe alguns de nós até perderam quilos durante aqueles cinco dias. Quando íamos para lá de manhã, comentávamos não saber qual o fim daquele encontro. Estávamos realmente desesperados.
P - E depois? Não foram para nenhum campo de reeducação?
R - Não, não fomos. O que aconteceu depois daquela reunião foi um pedido formulado pelo próprio presidente Samora, fundamentalmente aos Comandos, porque ele reconheceu o papel e a aptidão dos Comandos, quer dizer a prontidão combativa e operativa dos Comandos.Portanto.disse que íamos ser solicitados para reorganizar o Exército. Dito e feito. Dois anos depois,, um grupo de doze, fomos seleccionados para fazer parte da reorganização do Exército, aqui na cidade de Maputo. Fiz parte desse grupo. Fizemos um belíssimo trabalho, pondo em prática o que tínhamos aprendido no Exército português. Apreciaram muito o nosso trabalho.
Exigimos condições, não só para nós, mas também para os nossos instruendos. E o nosso trabalho foi de qualidade, só que foi sol de pouca dura. Estivemos lá de 1984 a 1986. Ele morreu. e aquilo dissolveu-se.
Por causa da guerra da Renamo é que o Presidente quis reorganizar o Exército, para fazer face à Renamo. A guerra civil começou em 1978 e só terminou em 1992. Quando entrámos na reorganização do Exército, já a Renamo estava a progredir.
P - Como se preparavam os homens?
R - Foi uma reorganização administrativa. Depois até chamaram, ao nosso quartel, um quartel-modelo.
P - Pensava que também tinham feito treino militar?
R - Não, passou a haver um regulamento, portanto a estrutura de um quartel, com a logística, a polícia militar, etc...É verdade que, ao passar por aqui, era também preciso passar por algumas das fases de quem vai para a guerrilha, não é? Algumas partes de formação também tínhamos de as dar. Mas era quase uma escola para os outros quarteis.
P - Desligou-se completamente da vida militar?
R - Nada melhor que esta vida, não é?
P - Conheceu algum;flect;?. Nota do blog: E Moçambique não houve flechas;. A autora quererá referir-se a  MILÍCIAS
R - Pessoalmente, não. Eles actuavam no Niassa, Nota do Blog: No Niassa havia as MILÍCIAS de Daniel Roxo. E também estiveram na reunião
P - Não aconteceu nada a nenhum  flecha?
R - Não. Olhe, dos comandos, os poucos que lá estiveram não tiveram coragem de relatar o que se passou em Wiriyamu. Feliz ou infelizmente, recaiu em mim e, no fim, as culpas caíram na PIDE/DGS. Relatei lá o que se passara, como o relatei agora aqui.

Monumento erigido em Wiriyamu pelo Estado Moçambicano

P - Samora mandou colar fotografias dos comprometidos, nos sectores do trabalho. Cada um tinha lá a sua fotografia, não era?
R -  Foi na altura que se constituíram as assembleias do povo, em que os comprometidos não podiam eleger ou ser eleitos. Mas, tinham que colar s fotografias, no local de trabalho e no bairro onde viviam, d estar sob vigilância, quer no trabalho, quer no bairro. Isto desde 1978 até à reunião na Escola Josefina Machel.
Nessa fase é que me senti isolado. E aquilo teve repercussões na vida profissional das pessoas

Entrevista concedida e gravada na cidade de Maputo em Agosto de 2000.






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