Em 1974, O Exército criou uma Comissão de Verdade para investigar os crimes da PIDE/DGS em Moçambique. Recolheu milhares de provas de violações dos direitos humanos e inquiriu centenas de pessoas. Mas os trabalhos foram subitamente encerrados e a documentação remetida para Lisboa. Há mais de 30 anos que estava perdida em 12 caixas na Torres do Tombo. O PÚBLICO revela-a agora pela primeira vez numa investigação que durou meio ano e que será publicada em sete artigos.
Investigação
Os crimes da PIDE/DGS em Moçambique.1964-1974 (I) Depois do 25 de Abril, as tropas em Moçambique criaram uma Comissão para investigar os crimes da polícia política. Os trabalhos destes militares eram desconhecidos até hoje e estavam há mais de 30 anos guardados na Torres do Tombo. O P2 dá início a uma série de textos que revelam pela primeira vez as provas da violência discricionária contra civis.
Um arquivista deambula pelos corredores do último piso da Torre do Tombo, em Lisboa, observando com atenção as caixas que guardam a documentação produzida pela PIDE/DGS – três quilómetros e meio de um arquivo que ali chegou em 1991 e que ainda não foi integralmente inventariado e descrito. Fá-lo por curiosidade, nos poucos tempos livres que tem como chefe da Divisão de Comunicação e Acesso, nas pausas de um vaivém diário entre as salas de leitura e de referência e os diversos depósitos. Todos os investigadores que frequentam a casa conhecem Paulo Tremoceiro.
Em finais do ano passado, numa das suas voltas pelo sexto piso, atentou numa caixa com o número 48 e retirou-a da estante. No seu interior estava um volume pobremente encadernado com duas folhas de cartão grosso que envolviam cerca de mil folhas, presas em dois furos e uma corda de sisal. No frontispício alguém escrevera a caneta azul e com sublinhados “Região Militar de Moçambique. Sector’C’. Comissão de Apuramento de Responsabilidades do Pessoal da ex-DGS. Auto de corpo de delito por homicídio. Arguidos: Todo o pessoal de investigação desde o ano de 1964 a 1973 e ainda os directores da ex-DGS.
Era um achado intrigante. Do arquivo da polícia política em Moçambique quase nada chegara a Lisboa depois das ordens de destruição do mesmo, decretadas pouco depois do 25 de Abril por autoridades militares e por alguns dirigentes da PIDE.
Salvaram.se apenas sete pastas com alguns processos-crime e cadernos de notas apreendidos a elementos independendistas, provenientes das filiais em Nampula, Beira e Vila Cabral (actual Lichinga). De qualquer forma, a inscrição a caneta parecia indicar que se tratavam de documentos militares, adensando-se o enigma, e Paulo nunca lera qualquer menção a esta “Comissão de Apuramento” nos papéis da PIDE. Decidiu abrir o volume.
PIDE em Moçambique
As provas da violência e do terror
A primeira página era uma
folha azul de 25 linhas, dactilografada e dirigida ao “Gabinete do Movimento
das Forças Armadas (MFA)junto do Comando-Chefe da RMM|Região Militar de
Moçambique|”, datada de 6 de Junho de 1974 e assinada por um motorista chamado
Alfredo Fontes Nivavela. O texto tomava a forma de uma participação judiciária
feita no quartel em Nampula, a cidade mais importante do norte moçambicano, e
tinha como instrutor um alferes miliciano, Luis Filipe Sacramento, e como
escrivão o cabo Francisco Torres Nivavela, residente no Bairro do Matadouro,
procurava o paradeiro do seu tio Paqueleque, desaparecido desde o dia em que
fora detido por dois agentes da PIDE/DGS, em Outubro de 1966. No segundo fólio,
repetia-se a metodologia: os mesmos militares registavam a 4 de Juno o pedido
do cozinheiro Gabriel Mussa, que pretendia saber em que circunstâncias morrera
o seu tio Pampião Piteira, morto nas celas da PIDE naquela cidade, em data
incerta.
Seguiam-se 235 folhas
de depoimentos mais ou menos semelhantes, que assumiam o formato de actos
processuais: autos de notícia, autos de queixa, participações e denúncias. Os
depoentes não eram apenas familiares que procuravam saber o que acontecera aos
seus pais, irmãos, filhos e outros parentes após a detenção dos mesmos pela
PIDE – na grande maioria, eram antigos reclusos da PIDE que contaram aos
militares as torturas e os tratamentos desumanos e criminosos a que foram
sujeitos nos interrogatórios e nas secções prisionais da polícia. Falaram e
mostraram como os seus corpos ostentavam as marcas vitalícias dessa violência.
Os restantes fólios
desse volume consistiam em cópias de comunicações entre as subdelegações e a
delegação da polícia na capital, Maputo (então Lourenço Marques), sobre a morte
sem causa registada de civis nos calabouços da PIDE e nos hospitais locais,
entre 1964 e 1974; e ainda originais dos registos quinzenais de detenções,
folhas A3 quadriculadas com as identidades dos presos, datas de entrada e de
libertação e frequência da distribuição de alimentos, papeis manuscritos sobre
refeições fornecidas e compra de géneros e bens alimentares – ou seja, uma
parcela do arquivo que se julgava perdido para sempre.
O que esta caixa nº 48
indiciava era que após a Revolução de Abril as Forças Armadas (FA) presentes em
Moçambique tinham constituído uma Comissão de Verdade para investigar os crimes
e as violações de direitos humanos cometidos pela PIDE na colónia, inquirindo
vítimas e testemunhas.
Mas quando Paulo
Tremoceiro partilhou a sua perplexidade com o P2, em finais de 2024, as suspeitas
sobre esta documentação não previam o que se encontrou nos últimos seis meses:
em mais 11 caixas estavam as provas documentais, e até agora nunca reveladas,
das atrocidades praticadas pela PIDE contra a população civil moçambicana.
Verificar “possíveis crimes e abusos graves”
No quartel de Vila
Cabral, perto do lago Niassa, a notícia de uma revolução na “metrópole” chegou
através de uma rádio sul-africana. Os militares ali instalados estavam
“isolados do mundo”, diz hoje o juíz-conselheiro jubilado do Supremo Tribunal
de Justiça, António Ferreira Girão, então alferes miliciano. “Foi uma bagunça”,
recorda, “os gritos eram ’viva a peluda’ e não ‘viva a liberdade’ porque na
gíria militar a ‘peluda’ era sair da tropa”.
A quase mil quilómetros
dali, em Nampula, o então major pára-quedista Nuno Mira Vaz, que chegara a
Moçambique precisamente um ano antes, a 25 de Abril de 1973, oriundo de missões
na Guiné e em Angola, apresentava-se como um dos militares do Movimento das
Forças Armadas (MFA), sendo destacado para o grupo que deveria
“responsabilizar-se” pelos elementos da PIDE/DGS. Mais a norte, em Montepuez,
pequena cidade que tinha pouco mais do que um entreposto algodoeiro,
propriedade de um colono abastado, António Ribeiro Carioca percebeu depressa
que tinha de ali permanecer a cumprir o serviço militar, mas ainda não podia
suspeitar que o Verão dos seus 22 anos iria ser passado a registar provas
incriminatórias contra funcionários da polícia política portuguesa.
Muitos membros do grupo
de oficiais que registou e documentou a repressão policial da PIDE já morreram;
outros recusaram falar. Estes três homens (que nunca se conheceram) aceitaram
falar com o P2. O conselheiro Ferreira Girão e o coronel Mira Vaz não têm
memórias muito vividas da inquirições, talvez porque tenham abandonado
abruptamente estes trabalhos: o para-quedista, Mira Vaz, saiu de Nampula a 4 de
Julho para chefiar um batalhão em Nacala: e Ferreira Girão, que então era já
magistrado do Ministério Público, regressou a Portugal a 4 de Agosto, Ribeiro
Carlota, hoje com 78 anos, engenheiro electrotécnico reformado, foi o único que
passou os meses de Junho, Julho e Agosto de 1974 a ouvir civis, quase todos das
etnias macua e maconde, originários da província de Cabo Delgado. “Quando
acordávamos e íamos à janela espreitar, já havia muita gente que estava à
espera para ser ouvida. Era impressionante”, lembra. Muitas destas pessoas
viajavam de lugares remotos, a pé, caminhando “desde a véspera”.
Em Vila Cabral, Nampula
e Montepuez, como também em Quelimane, Beira, Tete ou Maputo, instalados em
quartéis ou nos antigos da PIDE (como a “Vila Algarve”, delegação na capital),
dezenas de militares começaram em finais de Maio de 1974 a trabalhar
exclusivamente na “Comissão de apuramento de responsabilidade criminais de
elementos da ex-DGS” ou “Comissão de Saneamento e Investigação”).
A data dos primeiros
autos de queixas é 28 de Maio, feitos em Nampula. No dia anterior, 27, um
telegrama do comando-chefe na colónia informava Lisboa de que todos os setores
militares tinham sido incumbidos de verificar os “possíveis crimes e abusos
graves” exercidos por pides e que as inquirições seriam feitas por grupos de
três oficiais, que, nas suas áreas, poderiam instaurar processos-crime e
“controlar” os funcionários da polícia. Isto significava, segundo se comprova
na documentação, que os militares ficavam responsáveis pela instrução
preparatória dos processos, actuando como investigadores criminais. Não podiam
punir judicialmente, mas tinham poder para arquivar autos, manter sob prisão ou
libertar pides, ordenar diligências, fazer interrogatórios e recorrer aos
arquivos policiais e prisionais. Redigiam sumários de culpa pelos crimes de
homicídio ou ofensas corporais (praticamente ops únicos considerados) e
recomendavam a entrega da matéria probatória aos tribunais militares.
Aparentemente, essas provas nunca foram entregues às instâncias judiciais.
Serviços paralisados, fugas e poucas detenções
Em Moçambique, as
decisões sobre o destino a dar ao pessoal da PIDE, após a Revolução foram
titubeantes e pautadas por retrocessos e dúvidas. Logo em Abril, os serviços
desta polícia paralisaram, a delegação em Maputo e as subdelegações e postos em
todo o país foram tomadas e ocupadas pelo Exército, confiscou-se armamento e
munições e tomou-se o controlo das centrais de comunicações e do centro de
instrução dos Flechas, a força paramilitar da PIDE/DGS que tinha quartel a 12
quilómetros de Vila Pery (actual Chimóio). No decreto-lei que ditava a extinção
da PIDE, aprovado pela Junta de Salvação Nacional a 25 de Abril, lia-se que os
funcionários destacados no Ultramar poderiam ser transferidos para os serviços
de informações militares caso estivessem ilibados de responsabilidades
criminais. Em Abril e Maio, porém, era ainda muito cedo para se apurar, de
facto, sobre as atrocidades perpetradas pela PIDE contra a população civil,
sobretudo desde 1964, ano da eclosão da guerra em Moçambique.
A iniciativa de
incorporar pides no universo castrense foi pouco consensual no seio do MFA. Em
Vila Pery, o Movimento entendia que o trabalho desta polícia não tinha
“qualquer interesse” para a Polícia de Informação Militar (PIM), sublinhando
que isso era verificável em colaborações e relatórios “antecedentes”. “Na minha
perspectiva”, diz hoje Nuno Mira Vaz, elemento do MFA em Nampula, “não eram
essenciais à tropa. Digamos que não havia consideração recíproca”.
Em Lisboa, o assunto
não causava menos embaraços. Em meados de Junho, Costa Gomes, chefe do
Estado-Maior do Exército, perguntou a Almeida Santos, ministro da Coordenação
Interterritorial ( a nova designação do Ministério do Ultramar), se o
saneamento integral integral dos quadros da polícia política também se aplicava
às colónias, notando desde logo que muitos pides estavam já a trabalhar nos
organismos militares.
Em Abril de 1974, o
quadro da PIDE em Moçambique seria talvez composto por cerca de 600
funcionários (não há números rigorosos, sabendo-se que em 1971 os números
rondavam as duas mil pessoas nesta colónia, em Angola e na Guiné). Tinha uma
delegação em Lourenço Marques (onde estava a direcção-geral, chefiada por
António Fernandes Vaz de 1960 a 1972, e depois por Fernando Pereira de Castro
até Abril de 74); mais de uma dezena de subdelegações, sobretudo no Norte, onde
estava o epicentro da guerra, e inúmeros postos de fronteira e de vigilância.
“Tinha ainda sob a sua tutela um grande número de prisões: Machava e
Sommerchild, na capital, Fortaleza do Ibo, Ponta Mahone, o campo de trabalhos
forçados de Mabalane, calabouços em Quelimane, Beira, Nampula, Tete, João Belo
ou Vila Junqueiro e celas em postos da administração colonial. Estava
dispersapor todo o território e não existia qualquer controlo sobre a sua
actuação.
Poucos dias após a
Revolução, os Democratas de Moçambique, uma organização criada ainda no período
colonial, começaram a exortar publicamente a população a apresentar queixas
formais contra a PIDE. Disponibilizaram-se para recolher denúncias manuscritas
e distribuíram folhas pré-impressas que poderiam ser preenchidas por vítimas e
familiares. Sabemos agora que uma grande parte desta documentação foi
recuperada pelos instrutores militares da Comissão e incluída nos
processos-crime como matéria probatória. No cabeçalho dos impressos lia-se a
frase “Investigação dos crimes contra a humanidade e contra a economia” – não
era a primeira vez que a PIDE era acusada de violações dos direitos humanos e
delitos contra bens públicos e privados, mas desta vez, com o derrube da
ditadura e da ocupação colonial, talvez fosse feita justiça, acreditavam os Democratas.
Temendo o
recrudescimento da ira popular e de actos de justiça nas ruas, o Exército
começou a deslocar pides para outras zonas, proibindo a sua saída do país.
Porém, um número incontável conseguiu fugir para a Rodésia (actual Zimbabwe) e
para a África do Sul; outros, poucos, foram surpreendidos por ordens de prisão,
como irem para a Machava, de maneira que você como está à vontade com eles tem
de os reunir para serem presos. “Mas como? ’Olhe, uma sugestão: diga que vais
fazer uma palestra’. “ E foi o que aconteceu. “Lá os reuni e nisto sinto à
volta do edifício, parecia um filme daqueles de guerra, as botas cardadas e as
armas apertadas para prender 30 homens,”
Num telegrama datado de
24 de Maio, o comando militar em Moçambique informou Lisboa que estavam detidos
38 pides (12 inspectores, 3 chefes de brigada e 23 agentes). Mas no mês
seguinte tudo mudou, ainda que temporariamente.
Destruir os arquivos para evitar
“incidentes internacionais”
A 8 de Junho, num plano
rodeado do maior secretismo e delineado pelas Forças Armadas (FA) em Moçambique
em conjunto com o Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA), depois de
“ponderados todos os riscos”, foi desencadeada a Operação Zebra,
destinada a deter a quase totalidade dos quadros da direcção e investigação da
PIDE/DGS- exceptuaram-se as agentes femininas e os elementos que tinham entrado
em funções depois de 1 de Março de 1974.
A que se devia a
operação? Antes de mais, tinha um carácter preventivo e de protecção:”(…) o seu
desencadeamento foi a intensa campanha desenvolvida pela opinião pública
apoiada pelos jornais tentando confundir com ex-DGS campanha que continua”,
lê-se num telegrama “secreto” remetido de Moçambique, pertencente a um fundo do
Arquivo da Defesa Nacional (ADN) desses dias revela que os militares
acreditavam que era necessário prender os pides para que os civis não receassem
denunciar as violências cometidas na última década. A mesmo tempo, procuravam
contrariar a “forte camapanha de informação pública” que insinuava a cumplicidade
e colaboração entra as FA e a PIDE/DGS, algo que causava notório desconforto ao
Exército.
Na data em que foi realizada esta operação
militar, prosseguiam já os trabalhos da comissão criada para investigar os
crimes da PIDE. Menos de um mês depois, a 4 de Julho, 148 funcionários tinham
sido libertados, embora sujeitos ao “regime de controlo militar” e proibidos de
sair das suas áreas de residência. Vinte dias mais tarde, o EMGFA foi alertado
de que decorriam “fugas” para a África do Sul, a partir de onde os pides
tentavam “aliciar outros” para uma acção “defensiva ou ofensiva” na colónia. A
3 de Setembro, nas vésperas da insurreição branca contra os acordos de Lusaca,
Lisboa decidiu o “imediato regresso” dos que estavam “em liberdade e presos”; a
7, os revoltosos libertaram os que estavam detidos na Machava e deram-lhes
armas; e no final do mesmo mês, centenas de funcionários portugueses e nativos
embarcaram com as famílias em aviões fretados pela FA, com destino a Lisboa.
Em Juno, a maior
preocupação da cúpula militar em Lisboa era, porém, a salvaguarda dos arquivos
da polícia em Moçambique, extensos e dispersos – era imperioso mantê-los
intactos e sob protecção, existindo o “grave risco” de “incidentes
internacionais”. O EMGFA não sabia ainda, contudo, que a PIDE já se tinha
antecipado, por diferentes motivos e usando outros métodos, nas subdelegações
da Beira e de Inhambane: na primeira cidade, um inspector obrigara cinco
reclusos a transportar todo o arquivo para sua casa, na cozinha na qual os
papéis foram destruídos pelo fogo; e na segunda, tudo foi igualmente incinerado
num auto-de-fé que durou de 26 de Abril a 4 de Maio.
Curiosamente, o
argumento do receio de “incidentes internacionais” foi novamente invocado pelo
Exército em finais de Setembro num telegrama “muito secreto” remetido para
Lisboa. Mas, desta vez, o mando era para destruir todo o acervo da PIDE/DGS,
mesmo com o “prejuízo” de nunca mais ser possível saber o destino de muitos
presos políticos e de não se poder abrir processos-crime contra membros da
polícia.
Quando esta ordem foi
cumprida, já os instrutores da comissão tinham guardado muitas cópias e
originais desse vasto arquivo nas pastas dos processos-crime. O recurso a estes
fundos fazia parte do trabalho de investigação e em muitos casos resultou na
recolha de provas documentais dos métodos repressivos usados contra civis. Nas
12 caixas descobertas na Torre do Tombo está também uma parcela considerável do
arquivo perdido de Moçambique.
Punição e extermínio
A 5 de
Abril de 1973, a Federação Democrática Internacional das Mulheres (FDIM)
apresentou um relatório no Comité dos Direitos Humanos da ONU em que eram
detalhados actos brutais cometidos pelos “colonialistas portugueses” em
Moçambique. Uma cópia desse documento chegou à sede nacional da polícia
política, em Lisboa, em Julho, procedente do Ministério dos Negócios
Estrangeiros. Nada do seu conteúdo era estranho à direcção da PIDE/DGS ou ao
seu presidente do Conselho, Marcelo Caetano. A FDIM alertava a ONU para as
“bárbaras atrocidades” contra a população, exigia um inquérito internacional e
para sustentar as suas acusações anexava um depoimento escrito do padre
comboniano Luís Afonso Costa, que, no ano anterior, já comunicara a Caetano e a
Roma a ocorrência de massacres e sucessivos atentados contra os Direitos
Humanos no distrito de Tete. Os acusados eram as tropas e os pides.
As
denúncias às autoridades governamentais portuguesas e a instituições
internacionais, feitas sobretudo por padres e missionários de diversas
congregações, que tinham contacto direto com as populações, recrudesceram após
o assassinato pela PIDE/DGS do fundador da Frelimo, Eduardo Mondlane, em
Fevereiro de 1969, a par do aumento da violência contra populares. Tudo se
prolongou até aos primeiros dias de Abril de 1974, quando Caetano ordenou a
expulsão do bispo de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto – num dos processos-crime
da Comissão encontra-se o depoimento de uma testemunha que conta como os pides
perseguiram, ameaçaram e bateram nos missionários também expulsos nessa altura,
acicatando a ira dos colonos e lançando panfletos com o retrato de Vieira Pinto
e a legenda “Famigerado traidor à Pátria. Indesejável em território português.
VIVA PORTUGAL UNO E INDIVISÍVEL”.
O eco
internacional do que acontecia em Moçambique teve poucos ou nenhuns efeitos
prático a na colónia. Pelo menos desde 1966, os delegados do Comité
Internacional da Cruz Vermelha que visitavam o país, nomeadamente as cadeias da
PIDE, eram constantemente ludibriados através de cenografias montadas pela polícia
com sugestões do Governo da “metrópole” e colaboração da Interpol, como veremos
no artigo dedicado às prisões.
Nas últimas
linhas de uma participação escrita a 14 de Julho de 1974 e entregue à comissão
militar, Luís José Cotopola, funcionário administrativo em Govuro, torturado em
Vila Cabral e na Machava, dizia esperar contribuir para “o desvendamento do
grande mistério que são os crimes cometidos pela PIDE/DGS”. Eram um mistério,
sde facto, para todos os que não foram submetidos à violência discricionária
desta polícia. Quando a comissão iniciou os seus trabalhos, desconhecia-se
ainda a escala e o grau de brutalidade e sadismo praticados, os atropelos às
convenções do direito internacional humanitário e às mais básicas condições
humanas de dignidade.
O que os
instrutores militares registaram e recolheram para memória futura – a voz das
vítimas, mas também a de familiares desaparecidos e mortos e a dos
perpetradores (agentes, inspectores, guardas prisionais, auxiliares e
intérpretes) – será contado nas próximas semanas e num podcast de seis
episódios. Nas edições impressa e digital, serão ainda publicadas selecções de
documentos inéditos.
Num curto
período de tempo (três meses), a comissão agregou milhares de depoimentos a 381
processos. Ouviu vítimas, familiares, testemunhas, elementos da PIDE e da
administração civil, funcionários de hospitais e de conservatórias do registo
civil, agentes da PSP, médicos e enfermeiros. Procedeu a acareações e a sessões
de reconhecimento presencial, pediu diligências judiciais, instaurou autos de
corpo de delito directo e indirecto, requereu exames de sanidade e registou
lesões corporais visíveis. Constituiu como arguidos ou identificou como
“presumidos delinquentes” dezenas de pides, alguns dos quais tinham já abandonado
a instituição ou haviam sido deslocados para a “metrópole”. Interrogou alguns
dos que foram capturados na Operação Zebra e ouviu confissões sobre a
recorrente prática de torturas nos interrogatórios, mutilações, sobrelotação
das cadeias, mortes por asfixia, castigos corporais, fome, ausência de
tratamento médico e a memória traumática de um cão esfomeado que durante a
noite era introduzido nas celas da subdelegação em Nampula para estropiar os
reclusos.
Em diversos
interrogatórios, os instrutores perceberam que nunca seria possível determinar
o número de detidos e mortos pela PIDE porque em alguns postos e subdelegações
o registo dos presos só começou a ser feito em finais de 1973. Muitos foram
inumados em valas comuns nos cemitérios e no mato, outros lançados aos rios,
sem certidões de óbito ou com assentos que falseavam as causas (broncopneumonia
ou insuficiência cardíaca).
Os
trabalhos de instrução feitos entre junho e finais de Agosto, “perdidos” até
agora na Torre do Tombo, representam um processo de punição e extermínio sem
qualquer controlo entre 1964 e 1974 – detenções ilegais, execuções sumárias,
desaparecimentos, trabalhos forçados, condições desumanas no encarceramento,
falta de apoio médico, confiscos e roubos de dinheiro e bens pessoais, sevícias
e violações sexuais, choques eléctricos, alimentação deficiente, inibição do
acesso a água, mutilações com pregos e facas, queimaduras do corpo com
archotes, isqueiros, cigarros, ferros em brasa para a ferver, fracturas de
membros e tortura através de “water boarding” são alguns dos relatos da
desmedida violência exercida pela PIDE.
Depois, em
Setembro, a agitação em Moçambique não apenas decidiu o repatriamento e o
desterro dos pides, como terá decretado o fim da comissão: os chamados “termos
de entrega” dos processos datam do dia 10 e obedecem a uma “mensagem-relâmpago”
para que os trabalhos sejam encerrados. Algures entre 1974 e 1975, esta
documentação viajou para Lisboa, porventura nas malas especiais do
Desde 1992, as 12 caixas estiveram num dos depósitos da Torre do Tombo à espera da curiosidade de Paulo Tremoceiro. É o conteúdo dessas caixas que será revelado pelo P2 nas próximas semanas
Dez anos de Guerra
Colonial e 16 de guerra civil colocaram Moçambique entre os países mais pobres
do mundo. É a pior herança de 50 anos da independência sob o comando eterno da
Frelimo.
CONTINUA
Moçambique exibe as feridas das guerras colonial e civil, mas, apesar de todas as explicações, a Frelimo tem uma herança difícil de defender. A pobreza extrema da maioria dos moçambicanos é a guerra indispensável do próximo meio século.
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