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Livros da guerra colonial

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segunda-feira, 1 de novembro de 2021

AS FERIDAS ABERTAS

   TEXTO DE GLÓRIA DE SOUSA

PUBLICADO EM 31 DE AGOSTO DE 2013

Entre 1974 e o início da década de 1980, milhares de pessoas - entre elas prostitutas, dissidentes políticos e Testemunhas de Jeová - foram forçadas a ir para campos de reeducação. A maior parte não voltou.
Os anos da  história de Moçambique independente foram um período conturbado. Ainda antes da independência de Moçambique (1975) o governo marxista da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) sentia a necessidade de eliminar os comportamentos e costumes associados ao colonialismo português e ao sistema capitalista, criar uma nova mentalidade e uma sociedade socialista.
Pelo que ainda em 1974, Armando Guebuza, actual chefe de Estado e na época ministro da Administração Interna do governo de transição, anunciou a criação de campos ou centros de reeducação. Este tipo de programa foi característica de outros regimes totalitários socialistas, como o da antiga União Soviética ou da China, por exemplo.
O plano inicial era reeducar, nas zonas rurais, as prostitutas das grandes cidades. Na época, o ministro Guebuza estimou que existiam 75 mil prostitutas só na capital (embora,  presumivelmente, mulheres que viviam sozinhas e mães solteiras), como reporta um artigo do jornal português "A Capital" de 1974.
O alvo das rusgas alargou-se depressa. Além de prostitutas, milhares de outras pessoas como dissidentes políticos,suspeitos de ligação ao poder colonial português, alcoólicos, autoridades tradicionais (como régulos, curandeiros) e Testemunhas de Jeová (um grupo cristão que recusa, entre outros, o serviço militar obrigatório) que foram apanhados nas ruas das principais cidades de Moçambique, em particular em Maputo, Beira e Inhambane, segundo relatos em jornais internacionais.


Cerca de 10 mil reeducandos em 1980

Os detidos eram, normalmente, encaminhados para os postos de polícia e, sem qualquer comunicação à família e sem decisão de um tribunal, eram transportados para centros de reeducação, sobretudo no norte do país. Era como um castigo.
Através do trabalho forçado na agricultura, ou machamba, como habitualmente se diz em moçambique, as pessoas deveriam ser reeducadas e, nesse processo,aprender os princípios do marxismo-leninismo.
Apesar de não haver  dados oficiais, estima-se que, em 1980, cerca de 10.000 pessoas estariam concentrados em 12 centros de reeducação. O número viria a crescer nos anos seguintes - segundo estudos do historiador e antropólogo Omar Ribeiro Thomaz, da Universidade Estadual de Campinas, no Brasil.
Em Novembro de 1975 foi anunciada a detenção de 3.000 pessoas em rusgas efectuada nas cinco principais cidades do país, segundo o jornal tanzaniano Daily News. E em 1982 foi anunciada a suspensão de mais 500 funcionários públicos e a necessidade de enviá-los para a reeducação


O mais terrível

Alguns dos centros de reeducação ocuparam as instalações de antigas bases militares. Estavam em locais remotos, distantes das comunidades, de difícil acesso.conta-se que os fugitivos, quando não eram apanhados pelos guardas, acabavam por serem denunciados pelos camponeses da região ou devorados por feras.
A maior parte dos centros de reeducação localizava-se na província noroeste do Niassa, a maior e menos habitada do país.
Os centros de reeducação ficavam em zonas de mato denso, longe das comunidades

O centro de Metelele, no Niassa, para onde foram enviados vários inimigos políticos da FRELIMO, é considerado o mais terrível . Segundo o livro "Uriaa Simango - um homem, uma causa" de Bernabé  Lucas Ncomo, dos 1.800 prisioneiros que lá entraram, desde 1975, menos de 100 saíram com vida , até 1983.
Em Metelele ou nas imediações terão morrido, por exemplo, Uria Simango e Joana Simeão, personalidades ligadas à fundação da FRLIMO, que viriam a ser acusados de traição.
Mural em Lichinga (Vila Cabral)

"Lavar a cabeça" de ideias colonialistas

Natural da Beira, Félix Bingala, hoje com 57 anos, veio para a província por força da reeducação. Conta que foi integrado no programa em 1975, depois da visita à cidade da Beira do então ministro da Administração Interna, Armando Guebuza . O ministro acusou muitos jovens de serem defensores do colonialismo português.
Na altura com  19 anos, a Félix Bingala trabalha numa loja na Beira quando foi apanhado numa rusga: "carregaram-me". Entrei no machimbombo, fui à 5ª esquadra. Dali mandaram-me para o Grande Hotel. Logo de manhã, apareceram muitos machimbombos, carros, e carregaram-me para Sakuze, na Gorongosa.
Atravessei o rio Sakuze. Fomos para o mato. Disseram-nos aqui têm que construir cidade,, trazer as vossas mulheres para aqui, para tirar as ideias do tempo colonial, para nos "lavar a cabeça". E ficámos. 
Era muita gente, toda a raça estava acumulada ali: moçambicanos, mista, portuguesa, havia uma mistura de pessoas em Sakuze, recorda.
Desde esse momento, há 38 anos atrás, Félix Bingala rompeu irremediavelmente ligação com o o passado: desde que estou aqui não tenho possibilidade de contactar com a família, A minha família até pode dizer: ele já morreu e eu  ainda estou vivo", recorda.


RENAMO recrutou homens da reeducação.

O centro de reeducação de Sakuze, para onde Félix foi enviado, em 1975, localizava-se na Serra da Gorongosa na província centralk de Sofala. Durante a guerra civil (entre 1976 e 1992), a região foi um bastião da RENAMO, Resistência Ncional Moçambicana.
Foi lá onde o principal partido da oposição começou a recrutar homens para as suas fileiras, retirando-os do domínio da FRELIMO. "A RENAMO estava a aproveitar estes homens, que já estavam preparados" militarmente, diz Félix Bingala que nunca foi apanhado nas investidas,
Para escapar às rusgas da RENAMO, a FRELIMO transferiu os reeducandos. Depois da Sakuze, Félix  Bingala foi para outro centro, em Panda, na província de Inhambane, onde, todavia a RENAMO conseguiu recrutar mais homens. Pelo que em 1978, Félix foi novamente transferiso pata Majancaze, província de Gaza, onde,  conta, também andaram homens da RENAMO.
Um ano mais tarde, Félix Bingala foi encaminhado finalmente para o centro de reeducação de Msawize, no mato denso de do distrito de Sanga, na província do Niassa.


Obedecer para sobreviver na reeducação

Olhando para trás, Félix recorda com amargura os centros de reeducação : muitos moçambicanos perderam a vida, ao serem comidos por leões, ao fugiirem.
A região da Gorongosa é até aos dias de hoje uma importante base da RENAMO

Quanto ao quotidiano, o ex-reeducando lembra: "de dia de trabalho, pegar a enxada para a machamba, ir à pesca, fazer cestas (quem soubesse). comida para a gente comer. Mas a comida  não chegava para tudo e vinha da província para lá. Houve dificuldades mesmo. Se alguém saisse um pouco, a população iria amarrar. Nós éramos chamados presos, éramos amarrados, bem esticados. Tinha que se cortar cabelo "assim" , usar saco, para se saber quem é fugitivo. Até havia uma cova grande. Se você praticou alguma coisa, você desce com a escada até lá, fica ali, "caga ali, mija" de manhã tira, comida vem, recebe e come. Essa era a punição.
André Ernesto Embalato, natural de Gaza, passou também por centros de reeducação. Trabalhava numa pastelaria em Maputo, quando em 1975 foi apanhado pela polícia sem documentos de identificação.
Esteve igualmente em Sakuze antes de ser transferido até ao Niassa.
A vida é ser mandado, de ser batido de qualquer maneira. Quem não obedecia à ordem era batido.
"Quando tocava o apito , devia-se correr, se fosse quando estivesse a comer devia deixar-se a comida e receber ordem. Se não receber ordem tem porrada , acontecia assim", diz André Ernesto Embalato

Na reeducação as pessoas regeneravam-se ou perdiam a vida

O centro de Msawize durou pouco tempo mais desde que Félix Bingala chegou, em 1979. Por ordem do governo,começou a trabalhar na empresa agrícola do Unango, no mesmo distrito de Sanga.  A empresa estatal recebeu forte apoio da Alemnha Oriental comunista. Depois entrou em falência e Félix Bingala começou a trabalhar na horta, vendeu os seus produtos até conseguir dinheiro para pagar a viagem para Lichinga, a capital provincial do Niassa. Em 1984 encontrou apoio na organização Caritas, ligada à Igreja Católica, onde trabalha até hoje como guarda.






Entretanto, o programa de reeducação tinha terminado. Face à pressão da  opinião pública internacional, o Presidente Samora Machel ordenou inquéritos confidenciais sobre as condições de vida nos campos, em finais de 1981, que acabariam por conduzir à suspensão do "processo reeducativo"
Na época Joaquim Chissano ocupava a pasta do Ministério dos Negócios Estrangeiros e viria a suceder na Presidência da República, após a morte de Samora Machel, num acidente aviação em 1986.
Chissano elogia ainda o processo de reeducativo, como disse numa entrevista, em 2012, à DW  África: "Foi pena que nós não (continuássemos) a ter campos de reeducação. Porque não eram campos de tortura, eram realmente de reeducação. A pessoa regenerava-se. Nós criámos campos para pessoas criminosas, pessoas que  tinham roubado  ou até tinham assassinado. E eram reabilitados. Era um lugar onde as pessoas faziam a sua agricultura, tinham o seu rendimento, refaziam a sua vida, tinham alfabetização, aprendiam ofícios"


Ainda bem que terminou

Contudo, opinião diferente tem tanto quem passou pelos centros de reeducação como quem acompanhou o fim do programa do governo.
Uma activista moçambicana, que pediu anonimato, viveu de perto, no Niassa, o fim do processo reeducativo assim como do programa que se seguiu, a Operação Produção (de trabalhos forçados).
Segundo a activista "falar abertamente nesse assunto é um pouco difícil, porque é considerada uma questão política e também foi um projecto menos sucedido que trouxe a perda de muitos cidadãos, (...)
Houve feridas abertas, famílias separadas, pais e filhos, muitos perderam a vida. Não foi bem sucedido esse plano. Ainda bem que terminou, porque hoje em dia não vem ninguém para o Niassa para ser reeducado"































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