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Livros da guerra colonial

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segunda-feira, 27 de junho de 2022

MANUEL NEVES SILVA -HISTÓRIAS DA GUERRA (6º EPISÓDIO)

 6 -“ EU “MATA” ELE” (Zona de Pundanhar) Norte de Moçambique

Um soldado do Grupo Especial (GE) 214
-Eu vai matar ele. Siliva, “eu vai matar ele”. Furriel tem de resolver nosso milando se não eu mata ele – Assim irrompeu pela minha “flat”o Chipanda. Vinha nervoso, alterado, histriónico, trazia nas mãos a arma e ameaçava usá-la. E repetia-se: -“Eu mata ele, eu vai matar ele ”-num jeito que me estava a deixar sem jeito.

Mal tínhamos acabado de chegar de um patrulhamento no mato, junto da fronteira tanzaniana. Tinham sido três dias de andanças, cansaços e muito stress. Preparava-me para relaxar, tomar um banho maconde, um banho de balde. Seriam quatro horas da tarde.

-O que se passa, Chipanda, qual é o milando?. Não chateia mozungo1* pá! -Tentei acalmá-lo. Ele não desarmou, bateu o pé, acercou-se ainda mais:

-Quando a gente foi no mato o soldado da companhia dormiu com minha mulher. Ele fez milando, não devia dormir com ela .

“Os meus soldados GE habitavam com as suas famílias no aldeamento de Pundanhar junto ao aquartelamento da 1ª Companhia do Bcaç 5013. Esta companhia era formada por soldados brancos idos de Portugal, a Metrópole e também por soldados de recrutamento local maioritariamente de etnia “Quisena”.ou Sena

Foi-me dizendo que um soldado “Sena”, tinha feito companhia à sua mulher durante as noites em que estivemos ausentes na patrulha e olhando-me nos olhos rematou: -Agora “Siliva “que é nosso pai, tem de resolver nosso milando2.

“Nosso pai” era um vocativo que eles usavam, sempre que se dirigiam a mim. Era uma forma de demonstrar respeito e estima. Fui-me habituando a este bordão na fala deles.

-Já falaste com a tua mulher?-Perguntei.

-Minha mulher, não tem nada a ver. Ele é que não devia ter “feito máquina3” com ela.

Mulher de Pundanhar

Estranhei a resposta. Compreendi as nossas diferenças culturais. Nestas coisas as mulheres ficavam inocentes. Os outros Furriéis, o Balbino e o Coroa deixavam-se rir perante a insólita situação. Resolvemos expor a questão ao Capitão Miliciano António Pacheco, comandante da Companhia do presumível infractor. Em conjunto analisámos, ponderámos a caricata questão e acordámos na pena a aplicar, caso viessem a verificar-se verdadeiros os factos.

Chamámos à nossa presença os dois, o “corno” Macua4 e o “gigolo” Quisena. Perguntámos a este se teria mesmo “feito máquina” com a mulher daquele. E sim era um facto consumado.

-Sim - disse - “Eu dormi com manamuca5, nos dias quando marido esteve na patrulha, no mato”. Não havia dúvida, estávamos perante um busílis de dura “queratina, crescente, inchante”, um abcesso de chifres que urgia resolver, remover sob pena de maiores males.

Demos-lhes a informação do castigo que iria ser aplicado ao Sena e ambos, olhando-se nos olhos, concordaram de imediato com a pena.

No dia seguinte, seria o dia de pagamento aos soldados, o dia do pré. Seriam umas dez horas da manhã. Na minha presença junto à mesa de pagamentos estavam os dois litigantes. O Sargento Felisberto Ramos fazia o pagamento mensal, ia distribuindo a “matambira4 “,os escudos moçambicares pelos sodados GE e pelos soldados da Companhia.

Família de Pundanhar
Quando chegou a vez do arguido Sena receber, o Sargento pôs nas minhas mãos os setecentos escudos da soldada que lhe cabiam. Então para executar a pena acordada, dei desse montante quinhentos escudos ao “chifrado”, quedando os duzentos restantes para o “engatatão”.

Tínhamos executado justiça e tínhamos feito uma acção psicológica. Ficaram caras aquelas “quecas”, mais de metade da soldada daquele mês Eles pareciam estar felizes e o problema parecia estar sanado. Mas não, ainda não estava. Aquele novelo ainda estava enriçado, teria nós a desenlear.

Quando caía a tarde, ao passear-me pelo aldeamento, vi aqueles dois homens, cambaleando, de mão dada, abraçando-se gingando danças, vozeando cantigas chamando-se de irmãos e perdidos e bêbedos. Percebi que estava em falta este toque, este polimento final que só eles poderiam interpretar, só eles poderiam executar.

Agora sim, tudo estava completo. A nossa sentença quedou-se mais brunida, mais colorida, mais humanizada. ”Milando” resolvido.

Manuel Neves Silva- Ex Furriel Miliciano GE

Foto- Soldado Emílio do Grupo Especial 214 no aquartelamento de MUIDINE

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