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Livros da guerra colonial

Miandica terra do outro mundo


segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

SETE e DEZ

Base da Frelimo Micuinha a arder
Aquele dia estava prestes a findar. Para nós.
O sol inclemente que durante toda a jornada nos tinha
castigado começava a dar tréguas.
O maldito saco que trazia às costas parecia pesar toneladas e
fazia que o casaco camuflado se colasse às costas ensopadas de
suor e poeira.
Com os olhos embaciados e molhados pelas gotas de
transpiração que qual nascentes desciam pela testa até aos olhos,
boca e pescoço para finalmente desaguarem no meu alagado peito,
olhei para o imenso mar de capim ondulante que nos rodeava.
Naquela época do ano o capim estava já amarelecido o que
me fez lembrar imensas searas de trigo maduro.
As poucas e raquíticas árvores que se mantinham de pé
pareciam fantasmas com grandes braços acenando para aquele
punhado de homens que indiferentes nem tinham vontade de
retribuir tal saudação.
Mais á frente a alguma distância dali descortinei algumas
árvores, estas com folhagem verde pelo que imaginei haver por ali
algum resquício de regato.
E havia.
Deparámos com o leito de um pequeno ribeiro onde restavam
uns pequenos charcos de água. Pela quantidade e variedade das
pegadas existentes à volta daquelas poças, muitos animais
certamente disputavam aquele precioso líquido. As árvores
formavam uma abóbada de verdura e frescura e após conferenciar
com os outros graduados resolvemos passar ali a noite.
O dia tinha sido bastante cansativo. Tínhamos sofrido alguns
esporádicos ataques e flagelações á distância e certamente
estaríamos a ser seguidos. Por isso todos estávamos tensos e a
noite seria boa companheira para aliviar tensões.
A segurança foi organizada e depois de me certificar que
estavam todos bem, finalmente sentei-me.
Era tempo de jantar….
À minha volta os companheiros tagarelavam animadamente
como era habitual enquanto se desenvencilhavam das tampas das
latas de conserva. Alguns trocavam entre si vários tipos de ementas
Jantar! Há quanto tempo era a mesma ementa? Porra. Que
saudades da galinha de churrasco das cantinas ….
Abri o saco, revolvi as várias latas que me restavam e fui
lendo os rótulos que eu já conhecia há muitos, muitos meses.
Algumas conservas eram compradas á África do Sul, e logicamente
vinham em inglês….”Corned beef”…. “Stew vegetable beef”….

Estou farto destes enlatados ... mas tenho que os comer
Estava farto daqueles enlatados. Farto e enjoado, diga-se.
Encontrei uma carcaça, rija como corno e lentamente fui
trincando pequenos pedaços do pão. Para ajudar ia bebendo
pequenos goles de água. Sempre ajudava a ensopar.
Enquanto mastigava olhei para aquele grupo disperso. A boa
disposição tinha voltado passado que foi a dureza da jornada. Ao
olhar para aquelas caras tisnadas pelo sol de muitos meses, as
barbas de vários dias por rapar, dei comigo a pensar, “Que é feito
daqueles rapazinhos que um dia nos reunimos em Penafiel para
constituir a Companhia?”
Desses rapazinhos, nada restava. Passaram a homens de
uma forma cruel. Já nada restava da juventude perdida. Perdida
naquelas matas do norte de Moçambique. Recordei um dia em que
o Dias, um rapaz que estava a passar por grandes dificuldades
psicológicas me olhou fixamente e perguntou: - “ Furriel… és
casado?” – Respondi não. – “Tens namorada?” – Voltei a
responder, não.
Continuou a olhar, abanou negativamente com a cabeça e
disse, - “ Estás velho! Depois desta merda, já não vais encontrar
ninguém que te queira… “
A alguns metros de mim, o Ruben Chongo, um dos africanos
do meu grupo tinha tirado do saco todas as latas que lhe restavam.
E reparei que eram todas de salsicha. O rapaz olhava para elas
com um ar desiludido. Lembrei-me que a sua religião proibia o
consumo de carne de porco. E as salsichas eram de …. Carne de
porco!
Interroguei-o com um aceno de cabeça como quem diz, “ que
se passa pá?”. Encolheu os ombros, resignado. Ele nos dias
anteriores foi comendo as de carne de vaca e restavam-lhe as
“proibidas” pela religião.
Dei-lhe as que tinha.
Acabei a “refeição” bebendo uma lata de leite com chocolate.
Para acabar mesmo em beleza, chupei um dos grãos de café
que vinham numa pequena embalagem na caixa da ração de
combate.
Verdade!
Cada unidade de ração trazia os dois grãos de café. Um para
o almoço, outro para o jantar. Ah! Além do papel higiénico….
A noite já era uma realidade.
Sentia-me cansado. Não me apetecia falar. O Alves, perto de
mim, ainda tentou conversar, mas não estava com disposição.
Olhei para o relógio. Marcava seis e meia.
Os meus pensamentos naquele momento voaram para muitos
milhares de quilómetros dali.
Lá longe, na Metrópole, como se dizia, as pessoas
começavam a regressar a suas casas. Daí a pouco seriam horas de
jantar e nas cidades e aldeias os pais iam chegar a casa e abraçar
as mulheres e os filhos.
E nós ali, perdidos algures no meio do Niassa, longe de casa,
da família, dos amigos, sei lá, longe de tudo!
E novamente me senti cansado.
Aconcheguei a velha manta em redor do corpo e aspirei
profundamente. Chegou-me às narinas um odor azedo de
transpiração. Já nem me lembrava há quanto tempo não tomava um
banho. Água só para beber. E pouca.
Com a esperança que tivessem passado várias horas
consultei novamente o relógio. Eram sete horas e dez minutos.
-“Sete e dez! Bolas… nunca mais passa a noite. “ – Pensei.
Tentei adormecer e fechei os olhos.
Mas naquele momento tudo se transformou á minha volta.
Vinda não sei de onde a metralha começou a fazer-se ouvir. Á
nossa volta as “costureirinhas” rugiam. Percebia também o
matraquear de metralhadoras pesadas.
O inferno estava a cair sobre nós. Os longos riscos das balas
tracejantes passavam por cima de nós e perdiam-se para lá das
árvores.
- Ninguém faça fogo! – Gritei
Não podíamos dar a conhecer a nossa posição.
A meu lado, o Alves segredou-me com o ar mais natural deste
mundo,
- Furriel, não sei das minhas botas!
- Vai-te foder ó Alves! Para que queres agora as botas? Diz!
.- Queres ir atrás deles agora? Aguenta-te como estás.
A metralha continuava e aquele gajo preocupado com as
botas….
O matraquear das armas parou tão de repente como tinha
começado. Agora só o silêncio nos rodeava. Até os sapos e outros
animais nocturnos se tinham calado. Pudera!
- Alguém está ferido? – Perguntei.
Não. Estavam todos bem. Felizmente os gajos não sabiam
onde estávamos e fizeram tiro ao acaso.
Aos poucos as conversas recomeçaram.
- Os filhos da puta, não têm sono…. – Dizia o Alves
- Foi para ver se nós respondíamos á fogachada – dizia o
“professor” – D´asse! Aqueles riscos das balas até me puseram o
cabelo em pé. Nunca nos tinham visitado de noite… filhos da mãe –
concluiu o rapaz.
Virei-me para o Alves.
- Já tens a merda das botas?
- Já estão calçadinhas…. Estava a sentir-me tão bem. Filhos
da puta!
Estava tudo a voltar ao normal.
Foi então que o “professor” me chamou
- O que é agora, caralho?
- Parece que temos ali ao fundo uma fogueira….
- Uma fogueira?
Levantei-me e olhei na direcção indicada.
Com efeito o capim estava a arder.
-Porra! Para que querem eles uma fogueira? – Fui dizendo
para os meus companheiros.


De súbito do outro lado do improvisado acampamento alguém
gritou que havia fogo.
Olhei á minha volta e observei melhor. Com efeito,à nossa
volta o capim estava todo a arder. Já se ouviam os estalidos das
canas a arder como se fossem tiros muito fraquinhos
- Ai os filhos da puta… querem-nos queimar. Agora, furriel é
que estamos fornicados de verdade – comentava o Alves.
A intensidade do fogo aumentava e a ligeira aragem trazia até
nós o cheiro característico de erva queimada.
O vento não era muito forte e isso estava a nosso favor. Por
enquanto. Ainda estávamos a algumas centenas de metros das
chamas, mas a verdade é que vinham mesmo na nossa direcção. E
se chegassem até nós, então sim. Estávamos mesmo fornicados. O
pequeno riacho não nos dava grande protecção porque o capim
seco era abundante.
Opiniões não faltavam. A certeza que eu naquele momento
tinha era que estávamos verdadeiramente tramados.
Foi então que o Alves me gritou:
- Furriel, tenho uma ideia!
Pensei logo, “Vai sair merda….” Aquele Alves tinha por vezes
umas tiradas que nem ao diabo lembravam.
- Que raio de ideia é a tua, ó Alves?
- Uma vez lá minha aldeia vi os bombeiros atacarem um
incêndio com outro incêndio… Não me lembra como eles diziam
mas que o fizeram, eu vi.
Então lembrei-me.
A ideia do rapaz era fazer o que se chama “contra-fogo”.
O tempo era escasso e tínhamos que avançar com a ideia.
Eu e alguns voluntários fomos rastejando até o mais próximo
possível das chamas, lançámos fogo ao capim em vários locais e
retirámo-nos novamente a rastejar.
Rezei para que os deuses que dominam o fogo estivessem do
nosso lado.
Observámos as chamas que nós tínhamos ateado a
aproximarem-se das outras e quando as labaredas se juntaram
houve um ruído surdo. As chamas entrelaçaram-se, subiram mais
alto na noite escura e para nosso espanto e alívio foram diminuindo
de intensidade, lentamente, muito lentamente até se extinguirem
totalmente.
O Alves tinha sido nessa noite o nosso deus do fogo.
Foi abraçado por todos
-Bom trabalho, Alves, disse-lhe eu com uma pequena
palmada nas costas.
-Pessoal, vamos dormir. Amanhã cheira-me que vai ser um
dia muito mais quente. E tu, Alves, faz favor de não te descalçares.

Nota: “costureirinha” – termo utilizado pelos combatentes para designarem os tiros
provenientes das automáticas Kalashnikov, arma de origem soviética.

Dedicado a todos os que viveram este acontecimento na noite de 23 de Setembro de 1971

TEXTO e FOTOS de:

Samuel Peixoto
Furriel Miliciano da CART. 2785











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