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Livros da guerra colonial

Miandica terra do outro mundo


segunda-feira, 11 de julho de 2022

MANUEL NEVES SILVA -HISTÓRIAS DA GUERRA (7º EPISÓDIO)

 

INHOCA* - A COBRA (Zona de Pundanhar) Norte de Moçambique - Memórias da Guerra Colonial

Corria o mês de Outubro, mês do Ramadão de 1973 e do caju maduro. O Sol queimava o aldeamento enquanto a tarde descaía em direcção ao ansiado frescor da noite. Protegendo-me da canícula, eu estava junto à messe de sargentos, uma casa de lama com telhado de zinco e onde os furriéis da companhia aqui aquartelada algazarreavam o jogo da sueca na mesa do bar, onde as cartas jogadas se misturavam com as laurentinas vazias. Passeava o meu olhar pelo renque arbóreo que circundava a aldeia, quando vindo do lado das cubatas, e acompanhado de mais alguns soldados macuas em passos lestos, martelados, decididos na minha direcção e de olhares postos em mim surge o Cabo Amidjai. Recostei-me na parede de lama da messe, acabei a laurentina fresca, deixei cair das mãos a garrafa vazia e esperei pelo contacto eminente, tentando adivinhar em vão qual grave urgência estava para urgir. Aparece então a palavra do Amidjai (o Mata Cobra, assim mesmo chamado pelos seus pares, por se recusar a usar botas de lona usando sempre e apenas botas de cabedal, mais seguras no mato e a que chamava, botas mata-cobra):-

-Siliva, nosso pai, nós quer ir em Palma ao Ramadão. Ramadão que é nosso natal.

Este aldeamento -aquartelamento de Pundanhar era partilhado pelo meu Grupo (GE214),cujos soldados nativos viviam com suas mulheres e filhos em cubatas na zona civil e por uma Companhia de Caçadores integrada por soldados metropolitanos e nativos comandados por um capitão miliciano

Manifestado o desejo de celebrar o Ramadão em Palma, o grupo esperava a minha decisão, que a bem de todos e da acção psicológica (APSIC) , teria que ser sim, afirmativa.

E assim mesmo e ali ficou decidido, não sem antes consultar via rádio o Comandante Geral dos Grupos Especiais (GEs) em Porto Amélia, Capitão Pessoa de Amorim que achou uma boa ideia. Seria ao mesmo tempo uma missão de patrulha e reconhecimento ao longo da picada Pundanhar – Palma. Partiríamos ao fim da tarde do dia seguinte. A noite seria para andar e descansaríamos um pouco durante o dia para podermos esconder as agressões do sol por cima das copas das árvores

Pundanhar dista cerca de 50 km de Palma, no litoral. É terra natal da maioria dos meus soldados muçulmano macuas, uma terra bonita, arborizada de palmeiras e coqueiros, beijada de modo suave e terno pelas águas do Índico. Já por lá tinha passado uns meses atrás em trânsito desde o Dondo na Beira até este aldeamento, onde fui colocado no comando destes homens. Seduzia-me agora a ideia de repetir uns mergulhos naquela praia e saborear à noite o marisco que generosamente aparecia nestas águas.

O percurso feito a corta-mato evitando assim pisar tanto quanto possível a picada e as minas que os Frelos nela semeavam, foi aparecendo pontilhado de sombrosos cajueiros ostentado aqueles bonitos e madurados frutos, uma delícia que fui provando, não sem o aviso avisado daqueles homens:

- Bah Siliva, vai ficar grosso.

Ignorando-os assim fui caminhando, colhendo e comendo aquelas “peras” de caju frescas, coloridas, sumarentas e doces. Um maná a calhar naquele fim de dia húmido e quente. Á medida que a tarde crescia e as árvores iam estirando mais e mais a sua sombra para o outro lado do sol, comecei a sentir na minha cabeça a quentura quente das bebedeiras. Afinal aqueles frutos tinham o poder das laurentinas, essas cervejas bazucas acompanhantes de luxo naqueles momentos em que tentávamos esquecer aquele inferno onde tínhamos caído.

E foi assim neste bem-estar induzido, nesta abulia anímica de pensamentos entorpecidos, enquanto avançava connoso, olhos postos no além e de cabeça agradavelmente oca, que os meus sentidos repentinamente despertaram com o som nervoso e desencontrado de várias vozes:



- Inhoca!…inhoca!…inhoca!…inhoca , baah! inhoca.

.Eram vocalizações num tom de susto e aviso. Segui com o meu olhar, os olhares daqueles homens, focados naquele ponto do mato, sombreado pela copa de um largo cajueiro e vi aquilo que eles há muito tinham descortinado: uma cobra de largo diâmetro e bom comprimento, num movimento lento desembrulhando-se. Passada a surpresa inicial de medo e respeito com tal bicho, num gesto impensado afaguei a G3,enquanto dirigia o ponto de mira ao dorso do ofídio. Preparava-me para premir o gatilho, quando de pronto num gesto vigoroso e seguro vi uma mão negra desviar-me o cano da arma, e bem perto de meu ouvido a frase nervosa, conhecedora e avisada, de quem sabe:

Baah Siliva,se mata nhoca,mata nhoca,agora se não mata nhoca é uma porra.

Depois do seu gesto consumado e de ter largado para mim o tubo, o cabo macua Amidjai foi dizendo, agora num tom bem mais calmo:

Lagarta não faz mal, agora se ferir lagarta ou pisar nos ovos da lagarta é uma porra

A cobra mirou-me, mirou-nos, desenroscou-se por completo e sumiu em ondulações lentas, rastejadas para lá do trilho, desaparecendo confundindo-se com o matizado verde do capim.

Foi um encontro fugaz. Inhoca seguiu o seu caminho. Nós retomámos o nosso, agora com os sentidos mais apurados e as armas ainda mais nervosas, não tanto pelas cobras, sim para evitar qualquer surpresa urdida pelos Frelos e pelo cantar irritante das suas kalashnikov.

E agora o Siliva já conhece o efeito analgésico da “pêra” do cajueiro.

* -Inhoca, significa Cobra na linguagem Bantu-Suahili


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