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Livros da guerra colonial

Miandica terra do outro mundo


domingo, 28 de dezembro de 2025

A PIDE EM MOÇABIQUE1

  


Em 1974, O Exército criou uma Comissão de Verdade para investigar os crimes da PIDE/DGS em Moçambique. Recolheu milhares de provas de violações dos direitos humanos e inquiriu centenas de pessoas. Mas os trabalhos foram subitamente encerrados e a documentação remetida para Lisboa. Há mais de 30 anos que estava perdida em 12 caixas na Torres do Tombo. O PÚBLICO revela-a agora pela primeira vez numa investigação que durou meio ano e que será publicada em sete artigos.

 

Investigação

Os crimes da PIDE/DGS em Moçambique.1964-1974 (I) Depois do 25 de Abril, as tropas em Moçambique criaram uma Comissão para investigar os crimes da polícia política. Os trabalhos destes militares eram desconhecidos até hoje e estavam há mais de 30 anos guardados na Torres do Tombo. O P2 dá início a uma série de textos que revelam pela primeira vez as provas da violência discricionária contra civis.

Um arquivista deambula pelos corredores do último piso da Torre do Tombo, em Lisboa, observando com atenção as caixas que guardam a documentação produzida pela PIDE/DGS – três quilómetros e meio de um arquivo que ali chegou em 1991 e que ainda não foi integralmente inventariado e descrito. Fá-lo por curiosidade, nos poucos tempos livres que tem como chefe da Divisão de Comunicação e Acesso, nas pausas de um vaivém diário entre as salas de leitura e de referência e os diversos depósitos. Todos os investigadores que frequentam a casa conhecem Paulo Tremoceiro.


Em finais do ano passado, numa das suas voltas pelo sexto piso, atentou numa caixa com o número 48 e retirou-a da estante. No seu interior estava um volume pobremente encadernado com duas folhas de cartão grosso que envolviam cerca de mil folhas, presas em dois furos e uma corda de sisal. No frontispício alguém escrevera a caneta azul e com sublinhados “Região Militar de Moçambique. Sector’C’. Comissão de Apuramento de Responsabilidades do Pessoal da ex-DGS. Auto de corpo de delito por homicídio. Arguidos: Todo o pessoal de investigação desde o ano de 1964 a 1973 e ainda os directores da ex-DGS.


 Era um achado intrigante. Do arquivo da polícia política em Moçambique quase nada chegara a Lisboa depois das ordens de destruição do mesmo, decretadas pouco depois do 25 de Abril por autoridades militares e por alguns dirigentes da PIDE.

Salvaram.se apenas sete pastas com alguns processos-crime e cadernos de notas apreendidos a elementos independendistas, provenientes das filiais em Nampula, Beira e Vila Cabral (actual Lichinga). De qualquer forma, a inscrição a caneta parecia indicar que se tratavam de documentos militares, adensando-se o enigma, e Paulo nunca lera qualquer menção a esta “Comissão de Apuramento” nos papéis da PIDE. Decidiu abrir o volume.


PIDE em Moçambique

 

As provas da violência e do terror


A primeira página era uma folha azul de 25 linhas, dactilografada e dirigida ao “Gabinete do Movimento das Forças Armadas (MFA)junto do Comando-Chefe da RMM|Região Militar de Moçambique|”, datada de 6 de Junho de 1974 e assinada por um motorista chamado Alfredo Fontes Nivavela. O texto tomava a forma de uma participação judiciária feita no quartel em Nampula, a cidade mais importante do norte moçambicano, e tinha como instrutor um alferes miliciano, Luis Filipe Sacramento, e como escrivão o cabo Francisco Torres Nivavela, residente no Bairro do Matadouro, procurava o paradeiro do seu tio Paqueleque, desaparecido desde o dia em que fora detido por dois agentes da PIDE/DGS, em Outubro de 1966. No segundo fólio, repetia-se a metodologia: os mesmos militares registavam a 4 de Juno o pedido do cozinheiro Gabriel Mussa, que pretendia saber em que circunstâncias morrera o seu tio Pampião Piteira, morto nas celas da PIDE naquela cidade, em data incerta.

Seguiam-se 235 folhas de depoimentos mais ou menos semelhantes, que assumiam o formato de actos processuais: autos de notícia, autos de queixa, participações e denúncias. Os depoentes não eram apenas familiares que procuravam saber o que acontecera aos seus pais, irmãos, filhos e outros parentes após a detenção dos mesmos pela PIDE – na grande maioria, eram antigos reclusos da PIDE que contaram aos militares as torturas e os tratamentos desumanos e criminosos a que foram sujeitos nos interrogatórios e nas secções prisionais da polícia. Falaram e mostraram como os seus corpos ostentavam as marcas vitalícias dessa violência.

Os restantes fólios desse volume consistiam em cópias de comunicações entre as subdelegações e a delegação da polícia na capital, Maputo (então Lourenço Marques), sobre a morte sem causa registada de civis nos calabouços da PIDE e nos hospitais locais, entre 1964 e 1974; e ainda originais dos registos quinzenais de detenções, folhas A3 quadriculadas com as identidades dos presos, datas de entrada e de libertação e frequência da distribuição de alimentos, papeis manuscritos sobre refeições fornecidas e compra de géneros e bens alimentares – ou seja, uma parcela do arquivo que se julgava perdido para sempre.

O que esta caixa nº 48 indiciava era que após a Revolução de Abril as Forças Armadas (FA) presentes em Moçambique tinham constituído uma Comissão de Verdade para investigar os crimes e as violações de direitos humanos cometidos pela PIDE na colónia, inquirindo vítimas e testemunhas.

Mas quando Paulo Tremoceiro partilhou a sua perplexidade com o P2, em finais de 2024, as suspeitas sobre esta documentação não previam o que se encontrou nos últimos seis meses: em mais 11 caixas estavam as provas documentais, e até agora nunca reveladas, das atrocidades praticadas pela PIDE contra a população civil moçambicana.

 

Verificar “possíveis crimes e abusos graves”

 

No quartel de Vila Cabral, perto do lago Niassa, a notícia de uma revolução na “metrópole” chegou através de uma rádio sul-africana. Os militares ali instalados estavam “isolados do mundo”, diz hoje o juíz-conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça, António Ferreira Girão, então alferes miliciano. “Foi uma bagunça”, recorda, “os gritos eram ’viva a peluda’ e não ‘viva a liberdade’ porque na gíria militar a ‘peluda’ era sair da tropa”.

A quase mil quilómetros dali, em Nampula, o então major pára-quedista Nuno Mira Vaz, que chegara a Moçambique precisamente um ano antes, a 25 de Abril de 1973, oriundo de missões na Guiné e em Angola, apresentava-se como um dos militares do Movimento das Forças Armadas (MFA), sendo destacado para o grupo que deveria “responsabilizar-se” pelos elementos da PIDE/DGS. Mais a norte, em Montepuez, pequena cidade que tinha pouco mais do que um entreposto algodoeiro, propriedade de um colono abastado, António Ribeiro Carioca percebeu depressa que tinha de ali permanecer a cumprir o serviço militar, mas ainda não podia suspeitar que o Verão dos seus 22 anos iria ser passado a registar provas incriminatórias contra funcionários da polícia política portuguesa.

Muitos membros do grupo de oficiais que registou e documentou a repressão policial da PIDE já morreram; outros recusaram falar. Estes três homens (que nunca se conheceram) aceitaram falar com o P2. O conselheiro Ferreira Girão e o coronel Mira Vaz não têm memórias muito vividas da inquirições, talvez porque tenham abandonado abruptamente estes trabalhos: o para-quedista, Mira Vaz, saiu de Nampula a 4 de Julho para chefiar um batalhão em Nacala: e Ferreira Girão, que então era já magistrado do Ministério Público, regressou a Portugal a 4 de Agosto, Ribeiro Carlota, hoje com 78 anos, engenheiro electrotécnico reformado, foi o único que passou os meses de Junho, Julho e Agosto de 1974 a ouvir civis, quase todos das etnias macua e maconde, originários da província de Cabo Delgado. “Quando acordávamos e íamos à janela espreitar, já havia muita gente que estava à espera para ser ouvida. Era impressionante”, lembra. Muitas destas pessoas viajavam de lugares remotos, a pé, caminhando “desde a véspera”.

Em Vila Cabral, Nampula e Montepuez, como também em Quelimane, Beira, Tete ou Maputo, instalados em quartéis ou nos antigos da PIDE (como a “Vila Algarve”, delegação na capital), dezenas de militares começaram em finais de Maio de 1974 a trabalhar exclusivamente na “Comissão de apuramento de responsabilidade criminais de elementos da ex-DGS” ou “Comissão de Saneamento e Investigação”).

A data dos primeiros autos de queixas é 28 de Maio, feitos em Nampula. No dia anterior, 27, um telegrama do comando-chefe na colónia informava Lisboa de que todos os setores militares tinham sido incumbidos de verificar os “possíveis crimes e abusos graves” exercidos por pides e que as inquirições seriam feitas por grupos de três oficiais, que, nas suas áreas, poderiam instaurar processos-crime e “controlar” os funcionários da polícia. Isto significava, segundo se comprova na documentação, que os militares ficavam responsáveis pela instrução preparatória dos processos, actuando como investigadores criminais. Não podiam punir judicialmente, mas tinham poder para arquivar autos, manter sob prisão ou libertar pides, ordenar diligências, fazer interrogatórios e recorrer aos arquivos policiais e prisionais. Redigiam sumários de culpa pelos crimes de homicídio ou ofensas corporais (praticamente ops únicos considerados) e recomendavam a entrega da matéria probatória aos tribunais militares. Aparentemente, essas provas nunca foram entregues às instâncias judiciais.

 

Serviços paralisados, fugas e poucas detenções

 

Em Moçambique, as decisões sobre o destino a dar ao pessoal da PIDE, após a Revolução foram titubeantes e pautadas por retrocessos e dúvidas. Logo em Abril, os serviços desta polícia paralisaram, a delegação em Maputo e as subdelegações e postos em todo o país foram tomadas e ocupadas pelo Exército, confiscou-se armamento e munições e tomou-se o controlo das centrais de comunicações e do centro de instrução dos Flechas, a força paramilitar da PIDE/DGS que tinha quartel a 12 quilómetros de Vila Pery (actual Chimóio). No decreto-lei que ditava a extinção da PIDE, aprovado pela Junta de Salvação Nacional a 25 de Abril, lia-se que os funcionários destacados no Ultramar poderiam ser transferidos para os serviços de informações militares caso estivessem ilibados de responsabilidades criminais. Em Abril e Maio, porém, era ainda muito cedo para se apurar, de facto, sobre as atrocidades perpetradas pela PIDE contra a população civil, sobretudo desde 1964, ano da eclosão da guerra em Moçambique.

A iniciativa de incorporar pides no universo castrense foi pouco consensual no seio do MFA. Em Vila Pery, o Movimento entendia que o trabalho desta polícia não tinha “qualquer interesse” para a Polícia de Informação Militar (PIM), sublinhando que isso era verificável em colaborações e relatórios “antecedentes”. “Na minha perspectiva”, diz hoje Nuno Mira Vaz, elemento do MFA em Nampula, “não eram essenciais à tropa. Digamos que não havia consideração recíproca”.

Em Lisboa, o assunto não causava menos embaraços. Em meados de Junho, Costa Gomes, chefe do Estado-Maior do Exército, perguntou a Almeida Santos, ministro da Coordenação Interterritorial ( a nova designação do Ministério do Ultramar), se o saneamento integral integral dos quadros da polícia política também se aplicava às colónias, notando desde logo que muitos pides estavam já a trabalhar nos organismos militares.

Em Abril de 1974, o quadro da PIDE em Moçambique seria talvez composto por cerca de 600 funcionários (não há números rigorosos, sabendo-se que em 1971 os números rondavam as duas mil pessoas nesta colónia, em Angola e na Guiné). Tinha uma delegação em Lourenço Marques (onde estava a direcção-geral, chefiada por António Fernandes Vaz de 1960 a 1972, e depois por Fernando Pereira de Castro até Abril de 74); mais de uma dezena de subdelegações, sobretudo no Norte, onde estava o epicentro da guerra, e inúmeros postos de fronteira e de vigilância. “Tinha ainda sob a sua tutela um grande número de prisões: Machava e Sommerchild, na capital, Fortaleza do Ibo, Ponta Mahone, o campo de trabalhos forçados de Mabalane, calabouços em Quelimane, Beira, Nampula, Tete, João Belo ou Vila Junqueiro e celas em postos da administração colonial. Estava dispersapor todo o território e não existia qualquer controlo sobre a sua actuação.

Poucos dias após a Revolução, os Democratas de Moçambique, uma organização criada ainda no período colonial, começaram a exortar publicamente a população a apresentar queixas formais contra a PIDE. Disponibilizaram-se para recolher denúncias manuscritas e distribuíram folhas pré-impressas que poderiam ser preenchidas por vítimas e familiares. Sabemos agora que uma grande parte desta documentação foi recuperada pelos instrutores militares da Comissão e incluída nos processos-crime como matéria probatória. No cabeçalho dos impressos lia-se a frase “Investigação dos crimes contra a humanidade e contra a economia” – não era a primeira vez que a PIDE era acusada de violações dos direitos humanos e delitos contra bens públicos e privados, mas desta vez, com o derrube da ditadura e da ocupação colonial, talvez fosse feita justiça, acreditavam os Democratas.

Temendo o recrudescimento da ira popular e de actos de justiça nas ruas, o Exército começou a deslocar pides para outras zonas, proibindo a sua saída do país. Porém, um número incontável conseguiu fugir para a Rodésia (actual Zimbabwe) e para a África do Sul; outros, poucos, foram surpreendidos por ordens de prisão, como irem para a Machava, de maneira que você como está à vontade com eles tem de os reunir para serem presos. “Mas como? ’Olhe, uma sugestão: diga que vais fazer uma palestra’. “ E foi o que aconteceu. “Lá os reuni e nisto sinto à volta do edifício, parecia um filme daqueles de guerra, as botas cardadas e as armas apertadas para prender 30 homens,”

Num telegrama datado de 24 de Maio, o comando militar em Moçambique informou Lisboa que estavam detidos 38 pides (12 inspectores, 3 chefes de brigada e 23 agentes). Mas no mês seguinte tudo mudou, ainda que temporariamente.

 

Destruir os arquivos para evitar

“incidentes internacionais”

 

A 8 de Junho, num plano rodeado do maior secretismo e delineado pelas Forças Armadas (FA) em Moçambique em conjunto com o Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA), depois de “ponderados todos os riscos”, foi desencadeada a Operação Zebra, destinada a deter a quase totalidade dos quadros da direcção e investigação da PIDE/DGS- exceptuaram-se as agentes femininas e os elementos que tinham entrado em funções depois de 1 de Março de 1974.

A que se devia a operação? Antes de mais, tinha um carácter preventivo e de protecção:”(…) o seu desencadeamento foi a intensa campanha desenvolvida pela opinião pública apoiada pelos jornais tentando confundir com ex-DGS campanha que continua”, lê-se num telegrama “secreto” remetido de Moçambique, pertencente a um fundo do Arquivo da Defesa Nacional (ADN) desses dias revela que os militares acreditavam que era necessário prender os pides para que os civis não receassem denunciar as violências cometidas na última década. A mesmo tempo, procuravam contrariar a “forte camapanha de informação pública” que insinuava a cumplicidade e colaboração entra as FA e a PIDE/DGS, algo que causava notório desconforto ao Exército.

 Na data em que foi realizada esta operação militar, prosseguiam já os trabalhos da comissão criada para investigar os crimes da PIDE. Menos de um mês depois, a 4 de Julho, 148 funcionários tinham sido libertados, embora sujeitos ao “regime de controlo militar” e proibidos de sair das suas áreas de residência. Vinte dias mais tarde, o EMGFA foi alertado de que decorriam “fugas” para a África do Sul, a partir de onde os pides tentavam “aliciar outros” para uma acção “defensiva ou ofensiva” na colónia. A 3 de Setembro, nas vésperas da insurreição branca contra os acordos de Lusaca, Lisboa decidiu o “imediato regresso” dos que estavam “em liberdade e presos”; a 7, os revoltosos libertaram os que estavam detidos na Machava e deram-lhes armas; e no final do mesmo mês, centenas de funcionários portugueses e nativos embarcaram com as famílias em aviões fretados pela FA, com destino a Lisboa.

Em Juno, a maior preocupação da cúpula militar em Lisboa era, porém, a salvaguarda dos arquivos da polícia em Moçambique, extensos e dispersos – era imperioso mantê-los intactos e sob protecção, existindo o “grave risco” de “incidentes internacionais”. O EMGFA não sabia ainda, contudo, que a PIDE já se tinha antecipado, por diferentes motivos e usando outros métodos, nas subdelegações da Beira e de Inhambane: na primeira cidade, um inspector obrigara cinco reclusos a transportar todo o arquivo para sua casa, na cozinha na qual os papéis foram destruídos pelo fogo; e na segunda, tudo foi igualmente incinerado num auto-de-fé que durou de 26 de Abril a 4 de Maio.

Curiosamente, o argumento do receio de “incidentes internacionais” foi novamente invocado pelo Exército em finais de Setembro num telegrama “muito secreto” remetido para Lisboa. Mas, desta vez, o mando era para destruir todo o acervo da PIDE/DGS, mesmo com o “prejuízo” de nunca mais ser possível saber o destino de muitos presos políticos e de não se poder abrir processos-crime contra membros da polícia.

Quando esta ordem foi cumprida, já os instrutores da comissão tinham guardado muitas cópias e originais desse vasto arquivo nas pastas dos processos-crime. O recurso a estes fundos fazia parte do trabalho de investigação e em muitos casos resultou na recolha de provas documentais dos métodos repressivos usados contra civis. Nas 12 caixas descobertas na Torre do Tombo está também uma parcela considerável do arquivo perdido de Moçambique.

 

Punição e extermínio

 

A 5 de Abril de 1973, a Federação Democrática Internacional das Mulheres (FDIM) apresentou um relatório no Comité dos Direitos Humanos da ONU em que eram detalhados actos brutais cometidos pelos “colonialistas portugueses” em Moçambique. Uma cópia desse documento chegou à sede nacional da polícia política, em Lisboa, em Julho, procedente do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Nada do seu conteúdo era estranho à direcção da PIDE/DGS ou ao seu presidente do Conselho, Marcelo Caetano. A FDIM alertava a ONU para as “bárbaras atrocidades” contra a população, exigia um inquérito internacional e para sustentar as suas acusações anexava um depoimento escrito do padre comboniano Luís Afonso Costa, que, no ano anterior, já comunicara a Caetano e a Roma a ocorrência de massacres e sucessivos atentados contra os Direitos Humanos no distrito de Tete. Os acusados eram as tropas e os pides.

As denúncias às autoridades governamentais portuguesas e a instituições internacionais, feitas sobretudo por padres e missionários de diversas congregações, que tinham contacto direto com as populações, recrudesceram após o assassinato pela PIDE/DGS do fundador da Frelimo, Eduardo Mondlane, em Fevereiro de 1969, a par do aumento da violência contra populares. Tudo se prolongou até aos primeiros dias de Abril de 1974, quando Caetano ordenou a expulsão do bispo de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto – num dos processos-crime da Comissão encontra-se o depoimento de uma testemunha que conta como os pides perseguiram, ameaçaram e bateram nos missionários também expulsos nessa altura, acicatando a ira dos colonos e lançando panfletos com o retrato de Vieira Pinto e a legenda “Famigerado traidor à Pátria. Indesejável em território português. VIVA PORTUGAL UNO E INDIVISÍVEL”.

O eco internacional do que acontecia em Moçambique teve poucos ou nenhuns efeitos prático a na colónia. Pelo menos desde 1966, os delegados do Comité Internacional da Cruz Vermelha que visitavam o país, nomeadamente as cadeias da PIDE, eram constantemente ludibriados através de cenografias montadas pela polícia com sugestões do Governo da “metrópole” e colaboração da Interpol, como veremos no artigo dedicado às prisões.


Nas últimas linhas de uma participação escrita a 14 de Julho de 1974 e entregue à comissão militar, Luís José Cotopola, funcionário administrativo em Govuro, torturado em Vila Cabral e na Machava, dizia esperar contribuir para “o desvendamento do grande mistério que são os crimes cometidos pela PIDE/DGS”. Eram um mistério, sde facto, para todos os que não foram submetidos à violência discricionária desta polícia. Quando a comissão iniciou os seus trabalhos, desconhecia-se ainda a escala e o grau de brutalidade e sadismo praticados, os atropelos às convenções do direito internacional humanitário e às mais básicas condições humanas de dignidade.

O que os instrutores militares registaram e recolheram para memória futura – a voz das vítimas, mas também a de familiares desaparecidos e mortos e a dos perpetradores (agentes, inspectores, guardas prisionais, auxiliares e intérpretes) – será contado nas próximas semanas e num podcast de seis episódios. Nas edições impressa e digital, serão ainda publicadas selecções de documentos inéditos.

Num curto período de tempo (três meses), a comissão agregou milhares de depoimentos a 381 processos. Ouviu vítimas, familiares, testemunhas, elementos da PIDE e da administração civil, funcionários de hospitais e de conservatórias do registo civil, agentes da PSP, médicos e enfermeiros. Procedeu a acareações e a sessões de reconhecimento presencial, pediu diligências judiciais, instaurou autos de corpo de delito directo e indirecto, requereu exames de sanidade e registou lesões corporais visíveis. Constituiu como arguidos ou identificou como “presumidos delinquentes” dezenas de pides, alguns dos quais tinham já abandonado a instituição ou haviam sido deslocados para a “metrópole”. Interrogou alguns dos que foram capturados na Operação Zebra e ouviu confissões sobre a recorrente prática de torturas nos interrogatórios, mutilações, sobrelotação das cadeias, mortes por asfixia, castigos corporais, fome, ausência de tratamento médico e a memória traumática de um cão esfomeado que durante a noite era introduzido nas celas da subdelegação em Nampula para estropiar os reclusos.




Em diversos interrogatórios, os instrutores perceberam que nunca seria possível determinar o número de detidos e mortos pela PIDE porque em alguns postos e subdelegações o registo dos presos só começou a ser feito em finais de 1973. Muitos foram inumados em valas comuns nos cemitérios e no mato, outros lançados aos rios, sem certidões de óbito ou com assentos que falseavam as causas (broncopneumonia ou insuficiência cardíaca).

Os trabalhos de instrução feitos entre junho e finais de Agosto, “perdidos” até agora na Torre do Tombo, representam um processo de punição e extermínio sem qualquer controlo entre 1964 e 1974 – detenções ilegais, execuções sumárias, desaparecimentos, trabalhos forçados, condições desumanas no encarceramento, falta de apoio médico, confiscos e roubos de dinheiro e bens pessoais, sevícias e violações sexuais, choques eléctricos, alimentação deficiente, inibição do acesso a água, mutilações com pregos e facas, queimaduras do corpo com archotes, isqueiros, cigarros, ferros em brasa para a ferver, fracturas de membros e tortura através de “water boarding” são alguns dos relatos da desmedida violência exercida pela PIDE.

Depois, em Setembro, a agitação em Moçambique não apenas decidiu o repatriamento e o desterro dos pides, como terá decretado o fim da comissão: os chamados “termos de entrega” dos processos datam do dia 10 e obedecem a uma “mensagem-relâmpago” para que os trabalhos sejam encerrados. Algures entre 1974 e 1975, esta documentação viajou para Lisboa, porventura nas malas especiais do comando militar português, com escolta e isenta de inspecção aeroportuária, e foi levada para a prisão de Caxias, onde a Comissão de Extinção da PIDE/DGS reuniu e catalogou o arquivo

Desde 1992, as 12 caixas estiveram num dos depósitos da Torre do Tombo à espera da curiosidade de Paulo Tremoceiro. É o conteúdo dessas caixas que será revelado pelo P2 nas próximas semanas

 


Dez anos de Guerra Colonial e 16 de guerra civil colocaram Moçambique entre os países mais pobres do mundo. É a pior herança de 50 anos da independência sob o comando eterno da Frelimo.

CONTINUA

 

Moçambique exibe as feridas das guerras colonial e civil, mas, apesar de todas as explicações, a Frelimo tem uma herança difícil de defender. A pobreza extrema da maioria dos moçambicanos é a guerra indispensável do próximo meio século.

 

 CONTINUA

domingo, 21 de dezembro de 2025

QUIONGA

  

Meu amado CAPE!!!
Sabia eu, já em 2012, quando visitei, pela primeira vez, o Distrito de Palma e o Posto Administrativo de Quionga, ponto mais a norte da minha pátria, iriam comover-me para todo o sempre!
Bom, mas vamos por partes.
Sim, nasci e cresci em Maputo, no extremo sul da nação mas algo histórico me levaria a amar Cabo Delgado, o meu amado CAPE
Como esse amor pelo CAPE nasceu?
Vamos lá saber!
Bom, a primeira vez que comecei a interessar-me pelo CAPE, foi por uma razão.....bélica, Quionga, sem saber onde se localizava)!!!
Bom, certa vez (e era eu puto), circulava com a minha mãe, a pé, nos anos 80 do século passado, junto à Praça dos Trabalhadores, em Maputo, para apanhar o Machimbombo n° 17 (Bus) que nos levaria à casa, lá nas bandas do "Triunfo" e olhei para a emblemática estátua da "Senhora com uma serpente ao lado", que lá se ergue!

A nativa das terras dos Mpfumos que heroicamente matou a serpente que amedontrava as gentes de Lorenço Marques
Questionei à minha mãe o que tal significava e em resposta, disse (a minha mãezinha) que há muito tempo, naquela zona, existia uma grande árvore, onde habitava uma grande serpente!
Essa serpente, sempre que alguém passasse pela árvore ou que lá descansasse na sombra, era atacado pelo réptil!
Assim sendo, uma nativa da zona que já não aguentava com tanto tormento, decidiu fazer uma panela de papa e, bem quente, a colocou em sua cabeça e foi andando em direcção à frondosa árvore e, lá chegado, a serpente, que tinha a "mania" de 𝙥𝙞𝙘𝙖𝙧 as pessoas pela cabeça, fez o mesmo à senhora mas acabou entrando na grande panela e morreu!
Bom, foi um parêntesis enorme sobre Palma mas foi com o propósito de dizer que aquela estátua, lá no sul do país, há quase 3000 quilómetros de distância, mudou a minha vida para sempre pois ao perceber que lá existia o nome bonito de 𝗤𝘂𝗶𝗼𝗻𝗴𝗮 e eu sem saber onde ficava, aguçou o meu desejo por querer conhecer tal lugar!
Não fazia ideia de onde era o lugar e nem a minha mãe, que só dizia que tinha a ver com a Primeira Grande Guerra, lá em Cabo Delgado!
No entanto, esse nome ficou na minha memória e fui investigando, investigando até que descobri que ficava em.....Palma!
Quis o destino que eu viesse parar aqui, na Província de Cabo Delgado e por quase 15 anos, a desbravasse e assim foi que, em 2012 me vi a chegar, pela primeira vez, a Palma e ao meu amado Quionga!

Drº Bruno de Castro

Não sabem a emoção que foi para mim, chegar ao local que, décadas atrás e infante, tomara conhecimento da sua existência, numa Praça, na Capital da Nação!
Ah....não podia deixar de dizer que cheguei também ao Rovuma, rio esse também referido naquela emblemática estátua da "Senhora com uma serpente ao lado"!
Sim, Quionga foi um cenário perfeito para que os portugueses invadissem o Tanganyka Alemão pois achavam que tinham sido "roubados", em 1894, quando o Império Alemão se apossou do famoso "Triângulo de Quionga", na margem direita e junto a foz do Rio Rovuma
Este sentimento de impotência lusitana, perante um inimigo poderoso e formidável, viu, na primeira guerra mundial e pela velha aliança Luso-Britânica, de 650 anos antes, a oportunidade de reaver o território "roubado"
Várias batalhas ocorreram ali, no famoso "triângulo" (o outro está nas Bermudas,) e eu....com esta minha aguçada vontade de descrever e reescrever o passado e de fazer a minha alma vibrar de alegria pois estava lá, naquele local referido na "Estátua da Senhora com a Serpente", tive a oportunidade de me fazer presente, de corpo.... e alma (desculpem-me pela repetição pois é tanta emoção junta), num local histórico e de importância estratégica para Portugal, de outrora e, por causa disso, para Moçambique, de agora!



Voltando um pouco na história, referir que o actual Posto Fronteiriço de Namoto, por pertencer ao tão famoso triângulo, assistiu a memoráveis batalhas e por isso lá existe uma vala comum, que retrata a elevada mortandade daqueles tempos!
Ao tocar as águas do Rovuma, agora turvas, sabia eu que, outrora, sangue humano foi ali derramado!
Estava eu.... naquele local de tragédia militar e hoje, existindo um Posto Fronteiriço e portanto de trânsito frequente de pessoas, tenho a certeza que poucos fazem ideia do quanto morreram gentes (alemãs, portuguesas, moçambicanas e tanzanianas - os famosos Askaris), naquele lugar!

96 anos depois da "invasão portuguesa em Quionga", o meu corpo tocou o mesmo lugar que Tenentes, Coronéis e ... Praças, muitos deles com os seus nomes perdidos no tempo, o fizeram.

Esta minha crónica é....para recordar ao mundo, dos horrores da guerra pois muitos podem passar por locais, hoje normais, sem saber que antes perderam-se milhares de vidas devido a ganância humana!
A Província de Cabo Delgado mudou a minha vida, a minha forma de ver Moçambique!
Sou o que sou.....porque existe Quionga, Palma e.....Cabo Delgado!!!

Texto de:
Bruno Michael dos Reis Albano de Castro



domingo, 9 de novembro de 2025

O TRAÇADO DIARÍSTICO DE EDUARDO TRACANA. UM ROTEIRO BÉLICO TRAÇADO POLÍTICO

                                                                  E EU, LÁ TÃO LONGE!                                                         EDUARDO TRACANA, DO BI 12 ÀS CAMPANHAS DE ÁFRICA. ROTEIRO DE UMA EXPEDIÇÃO.

TEXTO DE: ANABELA MATIAS                                                                                                                                                                  PROFESSORA E INVESTIGADORA

O TRAÇADO DIARÍSTICO DE EDUARDO TRACANA. UM ROTEIRO BÉLICO TRAÇADO POLÍTICO

Eduardo dos Santos Tracana nasceu a 27 de Outubro de 1889, na freguesia da Sé, filho natural de Emília Nunes, casou em 26 de Fevereiro de 1919 com Maria Branca Abrantes de Andrade Pissarra. Alistou-se como voluntário em 20 de Janeiro de 1909 para "servir até aos 45 anos de idade (...) tendo sido incorporado no Regimento de Infantaria 12", conforme consta na folha de  matrícula militar. Contudo em 1916 definiu-se que todos cidadãos entre os 20 e os 45 anos de  idade que não estivessem recenseados para o serviço, o deveriam fazer e seriam as Comissões de Recenseamento Militar dos concelhos ou bairros a organizar os recenseamentos dos anos entre 1891 e 1915.

Terminada a recruta em 19 de Abril de 1909, o 1º Cabo Tracana passou ao 2º Batalhão em 1 de Novembro desse ano, continuou, no serviço activo por mais um ano, por declarar"desejar readmitir-se, desde 20 de Janeiro de 1911.  Em 1913, então com vinte e quatro anos, frequenta a Escola de Sargentos, curso que termina com aproveitamento, sendo a partir de 30 de Novembro de 1913, 2º Sargento e, em 1927, ascende ao posto de 1º Sargento, tornando-se professor do Curso Elementar, desde 23 de Abril de 1933. Passou ao Batalhão de Caçadores 7, em 11 de Setembro de 1939; com a idade de cinquenta e um anos foi dada  como incapaz para servir e passa à situação de reforma em 1 de Junho de 1940. Ao longo da carreira foi, ainda, condecorado por diversas vezes.

Ao longo deste artigo, como foi nossa intenção inicial,pretendemos apresentar alguns postais ilustrativos, escritos pelo próprio Eduardo dos Santos  Tracana, enquanto personagem interveniente e activa no conflito, inicialmente em Angola (1914), depois Moçambique (de 1916 a 1917) e, por fim, em Cabo Verde (1918). Será, contudo, durante  a sua estada em Moçambique que iremos privilegiar de sobremaneira, por ter sido aquela que durante mais tempo vivenciou o conflito e por ter sido aquele cenário bélico que durou mais  tempo e de forma mais cruel.

General Alves Roçadas

Em
 3 de Setembro de 1914, na 1ª Expedição de Alves Roçadas, aquando as incursões alemães em território do sul de Angola, Eduardo Tracana embarca para esta para esta província ultramarina, onde chega a 28 de Setembro, integrando o 2º batalhão do 2º grupo  de Metralhadoras. Havia uma evidente falta de soldados para  a especialidade de Metralhadoras do 6º e 7º Grupos de Metralhadoras (Bragança e Castelo Branco) que seriam supridas por soldados do 2º Grupo de Metralhadoras (Guarda) , mandados apresentar em Tancos. Permanece nesta província ultramarina de Janeiro de 1914  a  Setembro de 1915.

Nesta província, o Sargento Tracana fez parte do efectivo que ocupou Quiveva, Cafu e Evale, ainda, escoltou " um comboio de víveres destinado a Mongua, para a colónia de Cuanhama". Após esta comissão regressa à  Metrópole , tendo desembarcado em Lisboa  em  15 de Outubro de 1915, altura do envio da 2ª Expedição para Moçambique..

Uma outra frente que Portugal queria proteger era Moçambique e, à semelhança de Angola decide, também, reforçar a zona da fronteira e enviar tropas  que defendessem o território e os habitantes. Portugal sempre lidou com as colónias de forma diferente da Alemanha; este pais contava com um grande grosso de indígenas nas fileiras, conhecendo, por isso o terreno de forma eficaz e o campo de treino ter sido efectuado em ambiente africano, não havendo necessidade de aclimatização. Ao passo que, as tropas portuguesas, além de exaustas, das campanhas de Angola, desconheciam o terreno, clima e estavam extremamente mal treinadas. Foram necessárias três campanhas em Moçambique para tentar travar o inimigo sem êxito.

A 9 de Março de 1916, a Alemanha declara guerra a Portugal e, nesta altura, mais do que nunca, os portugueses reforçam a defesa das linhas territoriais, tendo o Governador Álvaro de Castro delineado como principal objectivo a recuperação de Quionga.

Álvaro de Castro Governador de Moçambique em 1916

Em Maio de 1916, já no 5º Grupo de Metralhadoras (integrado na 5ª Divisão, organizada em Coimbra) é com este contingente que o 1º Sargento Tracana vai para a Província de Moçambique, tendo desembarcado em Palma em 5 de Julho, com a 3ª Expedição do General Ferreira Gil; Eduardo Tracana, e de  acordo com a sua folha de matrícula, tem aptidões de maqueiro e apontador de Metralhadoras Vichers. Esta expedição chegará a Lourenço Marques a 27 de Junho

General José César Ferreira Gil, comandante da  3ª Expedição

Em 1 de Julho de 1916, Eduardo Tracana encontra-se em Lourenço Marques e dá conta disso à família,num emotivo postal que envia à futura  esposa Branca. Além de indicar o trajecto da expedição, refere ainda que há outros soldados e pessoas conhecidas da sua cidade natal, minimizando a saudade e quiçá o receio da ida para a guerra. Os movimentos do sargento estarão,, a partir de agora, em consonância com a cronologia da guerra, com   os ataques infligidos pelos alemães e com as tentativas de defesa por parte do Corpo Expedicionário Português. Em 2 e 31 de Julho os alemães atacam Nangadi de forma violenta.

O destino da 3ª Expedição será Palma, a sul de Quionga, para depois se poder progredir para o norte do Rovuma, em Setembro, as tropas concentram-se nesta localidade para prepararem o ataque no dia 18, e é um sucesso, os portugueses não encontram oposição. Somente com 3 colunas e 4.000 homens, o general Ferreira Gil, é apoiado por 10 metralhadoras e 14 peças de artilharia, alcança o objectivo. Mas a guarnição alemã, sempre bem informada, estava constantemente um passo à frente das deslocações portuguesas e retira no dia anterior. Lisboa tinha delineado o objectivo desta  expedição: ; a cooperação com as forças aliadas que participavam na campanha. É de Palma. É de Palma que o Sargento Tracana escreve o segundo postal.


A 3ª Expedição encontrará em Moçambique umas tropas destroçadas, um grupo de homens exaustos e famintos, com uma metrópole apenas  preocupada em tirar dividendos políticos. Há, de facto, um evidente mal-estar entre o comandante da 2ª  Expedição , Moura Mendes e o Governador da Província de Moçambique, Álvaro de Castro. 


General José Luís Almeida Mendes, comandante da 2ª Expedição

O primeiro, com a expedição reduzida a metade, tenta adiar qualquer confronto directo com os alemães, sobretudo na zona de Quionga; por outro lado  Álvaro de  Castro, desconhecedor da realidade e cumpridor zeloso das ordens do Governo de Lisboa, impõe o ataque. 

Era a coordenação militar e a política portuguesa, o que leva Jaime Cortesão a afirmar:
Não tínhamos um exército capaz de fazer a guerra moderna(...) Se tivéssemos adoptado o sistema inglês das rápidas promoções por  distinção ter-se.iam evitado muitos erros e vergonhas. A quantos bravos e inteligentes oficiais abafaram a iniciativa e  o  espírito de comando em pequenas missões".
Após a chegada do reforço de tropas, os portugueses atacam Nangadi, liderando a operação o Capitão Francisco Pedro Curado, com a 21ª Companhia Ídigena, após duas horas de combate, as tropas portuguesas tinham sofrido inúmeras baixas.

Capitão Francisco Pedro Curado
 
A 7 de Setembro escreve novo postal à família, dando contada localização, ainda em Palma, que continuava a ser um local insalubre e promotor de várias epidemias, que paulatinamente iam dizimando as tropas, mais que os combates. Nesta altura preparava-se já nova travessia e a tentativa de controlar  o rio Rovuma. Este rio apresentava três pontos de travessia possíveis: Namoto, Nhica e  Porto de Foz, é precisamente de Namoto que Eduardo Tracana vai enviar o terceiro postal, nele é visível a censura.

O general ordena então, então, que uma das colunas avance até Nevala (a 200 Kms a norte do Rovuma), mas a 4 de Outubro sofrem uma emboscada. Após reorganizar a coluna, chega a Nevala a 26 de Outubro de 1916, A coluna do General Ferreira Gil ocupa diversos  postos ao longo do rio Rovuma, de forma a criar uma barreira defensiva, mas toda esta guarnição é composta por apenas alguns elementos, que em caso de combate ficariam em franca desvantagem. Um dos pontos é a Namoto e a 18 de Setembro, Eduardo Tracana encontra-se aí, conforme escreve no postal que envia à sua noiva Branca. De acordo com a Ordem do Quartel General, , ordem de serviço nº 66, Eduardo dos Santos Tracana tomou parte da passagem do rio Rovuma. Sucedem-se uma série de ataques e recuos das tropas portuguesas que conseguiam uma incursão em território alemão, para de seguida recuarem.

Esta coluna, comandada pelo general Ferreira Gil atravessa o Rovuma entrando em território alemão, permitindo fazer todo o reconhecimento de Nevala por Maúta e ainda dos territórios de Miquinvadi. Assim, na madrugada de 19 de Setembro, foi iniciada a travessia do rio Rovuma dando o início à invasáo da África Oriental Alemã, junto a Namoto. A coluna do lado jusante era composta, entre outras, pela Bateria do 5º Grupode Metralhadores, do qual Eduardo Tracana faz parte. Dirigem-se para Migomba, com o objectivo de chegarem a Nevala, trajecto referido pelo beirão.




Em Outubro dá-se o combate em Maúta e de seguida os alemães reconquistam Nichichira, já em território alemão, porém passados alguns dias, os portugueses conquistam Maiemba. O mês de Outubro de 1916 é proveitoso para os portugueses: a 18 de Outubro, a coluna Massassi ataca o forte  de Nevala, zona de poços de abastecimentos e a 22 de Outubro dá-se o combate da Ribeira de Nevala, já em território alemão e são repelidos; a 25 de Outubro mesma coluna ocupa o porto alemão de Nanítema e dirige-se para Nevala, território que ocupa a 26 de Ouubro.

A 2 de Outubro as tropas portuguesas ocupam Nichichira (território alemão). mas os germânicos recuperaram este território a 4 de Outubro; no dia 6 dá-se o combate de Maúae a 10 de Outubro, os portugueses conquistam Maiemba e Quivambo. Em 16 de Outubro está em Nangade, de onde envia novo postal, de onde envia novo postal.
Em Novembro dá-se o combate de Quivambo, obrigando à retirada das tropas portuguesas, há um grande número de baixas e, após este revés, dá-se um novo combate em Nevala, onde as tropas alemãs , apoiada pela Marinha, atacam violentamente o exército português e ocupam o posto de água de Nevala. No início de Dezembro, oposto de Nangade é incendiado pelos alemães.

Os portugueses em confronto com as tropas alemãs, estiveram sempre em desvantagem, o comandante Von Letow, conhecedor nato do terreno, evita o combate em espaços abertos, tem um estilo muito próprio de comandar e atacar, as suas estratégias militares irão provocar grandes danos à tropas lusas. As suas tropas conheciam bem o território, haviam treinado nessa zona, estavam ambientadas ao  clima, conheciam o espaço de fuga, podendo, por isso, atacar os portugueses e retirar rapidamente. Por seu lado os portugueses eram comandados por generais descontentes, recebiam ordens desconexas do Governo, que ignorava a realidade desumana das forças expedicionário em Moçambique, havia um permanente conflito entre os comandantes e o governador, que queria impressionar Lisboa, que, por  sua vez, queria servir diligente e subservientemente Lisboa.

General Paul Von Lettow Vorbesk

O mês de Dezembro era tradicionalmente o início da estação das chuvas, o que trazia alguma acalmia nos combates e nas hostilidades e, durante os primeiros meses de 1917, as tropas alemãs organizam-se, mas só controlam cerca de um quarto da colónia alemã. A África Alemã Oriental está a ser pressionada pelos aliados em todas as frentes, mas consegue sempre movimentar-se com grande  mestria, aproveitando oportunidades e fraquezas dos adversários, infligir pesadas baixas aos adversários e lidar com a pressão nas várias frentes.

O início  de 1917é de convalescença para Eduardo Tracana, em 5 de Janeiro está a bordo do navio Chinde, com destino a Lourenço Marques e, por fim, a ilha de Xefina, em frente á ilha de Moçambique, para aí ficar durante algum tempo a recuperar

A correspondência trocada, além de nos permitir localizar o 2º Sargento Tracana na geografia e no cenário de guerra, também nos permite caracterizar  a forma de comunicação em tempos de um conflito.

E Abril se 1917, o 2º Sargento Eduardo Tracana já se encontra restabelecido e novamente na frente de combate, em Namoto, a norte de Palma,  junto ao Rovuma. Em 31 de Julho e 1 de Agosto, os alemães atacam novamente Nangadi. As condições climatéricas são agrestes para este grupo de bravos, pouco aclimatados, com um armamento desactualizado que irão tentar defender um território invadido pelos alemães.

A 15 de Agosto chega a Palma o navio "Amarante", com uma bateria de montanha e a 8 de Setembro chegam 8 sargentos e 402 cabos do Regimento de Infantaria nº 21, que vão ajudara engrossar as linhas de defesa.


A razão da escolha do general Ferreira Gil para liderar a campanha em Moçambique foi peremptória, era um oficial  considerado muito disciplinador, para comandar uma tropa bastante indisciplinada. Esta força era a mais indisciplinada, pois quase todos os militares que  a compunham foram destacados para Moçambique por terem sido condenados por insubordinação. Mas o general não resiste por muito tempo, não aceia a descoordenação, a falta de resposta, por parte de Lisboa, aos seus pedidos de ajuda para as tropas que combatem em condições desumanas e o desgoverno entre o comando geral e o governo de Lisboa. Em Setembro de 1917, chega o novo comandante da Força  expedicionário a Moçambique, com nova expedição, a 4ª desde 1914, o Coronel de Cavalaria Tomás de Sousa Rosa, para substituir o general beirão, conterrâneo do 2º Sargento Tracana. Desembarcou em Mocímboa da Praia,  12 de Setembro de 1917.

Coronel de Cavalaria Tomás de Sousa Rosa

O ano de 1917 não é muito profícuo em ataques, somente  no final do ano, Novembro  uma coluna alemã conquista, em oposição o posto de Nangar, porque em 25 de Novembro as tropas alemãs, comandadas pelo general Van Lettow, atravessam o Rovuma , sem dificuldade ou oposição , perto de Negomano e dá-se um autentico massacre das tropas portuguesas . Os alemães capturam tudo o que podem: material bélica, víveres, solípedes; bens essenciais para sobrevivência das suas tropas impedidas, pelos Aliados,de receberem fornecimento de bens. O general apesar de comandar um pequeno contingente, ataca de surpresa, move-se nas sombras, tal qual um fantasma, destrói. mata, avança e recua consoante as necessidades. Movimenta-se em território moçambicano em surdina, fomenta revoltas com os indígenas, contra os portugueses, deixando atrás de si um rasto de revoltas e rebeliões que durarão décadas após o fim do  conflito.

Troço de estrada entre Roma (Tanzânisa) e Negomano (Moçambique), inaugurado
     pelo Presidente da República de Moçambique a 4 de Agosto de 2023.

Considerámos que o ponto de viragem, neste abate de avanços  e recuos territoriais, entre portugueses e alemães, aconteceu em 25 de Novembro de 1917, com a sangrenta batalha de Negomano, em que as tropas nacionais ficam exausta e destruída.

Em Dezembro de 1917 dá-se o combate na Serra Mecula, sob as ordens do Capitão Francisco Curado, os portugueses resistem cinco dias, junto ao Rovuma.

O ano de 1918 inicia-se com os alemães a fazerem as suas características incursões, os Aliados só conhecem o seu progresso depois dos postos caírem, ou os oficiais serem libertados após um longo tempo de captura, era a total descoordenação.

 
Capitão Francisco Curado - Herói de Mecula

No final, há um triste balanço da guerra em Moçambique: Portugal enviou para esta colónia a maior força expedicionário, desde Alcácer - Quibir, ao longo dos quatro anos foram mobilizados 19.438 militares, juntando ainda os carregadores locais e os africanos recrutados.


Ainda durante o conflito, a 17 de Outubro de 1917, Eduardo Tracana sai de Moçambique ficando em Cabo Verde até 1918, desembarcando na metrópole em 30 de Julho de 1918.

Eduardo dos Santos Tracana volta à sua cidade e é novamente incorporado no Regimento de Infantaria nº12, ingressando na Escola de Metralhadoras Pesadas, tendo ficado apto para a função de "monitor de metralhadoras pesadas e ligeiras"  (conforme consta na folha de matrícula individual", frequentando a Escola Prática em Lisboa. Em Outubro de 1927 fica aprovado no curso para 1º Sargento e desde 1933 exerce funções de professor do curso elementar.

Após a Grande Guerra , a vida decorre normalmente em todas as cidades de Portugal; os soldados regressam exaustos, igualmente analfabetos, tal como haviam partido,com feridas para sararem, pedindo um respeito que lhes fora negado durante o tempo do conflito. Encontraram um Portugal desagregado, a tentar juntar as migalhas que os Aliados lhes permitiram ter, com inconstância normal do regime republicano.

Eduardo Tracado depois de estar em Lisboa a frequentar a Escola Prática para se tornar instrutor de Metralhadoras regressa â Guarda, onde constituiu família,  aqui será  um indivíduo respeitado pelos pares, muito humanista, conhecido pelo espírito empreendedor . Permanece no Exército até 1940, altura em que "a incapacidade de servir" se reforma.

Morreu a 22 de Abril de 1959, tendo havido uma consternação geral, tendo a imprensa local registado este acontecimento, pelo desaparecimento de um ser humano íntegro, que esqueceu as fraquezas e as maldades do ser humano na guerra, para viver uma vida guiada pelo humanismo e pela 


CONCLUINDO

Foi um conflito de certa forma, atípico, com muitas tecnologias inovadoras e mecânicas aplicadas ao conflito, por jovens arrancados às suas humildes realidades analfabetas, na sua maioria com profissões humildes, outros nem tanto, mas eles longe de uma realidade bélica  e fora de fronteiras. Em todas as expedições (nas quatro  enviadas, para Moçambique) nenhum dos  objectivos militares delineado foi cumprido: não se conseguir defender o território moçambicano, não houve estratégia militar, organizacional ou comunicacional, e o cômputo das quatro expedições resultou em 4.800 baixas (excluindo as baixas indígenas, os feridos ou doentes), 1584 feridos, 678 prisioneiros de guerra, 55467 desaparecidos e 1283 incapazes. No total foram mobilizados para África (incluindo indígenas), entre 1914 e 1918, "cerca de 49.131 homens (de um total de 105.542), a saber Angola - 18.430 homens; Moçambique - 30.701 homens.

Ao contrário do conflito em Angola, a campanha militar em Moçambique iniciou-se a 25 de Agosto de 1914, junto à fronteira com a colónia alemã, com o ataque alemão a Maziúa, na zona do Rovuma e prolongou-se até 1918, terminando apenas com o 
genocídio. Estipularam-se dois grandes objectivos para Moçambique: a reocupação de Quionga (anexada pela Alemanha, nos finais do século XIX e a passagem do Rovumae consequente ocupação de uma zona sul da colónia alemã.

Uma das principais razões pela mortandade do Corpo Expedicionário não se deveu somente aos combates, mas sobretudo à falta de preparação dos mancebos para esta necessidade. A importância da higiene foi imposta não foi aplicada, daí o desastre sanitário, que consequentemente conduziu ao desastre militar.

Urge então questionar:  quem ganhou a guerra em África? Atrevemo-nos a afirmar que este conflito não teve vencedores, se por um lado a Alemanha não conseguiu manter os territórios detidos antes de 1914; por outro lado, os Aliados, reféns  das políticas colonialistas, foram perdendo esses territórios. Portugal, por ter estado ao lado dos Aliados, conseguiu manter Angola e Moçambique e recuperar Quionga, não por mérito estratégico ou político, mas por imposição de políticas externas do pós-guerra, sobretudo pelo Tratado de  Versalhes.

Após o conflito, os portugueses que regressaram, como puderam, as suas vidas interrompidas por uma guerra lá longe que  não lhes pertencia Viram a realidades diferentes e violentas, um outro país e outra cultura. Eduardo Tracana volta à cidade natal e retoma a actividade militar no R12, abre ainda uma loja de comércio de sementes e artigos  agrícolas, na Praça de cidade, tendo sido uma referência comercial na área durante décadas.





FIM







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