6 -“ EU “MATA” ELE” (Zona de Pundanhar) Norte de Moçambique
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Um soldado do Grupo Especial (GE) 214 |
Mal tínhamos acabado de chegar de um patrulhamento no
mato, junto da fronteira tanzaniana. Tinham sido três dias de andanças,
cansaços e muito stress. Preparava-me para relaxar, tomar um banho maconde, um
banho de balde. Seriam quatro horas da tarde.
-O que se passa, Chipanda, qual é o milando?. Não
chateia mozungo1* pá! -Tentei acalmá-lo. Ele não desarmou, bateu o pé,
acercou-se ainda mais:
-Quando a gente foi no mato o soldado da companhia
dormiu com minha mulher. Ele fez milando, não devia dormir com ela .
“Os meus soldados GE habitavam com as suas famílias no
aldeamento de Pundanhar junto ao aquartelamento da 1ª Companhia do Bcaç 5013.
Esta companhia era formada por soldados brancos idos de Portugal, a Metrópole e
também por soldados de recrutamento local maioritariamente de etnia
“Quisena”.ou Sena
Foi-me dizendo que um soldado “Sena”, tinha feito
companhia à sua mulher durante as noites em que estivemos ausentes na patrulha
e olhando-me nos olhos rematou: -Agora “Siliva “que é nosso pai, tem de
resolver nosso milando2.
“Nosso pai” era um vocativo que eles usavam, sempre
que se dirigiam a mim. Era uma forma de demonstrar respeito e estima. Fui-me
habituando a este bordão na fala deles.
-Já falaste com a tua mulher?-Perguntei.
-Minha mulher, não tem nada a ver. Ele é que não devia
ter “feito máquina3” com ela.
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Mulher de Pundanhar |
Chamámos à nossa presença os dois, o “corno” Macua4 e
o “gigolo” Quisena. Perguntámos a este se teria mesmo “feito máquina” com a
mulher daquele. E sim era um facto consumado.
-Sim - disse - “Eu dormi com manamuca5, nos dias
quando marido esteve na patrulha, no mato”. Não havia dúvida, estávamos perante
um busílis de dura “queratina, crescente, inchante”, um abcesso de chifres que
urgia resolver, remover sob pena de maiores males.
Demos-lhes a informação do castigo que iria ser
aplicado ao Sena e ambos, olhando-se nos olhos, concordaram de imediato com a
pena.
No dia seguinte, seria o dia de pagamento aos
soldados, o dia do pré. Seriam umas dez horas da manhã. Na minha presença junto
à mesa de pagamentos estavam os dois litigantes. O Sargento Felisberto Ramos
fazia o pagamento mensal, ia distribuindo a “matambira4 “,os escudos
moçambicares pelos sodados GE e pelos soldados da Companhia.
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Família de Pundanhar |
Tínhamos executado justiça e tínhamos feito uma acção
psicológica. Ficaram caras aquelas “quecas”, mais de metade da soldada daquele
mês Eles pareciam estar felizes e o problema parecia estar sanado. Mas não,
ainda não estava. Aquele novelo ainda estava enriçado, teria nós a desenlear.
Quando caía a tarde, ao passear-me pelo aldeamento, vi
aqueles dois homens, cambaleando, de mão dada, abraçando-se gingando danças,
vozeando cantigas chamando-se de irmãos e perdidos e bêbedos. Percebi que
estava em falta este toque, este polimento final que só eles poderiam
interpretar, só eles poderiam executar.
Agora sim, tudo estava completo. A nossa sentença
quedou-se mais brunida, mais colorida, mais humanizada. ”Milando” resolvido.
Manuel Neves Silva- Ex Furriel Miliciano GE
Foto- Soldado Emílio do Grupo Especial 214 no aquartelamento de MUIDINE