O ZÉ
NUNGO E O ASSALTO À BASE QUIDOLOLO (Zona de Nangade)-Moçambique-Guerra Colonial
Madrugada
do vigésimo terceiro dia de Dezembro de 1973. Estávamos em Nangade, no norte de
Moçambique um bonito planalto, miradouro sobre o rio Rovuma, com a Tanzânia lá
ao fundo. Daqui até á Base da Frelimo, Circulo de Quidololo, esperava-nos
talvez um dia de marcha a pé. Éramos dois grupos de trinta homens cada, o GE1
214 sediado aqui em Nangade comandado pelo Furriel Omar, o único negro que
conheci a comandar um Grupo Especial nesta guerra, e o meu GE 212 de Pundanhar.
O meu
Grupo tinha chegado aqui na véspera, ao cair da tarde, integrados numa coluna
logística militar na sua passagem por Pundanhar, o nosso aquartelamento.
Este
comboio de viaturas militares, vindo de Palma, bonita vila do Indico rumaria a
Nangade, passando por Pundanhar e Muidine, ficou descrito nos relatórios de
acção com o nome de código Repto21. Saíra no dia 18 e acabaria por gastar cinco
longos dias a chegar ao seu destino a oeste, lá mais para o interior.
Ao longo
deste perigoso trajecto foram topadas e desfeitas pelos grupos de picagem e
detecção de minas da 1ª Companhia do Batalhão de Caçadores 5013 também sediada
em Pundanhar, três minas anti carro. Quedou por detectar pelo menos uma
antipessoal, dessas que eram dirigidas a ceifar as pernas de quem as calcasse e
que afortunadamente para alguém acabaria por apenas destruir com estrondo o
pneu duma viatura.
Estas
colunas militares Palma-Pundanhar-Muidine-Nangade ao longo duma perigosa picada
paralela ao rio Rovuma, faziam-se amiudadas vezes, tinham o objetivo de
abastecer de víveres e munições chegados por mar a Palma, as tropas
aquarteladas no interior, em Pundanhar, Muidine e Nangade Eram acções de grande
perigo, pelas flagelações das frelas2 kalashes e pela quantidade de explosivo
trotil3 nas traiçoeiras minas camufladas no chão que tínhamos de pisar. Muitos
soldados encontraram aqui a morte e muitos mais aqui ficaram estropiados, ao
longo do tempo.
Em
Pundanhar, ouvi um soldado da Primeira Companhia do Batalhão 5013, cantar esta
angústia nos seus versos:
“Coluna
é picada, é Nangade em pensamento.
É a G34,
é a ração, é amargura e sofrimento.
Cada um
sofre p´ra si, se a noite cai na picada.
Ninguém
dorme, ninguém sonha, com medo da morteirada.
Coluna
já feita, é coisa que não se paga.
Já
ninguém pensa na mina, turra é coisa passada.”
Chegamos
inteiros, mas cansados, sujos, impregnados de pó e suor, uma segunda pele. Não
havia duche, não havia cama e assim a noite foi passada aqui dentro do
perímetro desta cidadela militar de Nangade, mal dormindo ou não dormindo,
cochilando, “espalmarrilhados” no chão, cada um sofrendo para si.
Às cinco
da manhã já descíamos o planalto dando cumprimento á desenhado Operação
Reformista 8, rumo à região de Quidololo.
A chuva
que a espaços começava a cair impregnava-nos até aos ossos, empapava-nos a
marcha, embarreava o matope, tornava penoso o caminhar.
Acompanhava-nos
uma mulher. Tinha sido capturada pela tropa naquela região numa parecida acção
anterior. e que contra a sua vontade, coagida, nos guiaria à localização da
Base dos turras. Levava tristeza e muito medo a manamuca5. Sabia que iriamos
atacar os seus, quiçá os seus familiares. Temia pela sua vida.
Eu
também carregava angústias, não sabia onde me ia enfiar, não sabia o que nos
esperava. O major, em Nangade quando nos entregou aquela guia, durante um
pequeno briefing disse-nos que havia notícia de terem estacionado naquela Base
centenas de guerrilheiros vindos da Tanzânia. As ordens dele era para entrarmos,
aniquilar o inimigo, destruir todas as palhotas, todas as instalações, todos os
meios de vida e apreender armamento, documentos e munições.
Não dava
tréguas a chuva, a marcha seguia empastelada ao longo do “alagoado” chão.
Alternavam-se à nossa passagem densos trechos de cerrada vegetação, com
luminosas e abertas clareiras de capim.
Quando a
tarde começou a crescer, densa, triste e chuvosa, parámos a marcha para trincar
a ração, ganhar alento, descansar, retemperar forças. As nossas fardas colavam-se
ao corpo, o chão estava enlameado. Grossa camada de matope6 forrava as nossas
botas. Descansar? Como? Recostei-me a uma árvore e tentei aplacar os cansaços
assim, de pé. A fadiga pôs-me sentado, enrolado na lama qual salamandra
escorregadia e húmida. Assaltavam-me pensamentos difusos, assaltavam-me todos
os receios, todas as incertezas e todos os medos deste mundo.
-Centenas
de guerrilheiros? Se nos enfiamos lá, apanham-nos á mão como coelhos, porra,
porra. Não. Eu não ia ledo, ia constrangido. Sentia-me um erro de casting neste
filme. -O que estou aqui a fazer? Esta guerra não é minha.
Apoiava-me
na aparente serenidade dos outros graduados do meu grupo, os Furriéis Balbino e
Coroa, que me inspiravam confiança e alguma segurança. O Coroa já fintara a morte
numa outra anterior operação, quando uma frela bala, foi embater no seu peito
justa e milagrosamente em cima de um carregador de munições que levava no bolso
da camisa.
Depois
de engolir as sardinhas da lata da ração embrulhadas num pão duro e beber a laurentina,
uma das poucas cervejas de lata que levava, levantei-me, pus a arma de
bandoleira ao ombro, descambada costas abaixo e ateava mais um cigarro, quando
o Amidjai, o cabo, que por feitos em anteriores e quejandas aventuras tinha
adquirido o apodo de “O Mata Cobra”, abeirou-se de mim gingando o corpo, e de
modo convicto, certeiro, decidido disse, apontando um monte à nossa frente:
-Ma
Furriel Siliva eu vai naquele morro e levo manamuca.
Era
óbvia a sua intenção e tive que travar aquela acção, aquele feminicidio que me
parecia eminente.
-Para
que queres fazer isso Mata Cobra? Pára aí. O que queres fazer à mulher?-
-Siliva
, eu vai com ela de mão dada, depois quando eu chega lá no monte o Siliva vai
ouvir um tiro e eu volta sozinho. Depois furieli escreve no relatório que
mulher fugiu e a gente não vai na operação, a gente volta para Pundanhar.
-Não
Amidjai, nós não vamos matar a mulher. Nós somos muitos, defender-nos-emos e
ninguém vai morrer. Vai correr tudo bem.
Retomámos
a marcha em direcção às posições dos frelos serpenteando receios, ansiedades. A
meio da tarde, vimos abrir-se um luminoso e quente sol que pôs as nossas roupas
a fumegar, secando-as quase completamente. Ficámos mais confortáveis dentro de
todo aquele desconforto e assim continuámos andando e andando, penetrando a
compacta mata.
Já ia
adiantada a noite, quando bem perto de nós ouvíamos o bulício da vida na
aldeia, pessoas que falavam, galinhas que cacarejavam. Havíamos entrado na
região de Nkonga, no indefinido Círculo de Quidololo, estávamos em cima do
objectivo. Aproximámo-nos ainda mais em passos fantasma, nervosos, silenciosos
e contidos.
 |
Furriel GE Omar |
-Aqui
-disse o Furriel Omar. --Vamos passar o resto da noite e atacaremos de madrugada
Era este
Furriel que comandava de facto toda esta acção. Era nativo da zona e conhecia o
terreno, falava a mesma língua dos “turras”. Era uma mais-valia para o
exército.
Ouvindo
o pulsar da aldeia, ali ficámos aninhados no chão, não dormindo, não sonhando,
esperando pela madrugada, quando os barulhos virassem silêncios e a aldeia
ficasse mais dormida.
Foram
horas de muita ansiedade, de muita tensão, de muitas angústias, de sofrimento.
Amanhã será a véspera de Natal e nós iríamos matar e ser mortos. Este
pensamento atormentava-me, “acagaçavam-me”, que nestas merdas, quem tem cú tem
medo.
O meu
relógio dizia as quatro horas da manhã, quando “sussurradamente” o Omar. disse:
-É
agora! Vamos entrar!
E foi
distribuindo ordens e secções de homens para atacar em frente, outras para
guardar os flancos e uma outra para mirar a retaguarda.
Avançando
céleres e abrindo cerrado fogo de G3, a secção da frente entrou. Gerou-se de
imediato uma grande confusão de gritos, de correrias, de fuga dos habitantes da
aldeia. Fomos flagelados com alguns tiros de kalashnikov. Assim íamos
irrompendo aldeia adentro, correndo, deitando, levantando, rebolando,
praguejando, ziguezagueando. O assalto estava a acontecer. Tinham cessado os
silvos dos projécteis “turras” das kalashnikov. Calaram-se as nossas G3.
Quando
entrei já tudo era fogo. As altas labaredas consumiam as palhotas, iluminavam
aquele cenário, feriam a minha sensibilidade. Era a guerra, assim vivida na
primeira pessoa, na minha pessoa. Aquele espaço estava vazio de gentes, todos
tinham fugido mata dentro.
Demorámos
nas buscas de armas, documentos, víveres, tudo o que fosse ou parecesse
importante, inspeccionando cubata por cubata enquanto tudo ardia.
Amanhecia,
o dia ia amadurecendo, o sol já queimava e a luz dava-nos agora outra imagem,
mais real, mais vívida desta Base da Frelimo.
A aldeia
era muito arborizada, sombreada, muito arrumada. Havia caminhos, azinhagas,
ruelas ajardinadas. Impressionou-me ver uma escola de lama com bancos
artesanais feitos de paus entrelaçados, vazia de crianças.
Continuámos
a vasculhar, a remexer todos os recantos na busca de mais troféus, quando de
repente começamos a ser “abonados” com granadas de morteiro. Ouvíamos o som dos
disparos e depois aquele silvar, cada vez mais agudo, aquele “dopler” dos
projécteis a rasgar o ar na nossa direcção. As morteiradas começaram a chover
estrepitosamente à nossa volta, abrindo crateras, projectando terra para cima
das nossas cabeças. Os gajos na fuga tinham levado os “tubos” e as munições e
agora eram eles que comandavam o macabro baile.
Alapados
ao chão, de armas aperradas e viradas para eles, esperávamos, Nada havia a
fazer naquele momento. Era ineficaz a G3 para varrer aquela distância. Eu
fumava cigarro após cigarro contra o enervamento, a incerteza e a espera. Eu
era o medo vestido de coragem. No meio da confusão apercebi-me que estava a ser
atingido por cápsulas de munições de G3. Ao meu lado, nervosamente o Cashisha
meu soldado maconde, dava ao gatilho com o cano apontado a eles, e a janela de
ejecção da sua arma cuspia os quentes invólucros açoitando-me a cara.
Agarrei-lhe o braço e gritei:
-O que
estás a fazer pá?
-Estou a
atirar neles.
- Neles?
Estás a vê-los?
-Não.
-Então,
pára essa merda.
E foi
neste momento que ouvimos ali na nossa frente as “kalashes” a cantar para nós.
Eles estavam perto, nas margens da floresta circundante e tentavam alvejar-nos.
Havia que agir. O coração queria saltar-me do peito, a adrenalina disparava, o
corpo transpirava, o tempo parava.
- Porra,
temos de atacar, temos de nos abrigar, temos de pirar-nos daqui - gritei.
Então na
minha esquerda vejo o Omar erguer-se e resolutamente correr na direcção deles,
rajadeando a mata, qual tango dos barbudos Todos o imitaram e cantavam agora as
G3 correndo na direcção do perigo, aos gritos de:
-Agarra
o gajo! Agarra o gajo!
As armas
kalash emudeceram. A nossa heróica corrida de contra ataque virou a nossa fuga.
Parámos meia hora depois, para nos organizarmos.
Tínhamos
provocado a morte de três pessoas daquela base, tínhamos queimado mais de meia
centena de cubatas. Tínhamos capturado duas mulheres, uma criança e um
guerrilheiro, uma espingarda Mauser e ainda uma espingarda artesanal, um
“canhangulo”.
Uma das
mulheres, a mais velha era avó da criança. Era triste ver a assustada criança
chorar nos braços da sua cocuana7 avó, a falta da sua progenitora, que quem
sabe, poderia ter ficado ferida ou talvez morta pelas nossas balas.
Verificámos
que no meu grupo havia um homem em falta. Era o Zé Nungo, maconde, duro e negro
como o ébano, soldado de trinta e tal anos, um dos poucos do Grupo que não
falava português.
Preparávamo-nos
para voltar atrás, a ir por ele, um contratempo mais a enfrentar, quando ao
fundo no meio do denso arvoredo aparece o Nungo de camisa esfarrapada, meio
desvestido, quase nu, de arma aperreada, assustado, grunhindo e gesticulando
sem parar.
Vinha
acossado o homem. Eu olhava-o, entendia os movimentos mas não decifrava aquele
“palrar bantu”. Percebi depois que tinha ficado preso na densa vegetação.
Perdido, tinha-se apercebido da aproximação dos “frelos” e temendo pela vida
rasgou a farda e fugiu atrás de nós, pisando a esteira que deixámos.
Acalmou-se
o Nungo e já ria da forçada aventura de feliz final, e da alegria de nos ter
reencontrado exibindo os seus afiados dentes, essa especificidade da cultura
maconde.
De
pronto retomámos a marcha. Era perigoso permanecer ali no meio do nada e sem
conhecer o terreno. Haveria mais dois dias de angustiante e perigosa caminhada
de retorno a casa, “maningue” caminho a percorrer.
Separaram-se
os Grupos para seguir em direcções opostas. O Omar seguiu para o interior rumo
a Nangade, nós virámos em direcção a Pundanhar lá mais para as bandas do
litoral Índico onde chegaríamos ao fim da manhã do terceiro dia, 25 de
Dezembro, Natal de 1973, depois de ter acontecido mais uma mal dormida, penosa
e chuvosa noite.
Connosco
trouxemos a avó e seu neto que acabariam integrados no povo de Pundanhar sob
controlo da tropa portuguesa.
Saberia
depois que no regresso a Nangade, o outro Grupo tinha sido perseguido e atacado
por cerca de seis guerrilheiros da Frelimo armados de bazucas, metralhadoras e
armas automáticas ferindo o Furriel Omar e um dos seus soldados.
Foi
assim a minha quadra do Natal de 1973. Quedam-me estas memórias difusas,
brumosas, amarelecidas pela sépia do tempo e já muito imbricadas em memórias de
tantas memórias na vertigem da passagem de tantos anos.
Referências:
Blogue-História do Batalhão de Caçadores 5013, Pág. 12.
Pundanhar-Muidine-Nangade. Anos 1973 e 1974
Notas:
1-GE-
Grupo Especial, composto por soldados indígenas
2.Frelas-
Relativo a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique)
3-Trotil-
Explosivo TNT(Trinitrotolueno)
4-G3-
Arma usada pelo exército português
5-
Manamuca -Mulher
6—Matope
-Barro, lama