INHOCA* - A COBRA (Zona de Pundanhar) Norte de Moçambique - Memórias da Guerra
Colonial
Corria o
mês de Outubro, mês do Ramadão de 1973 e do caju maduro. O Sol queimava o
aldeamento enquanto a tarde descaía em direcção ao ansiado frescor da noite.
Protegendo-me da canícula, eu estava junto à messe de sargentos, uma casa de
lama com telhado de zinco e onde os furriéis da companhia aqui aquartelada
algazarreavam o jogo da sueca na mesa do bar, onde as cartas jogadas se
misturavam com as laurentinas vazias. Passeava o meu olhar pelo renque arbóreo
que circundava a aldeia, quando vindo do lado das cubatas, e acompanhado de
mais alguns soldados macuas em passos lestos, martelados, decididos na minha
direcção e de olhares postos em mim surge o Cabo Amidjai. Recostei-me na parede
de lama da messe, acabei a laurentina fresca, deixei cair das mãos a garrafa
vazia e esperei pelo contacto eminente, tentando adivinhar em vão qual grave
urgência estava para urgir. Aparece então a palavra do Amidjai (o Mata Cobra,
assim mesmo chamado pelos seus pares, por se recusar a usar botas de lona
usando sempre e apenas botas de cabedal, mais seguras no mato e a que chamava,
botas mata-cobra):-
-Siliva,
nosso pai, nós quer ir em Palma ao Ramadão. Ramadão que é nosso natal.
Este
aldeamento -aquartelamento de Pundanhar era partilhado pelo meu Grupo
(GE214),cujos soldados nativos viviam com suas mulheres e filhos em cubatas na
zona civil e por uma Companhia de Caçadores integrada por soldados
metropolitanos e nativos comandados por um capitão miliciano
Manifestado o desejo de celebrar o Ramadão em Palma, o grupo esperava a minha decisão, que a bem de todos e da acção psicológica (APSIC) , teria que ser sim, afirmativa.
E assim
mesmo e ali ficou decidido, não sem antes consultar via rádio o Comandante
Geral dos Grupos Especiais (GEs) em Porto Amélia, Capitão Pessoa de Amorim que
achou uma boa ideia. Seria ao mesmo tempo uma missão de patrulha e
reconhecimento ao longo da picada Pundanhar – Palma. Partiríamos ao fim da
tarde do dia seguinte. A noite seria para andar e descansaríamos um pouco
durante o dia para podermos esconder as agressões do sol por cima das copas das
árvores
Pundanhar
dista cerca de 50 km de Palma, no litoral. É terra natal da maioria dos meus
soldados muçulmano macuas, uma terra bonita, arborizada de palmeiras e
coqueiros, beijada de modo suave e terno pelas águas do Índico. Já por lá tinha
passado uns meses atrás em trânsito desde o Dondo na Beira até este aldeamento,
onde fui colocado no comando destes homens. Seduzia-me agora a ideia de repetir
uns mergulhos naquela praia e saborear à noite o marisco que generosamente
aparecia nestas águas.
O
percurso feito a corta-mato evitando assim pisar tanto quanto possível a picada
e as minas que os Frelos nela semeavam, foi aparecendo pontilhado de sombrosos
cajueiros ostentado aqueles bonitos e madurados frutos, uma delícia que fui
provando, não sem o aviso avisado daqueles homens:
- Bah
Siliva, vai ficar grosso.
Ignorando-os
assim fui caminhando, colhendo e comendo aquelas “peras” de caju frescas,
coloridas, sumarentas e doces. Um maná a calhar naquele fim de dia húmido e
quente. Á medida que a tarde crescia e as árvores iam estirando mais e mais a
sua sombra para o outro lado do sol, comecei a sentir na minha cabeça a
quentura quente das bebedeiras. Afinal aqueles frutos tinham o poder das
laurentinas, essas cervejas bazucas acompanhantes de luxo naqueles momentos em
que tentávamos esquecer aquele inferno onde tínhamos caído.
E foi
assim neste bem-estar induzido, nesta abulia anímica de pensamentos
entorpecidos, enquanto avançava connoso, olhos postos no além e de cabeça
agradavelmente oca, que os meus sentidos repentinamente despertaram com o som
nervoso e desencontrado de várias vozes:
-
Inhoca!…inhoca!…inhoca!…inhoca , baah! inhoca.
.Eram vocalizações num tom de susto e aviso. Segui com o meu olhar, os olhares daqueles homens, focados naquele ponto do mato, sombreado pela copa de um largo cajueiro e vi aquilo que eles há muito tinham descortinado: uma cobra de largo diâmetro e bom comprimento, num movimento lento desembrulhando-se. Passada a surpresa inicial de medo e respeito com tal bicho, num gesto impensado afaguei a G3,enquanto dirigia o ponto de mira ao dorso do ofídio. Preparava-me para premir o gatilho, quando de pronto num gesto vigoroso e seguro vi uma mão negra desviar-me o cano da arma, e bem perto de meu ouvido a frase nervosa, conhecedora e avisada, de quem sabe:
Baah
Siliva,se mata nhoca,mata nhoca,agora se não mata nhoca é uma porra.
Depois
do seu gesto consumado e de ter largado para mim o tubo, o cabo macua Amidjai
foi dizendo, agora num tom bem mais calmo:
Lagarta
não faz mal, agora se ferir lagarta ou pisar nos ovos da lagarta é uma porra
A cobra
mirou-me, mirou-nos, desenroscou-se por completo e sumiu em ondulações lentas,
rastejadas para lá do trilho, desaparecendo confundindo-se com o matizado verde
do capim.
Foi um
encontro fugaz. Inhoca seguiu o seu caminho. Nós retomámos o nosso, agora com
os sentidos mais apurados e as armas ainda mais nervosas, não tanto pelas
cobras, sim para evitar qualquer surpresa urdida pelos Frelos e pelo cantar
irritante das suas kalashnikov.
E agora
o Siliva já conhece o efeito analgésico da “pêra” do cajueiro.
*
-Inhoca, significa Cobra na linguagem Bantu-Suahili
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