domingo, 12 de novembro de 2017
Eu sou o António Manuel Gomes Lopes, (Pintinhas), nascido a 10 de Junho de 1948 na linda Cidade de Lourenço Marques, no mítico Hospital Miguel Bombarda.
Vivi até aos 12 anos no carismático, bairro da Malhangalene. Mais tarde, vou viver para o bairro clandestino do Aeroporto paredes meias com a cidade do caniço. Daí a minha aproximação aos pretos de Moçambique, que sempre estimei e fui retribuído.
Em 1958 os meus pais vieram de licença graciosa para Portugal, Figueira de Castelo Rodrigo, na Beira Alta, onde tomo conhecimento do que era Portugal desses tempos. Um exemplo que jamais esquecerei era o do "Barbas", colega de turma, que no inverno ia descalço e o Toninho Cigano apresentava umas botas que fazia inveja a um rei.
Fiz por cá a 4ª classe e a admissão aos Liceus. Regressei a Lourenço Marques e vou para o Ciclo Preparatório na época a funcionar na Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque. É aqui que nasce a minha alcunha de "Pintinhas", pela qual ainda hoje sou conhecido. Foi-me "dada" pelo professor de português, Pinto Martins, pessoa muito conhecida no âmbito escolar.
Ingresso na Escola Comercial Drº Azevedo e Silva, na qual tiro o Curso Geral de Comércio. Finalizado o Curso, vou trabalhar nos escritórios da Cooperativa de Criadores de Gado.
Passei como bom COCA-COLA uma infância normal e feliz.
Em 1969, vou cumprir o serviço militar obrigatório. Faço a recruta em Boane. Este Centro de Instrução era o local de incorporação dos mancebos da Província de Moçambique. Frequentei o Curso de Sargentos Milicianos (CSM).
Nesse ano começaram a ser formadas companhias de Comandos de Moçambicanos em Montepuez, e os Grupos Especiais (GE). Ambos na época só para voluntários.
Decidi pelos GE por uma questão simples. O Alferes e o Furriel que vieram a Boane recrutar pessoal para os GE tinham sido meus colegas na Escola Comercial.
Quando acabámos o Curso de GE já sabia que tinha como destino a Companhia de Caçadores de Mocímboa da Praia.
Fiz algumas operações com esta companhia enquadrada com os GE de Palma, até que sou chamado a formar o Grupo de Nangade, o 205.
Sou graduado em Alferes e durante 26 meses fui conhecido pelo Alferes Pintinhass.
Em Agosto de 1972, termino a minha comissão em Cabo Delgado.
Alferes "Pintinhas" |
Eram comandados por mim na vila rodesiana de Kayemba, 2 alferes e quatro praças moçambicanos todos de raça negra. A nós juntaram-se 23 rodesianos.
As reuniões de planeamento operacional eram efectuadas na cidade de Tete ou em Kyembe.
A 28 de Abril de 1974, a cooperação terminou, mas no entanto o grupo português ainda ficou por lá até Junho desse ano. Neste mês regresso a Lourenço Marques, à espera do que fariam da minha carreira militar.
Precisamente nessa época, sou convidado por dois portugueses radicados à longos anos em Lourenço Marques. Foram eles o Dr. Velez Grilo, que tinha sido meu médico pediatra e o Trajano da Mata, ambos muito amigos do meu pai. Foi a pedido deles que o meu pai me contactou para ter uma reunião com estes altos dirigentes de um partido, mais tarde vim a saber que era o FICO.
A primeira reunião, foi efectuada no restaurante do Aeroporto de LM, era um local que eu bem conhecia. Em caso de algo correr mal, eu estava em casa, pois vivi nove anos no bairro clandestino do Aeroporto. Paredes meias com a cidade do caniço. Por ter lá vivido convivi e fiz muitos amigos pretos e falo o seu dialecto.
A primeira reunião foi para os ouvir e ter a certeza, que o objectivo se coadunava com os meus princípio, mais ainda eu não poderia interferir directamente no assunto, pois ainda era militar.
Sucederam-se reuniões e numa esteve presente o sr. Rodolf Botha que era da CID, (Centro de Inteligência e Defesa), sul-africana, que mais tarde me abriu as portas da África do Sul.
Havia uma sintonia perfeita para a construção em Moçambique de uma sociedade multirracial que a FRELIMO, Samora Machel que, assim não entendia. Houve uma tentativa de acordo antes da assinatura dos Acordos de Lusaka de encetarmos uma conversação com a própria FRELIMO através de um amigo de infância e de estudos que passarei a tratá-lo por "M".
Na época já se sabia quem era ou não pró FRELIMO e este meu amigo que ainda o considero, apoiava a FRELIMO, mas não o radicalismo.
Três semanas depois, através dele tivemos como resposta um contundente, NÃO!
Sentimos-nos de mãos atadas e tomei a liberdade de falar com adidos militares de quatro países, que partilhavam as nossas ideias.. Mas, mesmo esses nada puderam prometer e muito menos fazer.
Gostaria que ficasse bem explicito que nas nossas conversas nunca se pediu armamento ou apoio militarizado. Queríamos apenas consensos. Eu e muitos outros moçambicanos brancos já íamos na terceira e quarta geração.
Alf. Alberto Chissano e ALf. Toni Pintinhas |
As conversações continuaram e já com partidos cujos líderes eram dissidentes da FRELIMO. Homens e mulheres bem conhecidos que tinham pertencido aos quadros da FRELIMO.
Tivemos uma reunião numa residência no Alto Maé, não sabíamos o que se estava a passar. Estávamos apavorados.
Esperávamos que por parte do Governo português, que não houvesse um lavar de mãos, um abandono, mas foi isso que aconteceu, com a assinatura do Acordo de Lusaka entre o governo português e a FRELIMO.
As promessas feitas pelo PCP e por Mário Soares à FRELIMO foram cumpridas. Com o Acordo, Portugal entregou Moçambique à FRELIMO e abandonou a população branca, para eles colonos.
No dia 6 de Setembro de 1974, sou procurado pelo Trajano, em casa dos meus sogros que moravam muito perto das antenas da Matola, contando-me o que se estava a passar em LM. A nossa bandeira estava a ser estropiada e davam-se vivas à FRELIMO e com ameaças à população branca.
Combinámos, não enfrentar os arruaceiros, porque não queríamos-nos colocar à sua imagem.
O interessante, é que os que estropiavam a nossa bandeira pela avenida da República, eram pessoas de uma família muito conhecida em Lourenço Marques, pelos seus dotes desportivos e passados dois anos foram corridos pela FRELIMO e foram viver para Portugal, que tanto ofenderam.
Foi uma noite sem dormir, houve uma enorme explosão nos paióis da Forças Armadas no bairro de Benfica. Pensei o pior. O Trajano telefona-me para casa dos meus sogros. Tínhamos combinado na reunião anterior que iríamos mais o Ferreira para as antenas do RCM na Matola,
Depois de muitas escaramuças, o povo, a 7 de Setembro de 1974, toma posse do Rádio Clube de Moçambique, já lá estávamos nas antenas para proteger a emissão do RCM.
Edifício das antenas do RCM, na MATOLA
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Uma pequena reunião com o Trajano estabelecemos logo as prioridades. Eu fiquei com a segurança.
Fecharam-se os portões, contra a vontade do povo, mas tinha que haver disciplina. Só entrava quem o Trajano e o Ferreira desse autorização, visto que eu não conhecia muitos dos indivíduos que colaboravam na causa, Tínhamos quatro pessoas da nossa confiança, que geriam a entrada e saídas.
O Trajano telefona ao Manuel (locutor), para que este através dos microfones do RCM convocasse para a Matola todos os GE (Grupos Especiais), pois o alferes "Pintinhas" os convocava.
Era uma manobra de diversão, os GE estavam no Norte. Apareceram três ex-furriéis, , a primeira coisa que me perguntaram foi: "armas", disse-lhes muito simplesmente que não havia armas porque não íamos fazer guerra.
Havia que vigiar as estradas que davam acesso às antenas. Para as que vinham de Lourenço Marques ou de Boane, pela estrada velha da Matola, não foi difícil a vigilância, visto que havia um restaurante perto da passagem de nível, falei com o proprietário, para estar atento a qualquer passagem de viaturas militares com destino à Matola nos informasse por telefone.
A vigia na nova estrada da Matola também foi fácil. Um funcionário da SOVIM, que tinha aderido ao movimento, entrou em contacto com um colega para este os informar se havia movimentações militares na estrada.
A estrada que ligava a Matola a Boane era a mais problemática. Não conhecia ninguém nessa zona. Sendo assim um dos meus homens parte para Boane, fala com uns cantineiros e tudo fica resolvido. Assim, o perímetro das antenas estava protegido e defendido.
Só faltava sabermos o que de importante se passava no Quartel General. no Esquadrão, e no BCAÇ18. Tínhamos que contactar com militares da incorporação moçambicana, entre os quais tínhamos muitos amigos. Para esse efeito, contactámos com alguns dos seus familiares e estes por sua vez pediram-lhes que se algo de anormal se passasse nas sua unidades que nos informassem.
Notícias vindas de LM, davam-nos conta que o RCM estava a abarrotar, o aeroporto tinha sido ocupado por ex-paraquedistas, da Cadeia da Machava tinham sido libertados os agentes da PIDE/DGS.
Estava convicto que até certo ponto tínhamos atingido o objectivo de tentar convencer o governo português que também éramos moçambicanos, não queríamos mais guerra, queríamos um Moçambique multiracial e unido.
No dia 8, ao raiar do sol começam a aparecer boatos de todas as formas e feitios por exemplo: a vinda de armamento proveniente da África do Sul, para nos armar. eu sabia que isso era impossível,pois nas conversas havidas meses antes entre nós e o BOSS, ficou claro que eles jamais deixariam passar armas para Moçambique.
O 8 de Setembro foi um dia de muito diálogo, via telefone, entre Rádio Clube de Moçambique em Lourenço Marques e as antenas na Matola do RCM, soube-se que a OPVDC, também se alia à causa. O comandante desta força, Tenente Coronel Vasconcellos Porto, era um pessoa sobejamente conhecida e de grande carácter. Privei com ele durante 2 anos em Nangade em Cabo Delgado.
Junto aos portões do edifício da antenas da Matola, era uma mole humana. As pessoas traziam comida, palavras de apreço e de confiança. Não sei porquê, o meu instinto de defesa em movimentações militares, dizia-me que íamos ter problemas, as chefias militares portuguesas já me tinham desiludido várias vezes.Sabendo eu que o MFA, apenas olhava para o seu "umbigo" e não queriam saber dos portugueses que nasceram, viveram e trabalhavam nas Províncias Ultramarinas.
Nangade 1971. General Kaúlza a passar revista aos novos GE, acompanhado pelo Alferes "Pintinhas" |
Pedi ao povo para se afastar dos portões e que não molestassem oral e fisicamente os militares.
Esperámos por eles mais de uma hora e nada. Recebemos um novo telefonema do restaurante, dizendo que eles tinham voltado para trás. Mas tarde, soubemos que a cerca de um Km das antenas o oficial mandou a viatura de regresso a LM, tinha recebido a informação do condutor da viatura, que o RCM informava que os GE`s estavam tinham montado segurança às antenas.
Hoje continuo a pensar que teria sido uma chacina pois os militares que seguiam na viatura eram soldados pretos de 2ª sem preparação militar. No, meio da multidão havia pessoas com armas de pequeno calibre.
Esperámos por eles mais de uma hora e nada. Recebemos um novo telefonema do restaurante, dizendo que eles tinham voltado para trás. Mas tarde, soubemos que a cerca de um Km das antenas o oficial mandou a viatura de regresso a LM, tinha recebido a informação do condutor da viatura, que o RCM informava que os GE`s estavam tinham montado segurança às antenas.
Texto retirado do livro de Ribeiro Cardoso e já publicado neste Blog
"O capitão Gardete dizia que bastava cortar o cabo que alimentava as antenas, acrescentando que para as silenciar não era preciso deitá-las abaixo -- e lá se organizou uma coluna com meia dúzia de viaturas militares de transporte cheia de soldados negros com capacetes de aço e armados de G3. Chefiada por um capitão cujo nome não recordo, e integrando dois ou três oficiais, entre os quais o capitão Gardete e eu próprio que nunca me vira em tais preparos e apertos, lá chegámos à Matola, onde tínhamos à nossa espera centenas de brancos armados de caçadeiras, algumas de canos cerrados, apontados na nossa direcção.
O comandante da nossa coluna (Hoje Major-General das FAP, Ribeiro Cardoso) falou com o chefe da multidão de brancos que diziam que estavam a defender as antenas e que não obedeciam a nenhum militar. Assim, ala que se faz tarde, regressámos com o rabo entre as pernas ao QG, como teria acontecido numa digna guerra de Solnado.
A explicação foi a de sempre: não fazer correr sangue. Para além, claro, de entre nós não haver um único atirador ou especialista em combate"...
Hoje continuo a pensar que teria sido uma chacina pois os militares que seguiam na viatura eram soldados pretos de 2ª sem preparação militar. No, meio da multidão havia pessoas com armas de pequeno calibre.
As horas iam passando, dramáticas, não sabíamos o que se passava e o que no esperava. Recebíamos alguma informação via telefone do RCM em LM, ou de populares que chegavam à Matola e nos informavam dos acontecimentos junto ao RCM. Neste caso e devido à minha experiência não podia acreditar em tudo. O boato é o pior dos inimigos.
O Início do descalabro
Dia 9 de Setembro, já desgastados, a palavra dormir não existia no nosso vocabulário, o cérebro já não trabalhava na sua plenitude.
Cerca das 20 horas, alguém junto ao portão diz-nos que a tropa da Escola de Administração Militar de Boane (EAMB), vinha em direcção à Matola. Em 3 viaturas civis e fomos para a ponte da Matola. Para nosso espanto, a ponte tinha sido tomada por populares brancos, pretos e enfim de todas as raças, que apoiavam o nosso movimento. Percebi então, que as coisas iam dar para o torto. A noite estava fria e boa parte dos homens usavam gabardines, onde escondiam caçadeiras. Era difícil controlar, ainda pensei que estava a sonhar, mas não, era a verdade nua e crua. Começo a ver a coluna militar e aquela multidão, enfrenta a coluna militar.
Alguém fala com o comandante e entre gritos e sei lá que mais. O comandante teve a consciência do que poderia advir, ou consultou via rádio os seu superiores e deu ordem de regresso a Boane,
Já amanhecia quando voltámos ao parque das antenas, onde nos esperavam outras notícia. O movimento começava a radicalizar-se. Pede-se com veemência "ARMAS", Estava a enveredar por um caminho pelo qual eu temia.
O comando no RCM em LM, ordenou-nos que fossemos ao Lingamo, perto do porto de mercadorias, onde havia um armazém com armamento do exército português, que tinha chegado antes do 25 de Abril.
Duas viaturas com sete homens, com experiência de guerra e uma mulher, que nunca mais a vi e não tive oportunidade de lhe dizer: GRANDE MULHER, e nem sei se era amiga de alguém que integrava aquele grupo.
Chegados ao Lingamo, procurámos em vários armazéns o armamento, mas em vão, nada encontrámos.
Dirigimos-nos para o RCM, no trajecto não vimos viva alma, uma calmaria absoluta, o que para mim era um mau presságio.
Chegados ao RCM estávamos informados para entrarmos pelas traseiras do mesmo pois a aglomeração de populares em frente ao edifício do RCM não nos permitia chegar às portas.
À porta, um homem com cerca de 50 anos, entrega à nossa companheira de aventura, uma esferográfica de metal, daquelas de quatro cores, que estava transformada em arma de tiro. Jamais me esquecerei deste gesto. Entrámos e surpresa total, era uma desorganização completa, toda a gente dava ordens, ninguém se entendia.
A reunião entre os nossos representantes e os do governo português foi um rotundo fracasso,. Havia que ter a cabeça fresca e não fazer disparates. Encontro o Daniel Roxo que o conhecia desde as reuniões em Tete. Um abraço sentido e uma troca de palavras ao ouvido. "Isto foi um fracasso", vamos dispersar. Eu e os meus três companheiros de "luta", fomos para o carro e um deles desafia-nos para passar pela Mafalala, visto que tínhamos ouvidoque "ELES" se estavam a organizar.
Foi assim que os três combinámos que entraríamos na Mafalala pela Caldas Xavier e o condutor esperaria por nós junto à Praça de touros.
Atravessámos a cidade do caniço e não houve hostilidades, como estávamos perto fizemos outro périplo, fomos ao bairro do Aeroporto aonde viviam os meus pais e onde cresci. Chegados ao Bairro junto ao Clube, estavam alguns residente e entre eles o meu pai. Estava tudo calmo mas, havia apreensão. O meu pai chamou-me à parte e disse-me: O Malangatana veio cá a casa para te avisar que eles estão a organizar-se. Respirei fundo, contei aos meus companheiros o que o meu pai me disse e decidi pedir-lhes para irem comigo até à Vulcano, onde morava o meu amigo "M", companheiro de infância e de estudos. Entre o Bairro do Aeroporto e a Vulcano, junto à linha de caminhos de ferro já pressentimos alguma insegurança, os negros olhavam-nos ameaçadoramente, não por nos conhecerem mas sim por sermos brancos.
Bati à porta do "M", veio logo e mandou-no entrar, ficando apenas o dono do carro junto a este. Então, o "M", detalhadamente avisou-nos que "Eles" estavam a organizar-se com a anuência do Governo português, seria melhor, para não haver sangue, retirarmos-nos ou então deixar Moçambique. Ele foi muito contundente: "Pintinhas" vocês perderam, como amigo quero-te vivo, mas foge.
Abraçamos-nos, agradeci e voltamos para a Matola. Ao chegarmos às antenas, já não havia por ali população, o Trajano disse-nos: que apenas esperara por nós, para abandonarmos. De lágrimas nos olhos, percorri os 2Kms que distavam das antenas à casa do meu sogro. O meu castelo desmoronava-se, mas não dei parte de fraco.
Ao chegar junto dos meus familiares, vi que estavam todos apreensivos, tinham notícias dos ataques à população branca na área. Decidimos ir todos para a minha casa em Lourenço Marques, perto da casa mortuária do Hospital Miguel Bombarda.
Em casa fiquei como prisioneiro, os meus familiares tinham medo que eu cometesse alguma loucura. Não ouvia rádio, e não podia contactar os meus pais, pois não havia telefone
A FUGA
Dormia há 24 horas, quando a minha me veio chamar para me dizer que o meu pai estava na nossa casa e queria com urgência falar comigo. Fui para debaixo do chuveiro, deixei a água cair para relaxar, pois a vinda do meu pai não agoirava nada de bom. Vesti-me, jamais o esqueço, uns calções e uma camisa grená que eu adorava.
Cumprimentos de circunstância, eu ainda vivia um sonho, o meu pai dá uma desculpa à minha mulher e aos meus sogros, dizendo-lhes que o meu tio e padrinho estava doente e que eu devia ie vê-lo. Vi logo que havia problemas, os meus pais moravam no Aeroporto e, para ele ali estar é que algo de grave se passava. Tentei disfarçar o mais possível, dei um beijo a cada um, peguei no meu filho que tinha 11 meses, dei-lhe um aconchego muito grande, pô-lo no colo da mãe, afaguei-lhe a cabeça e saí de casa sem olhar para trás. A minha sogra, com a perspicácia que lhe era reconhecida, vira-se para a filha e diz: "o teu marido vai fugir", a minha mulher responde: que isso era impossível..
Instalados no carro do meu pai, iniciámos uma viagem sem regresso e sem eu saber para onde.
No trajecto, meu pai, conta-me que a Av. de Angola, estava a ferro e forro, que passara uma coluna supervisionada pela tropa. Um magote de ditos apoiantes da FRELIMO tinham atacado a esposa do sr. Mota que era camionista e vivia no Bairro do aeroporto, tendo-a violado, vindo-se a saber posteriormente que a senhora ficara paraplégica
Lourenço Marques, 10 de Setembro de 1974. O FIM. A debandadada |
Ao chegarmos ao local, o meu pai disse-me: é um VW que te vem buscar, quando chegares ao outro lado da fronteira, os sul-africanos deixam-te telefonar para minha casa, para instruíres como é que a tua mulher e o teu filho iam ter contigo (a minha mulher estava grávida de 3 meses). Esperei cerca de meia hora, a mais longa da minha vida, finalmente aparece o dito VW, com quatro pessoas que eu não conhecia de lado nenhum. Mandaram-me entrar e sentei-me no banco traseiro, no meio de dois indivíduos um pouco mais velhos que eu. Calados, seguimos em direcção a Ressano Garcia. Ao chegarmos a Boane, havia uma fila de automóveis, esperei pelo pior, visto que os militares estavam a revistar os carros e quando chegou a nossa vez, um alferes perguntou ao nosso condutor para onde íamos, não ouvi a resposta visto que para me disfarçar fingi que estava a assoar e olhava em volta, os militares eram pretos, com camuflados novos, o que queria dizer eram recrutas. O alferes mandou-me tirar as mãos da cara, olhou para mim, reconheceu-me. Tínhamos estudado na Escola Comercial, embora sendo mais novo o que eu. Disse: Siga...sigam. Aliviados, fomos até Ressano Garcia, apenas se ouvia o motor do VW, Quatro a cinco Kms antes antes da fronteira o condutor parou o carro e disse: entrem no mato, percorram cerca de 1 Km que alguém estará à vossa espera. Não houve despedidas, calados, seguimos as instruções, nem tínhamos andado 10 minutos, apareceram dois homens, um português e um sul-africano, disseram-nos para os seguir e passámos um arame farpado, fomos entregues à polícia sul-africana. Fui conduzido a um jeep, os outros ficaram com a polícia. Nunca soube quem eram os meus companheiros de fuga. Aproveito para lhes dar um abraço.
Metido no jeep, perguntaram-se se eu era o António Manuel Gomes Lopes "Pintinhas", disse que sim mas não tinha documentos, responderam que não era importante.
Fui com eles até ao campo de refugiados de Komatiport, que ocupava um campo de Rugby. Levaram-me para um escritório improvisado e aí percebi que eles eram da CID (Polícia de Defesa Sul-Africana) e que já tinham o meu perfil.
Pediram-me apenas, para ser tradutor em alguns casos ao qual eu anuí tendo-lhes perguntado qual a situação da minha mulher e do meu filho, tendo respondido: estamos a tratar disso.
Eram quase 8 horas da noite.
A chegada e estadia na África do Sul
À chegada ao acampamento, entregaram-me um colchão, uma manta, umas calças e uma camisa. As pessoas iam-se acomodando como podiam debaixo das bancadas, tentando dormir ou descansar. Eu, ia mudando de sítio, queria ficar só e pensar no que tinha feito e o que me iria acontecer. Pensava na minha mulher e no meu filho, o que será deles. Essa noite, passei-a a revisitar os últimos acontecimentos da minha vida.
Estudantes Universitários de Lourenço Marque, 1974. |
Fiquei parvo com o que ouvia, muitos universitários, tinham aderido à FRELIMO, não sei se por medo se por conveniência. Muitos jovens da minha idade e meus amigos fizeram o mesmo. Houve quem relatasse que a morgue do Hospital estava pejada de cadáveres, muitos eram brancos e alguns tinham graxa preta no rosto.
Foi desolador e preocupante ouvir aqueles relatos, a minha família estava em LM e, eu não sabia nada deles. Tomei por verdade o que ouvia mas, coloquei algumas reticências. Mais tarde a polícia sul-africana tudo me confirmou.
No dia seguinte dirigi-me ao Oficial da Polícia, já não do dia anterior. Apresentei-me e com muita simpatia informou-me que "vamos tratar do seu assunto". Sabemos que tem família na África do Sul, respondi que sim mas, bem longe em Bloenfontein. Tem aqui o telefone ligue para a sua família para encontrarmos a via mais fácil de a sua mulher e seu filho se reunirem consigo. Telefonei ao meu pai, este como sempre, queria-nos era a salvo e bem. Como era muito perigoso não poderia ir à Matola dar o meu recado aos meus sogros. Fiquei de telefonar novamente para vermos o que de melhor poderíamos fazer. O novo contacto foi para o meu sogro e este prontificou-se a levar a filha e o neto à fronteira de Ressano Garcia . Apenas tinha que saber aonde os deixar pois não possuíam passaporte. Expliquei tudo à Pilícia Sul-Africana e de imediato estes delinearam um plano. Enviaram alguém com o nome de código"OSCAR" , todo vestido de azul e ficava à espera a cerca de 2 Kms da fronteira. Sabendo que era o meu sogro que os transportava, comuniquei à polícia que os meus familiares vinham num Ford Escort vermelho com uma determinada matrícula.
Foram horas de desespero, cerca das 3 da tarde, foi-me dito que deveria ir ao portão central, pois alguém queria falar comigo. Foi um momento de tensão que jamais esquecerei visto que não imaginava o que iria encontrar. Levei algum tempo a fazer o percurso, várias pessoas acercavam-se de mim e perguntavam-me o que é que lhes ia acontecer, o que tinham que fazer. Fui-lhes dizendo que as autoridades sul-africanas não nos iriam abandonar, para acreditarem neles, visto que eles nos ajudariam em tudo o que nós precisássemos.
Chegado ao portão perguntei ao polícia por quem me procurava, apontaram para um homem, era um conterrâneo dos meus pais que tinha sido contratado pelos meus familiares de Bloenfontein que estava pronto para me ajudar a sair daquele campo. Ficámos em conversa pondo-me ele ao corrente do que se estava a passar em Moçambique.A conversa prosseguia e por volta da 5 da tarde, vejo um jeep a cruzar o portão com várias pessoas, olho com curiosidade, e vejo a minha mulher e o meu filho. Foi uma comoção inexplicável. Tínhamos que sair dali foi o meu primeiro pensamento. Falei com o conterrâneo dos meus pais se ele podia assinar a papelada e ficasse responsável pela minha saída, pedido que de imediato aceitou. Não queria que os meus familiares vissem a angústia das pessoas que estavam no Campo de Refugiados.
Os quatro, dirigimos-nos ao improvisado escritório do oficial da polícia sul-africana, contei-lhe os meus propósitos e rapidamente assinou os papéis para sairmos do campo (nós não tínhamos qualquer documento). Deram-nos um "PERMIT" temporário, de 3 meses, o nosso amigo levou-nos à estação de comboios de Komartipor, pagou-nos os bilhetes até Bloemfontein. Foram cerca de 24 horas de viagem, não queria pensar mais no que tinha deixado para trás, ia para longe, fora do rebuliço de Johnnesburg que me seria desfavorável. Ficou para trás uma carreira militar, uma deserção, mas bem longe de governos VERMELHOS.
Fui bem aceite pela pequena comunidade portuguesa de Bloenfontein, o patriarca dessa comunidade o já falecido sr. Avelino, foi um homem chave na minha adaptação, à minha nova vida. O meu familiar, arranjou-me de imediato emprego, era algo que eu nunca tinha feito ou estudado. Trabalhava em ar condicionados, agarrei-me de alma e coração, trabalhei e estudei muito mas venci. Apenas um problema, estive três anos sem documentos. A minha mulher, e o outro meu filho, já nascido na África do Sul, já estavam completamente legalizados. A mimo consulado português, levou três anos a dar-me o B.I, a minha sorte é que a polícia de Segurança sul africana (CID), sabia muito bem da minha situação e foi-me dando periodicamente, autorização de residência.
Custaram-me muito estes três anos, não podia fazer planos futuros. Quando o consulado me entregou o B.I e já com a residência permanente, a empresa para a qual trabalhava transferiu-me para Johannesburg. Uma nova etapa na minha vida.
Jamais esquecerei a ajuda que a CID, me prestou em todos os aspectos. No nascimento do meu segundo filho, fomos apoiados a nível de saúde e sem termos de pagar um cêntimo..
CHEGADA A JOHANNESBURG
Finalmente em Johannesburg, outra vida social. Grande parte dos meus amigos de Lourenço Marques, já lá estavam a viver. A comunidade portuguesa na cidade, era enorme e estava bem organizada. Respirava-se melhor. Voltei a sorrir, esqueci grande parte das minhas angustias relacionadas com o 7 de Setembro. Já pouco se falava no assunto, comecei a ir ver jogos de Hockey, futebol, Basquete e até havia o Malhanga. Estava em casa.
Não queria terminar este depoimento, sem divulgar algo que ainda hoje para mim é um mistério.
Em 1984, encontro ocasionalmente, o Trajano da Mata, que alegria, ambos pensávamos que o pior tinha acontecido às nossas vidas.
Todas as 3ª no final da tarde, frequentava um café onde comprava o jornal Português editado na capital do Rand, mais o jornal ABola, visto que ficava a caminho de casa. O dono do café era natural da Beira e aproveitava para conversar um pouco antes de regressar a casa.
É numa dessas terças-feira que encontro o Trajano, que também era cliente assíduo desse café. Foi o primeiro encontro de muitos que fazemos questão de ter durante muito tempo. Interessante nunca falamos do passado, o passado ficou enterrado, conversávamos sobre a política portuguesa, da sul-africana, por vezes o Beirense entre as nossas conversas e o atendimento de um cliente, dava o seu palpite. O café ficava próximo de uma mina e como tal havia muitos pretos moçambicanos que se iam abastecer ao café que também vendia géneros alimentícios, excepto bebidas alcoólicas e seguiam as suas vidas.
Porém, certo dia um mineiro, aproximou-de nós e em bom português disse que gostaria de falar connosco, fora do café, olhámos para ele com curiosidade e anuímos.
De facto o homem era mineiro, encapotado, perguntou-nos se o podíamos ajudar, visto que o povo moçambicano estava a sofrer com a DITADURA de Samora Machel. Havia uma facção militar que não estava contente e que dentro de poucos dias chegaria a Johannesburg, um coronel, que necessitava de ajuda médica e queria entrar em contacto com o governo sul-africano. Ficámos parvos, nem queríamos acreditar no que estávamos a ouvir. Combinámos encontrarmo-nos no mesmo café dois dias depois.
O Trajano continuava a ter ligações com Pretória e ficámos de conversar no dia seguinte. A minha adrenalina começa a mexer, tinha prometido à minha família que não me metia em mais complicações.
No dia seguinte, o Trajano diz-me que tinha um contacto em Pretória e que estava pronto a conversar com o Coronel moçambicano.
Informámos o "mineiro" e este ficou de nos avisar da data que o oficial da FRELIMO chegaria. E, assim foi. Ao cair da tarde desse dia, eu e Trajano, e o "mineiro", fomos para o Hotel onde o Coronel estava hospedado. Quando subimos ao seu quarto o oficial estava a trocar o seu camuflado por roupaà civil. Feitas as apresentações, seguimos de imediato para Pretória. aqui chegado fomos ao encontro de um sul-africano. Feitas as apresentações eu e o Trajano afastámos-nos, para os dois conversarem à vontade.
Nunca soubemos o que falaram e francamente nunca me interessou. De regresso a Johannesburg, deixámos o Coronel no seu Hotel e o "mineiro" perto do café.
Vim para Portugal em Agosto de 1986, em Outubro desse ano, Samora Machel, morre num "acidente" aéreo. Este "acidente" ainda hoje tem muitos contornos especulativos. Para mim, o "acidente" teve as "mãos" do tal Coronel e das autoridades sul-africanas. Sem provas em contrário, até a CIA (USA) tem essa precessão.
Foi o virar de página da História de Moçambique.
Fim
Tambem estive nessas manifestacoes do principio ao fim
ResponderEliminarVidas que atravessaram revoluções...
ResponderEliminarSugiro que leia o livro "Quimeras Negras" do Jean Larteguy acerca de um período muito idêntico na altura da independência do Congo.
Abraço
Orlando
Conheci o Alberto Chissano em Lisboa no INE onde fomos colegas em 1968/69. Ele regressou a Moçambique para cumprir o serviço militar e eu fui para Moçambique em 1972-1974, como alferes da C. Caç 3500, Distrito de Tete. Será possível ter o contacto do Alberto Chissano?
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