11 - O “CACHICHA” (SOLDADO GE, MACONDE) (Zona de Pundanhar)
Todos os soldados do meu Grupo Especial (GE) eram macuas muçulmanos, à excepção de dois que eram macondes e católicos, o Cachicha e o Chitapata. Esqueci-me completamente do nome do primeiro e se agora ainda a minha memória o chama de Cachicha é culpa minha, assumidamente minha, porque o nicknomeei assim mesmo, de Cachicha. E à força do hábito e facilitismo de assim o chamar, este nome virou verdade, o outro ficou esquecido.Ele, o Cachicha era de estatura baixa, afável, sempre com um sorriso na sua cara tatuada e de dentes afiados. Do seu uniforme camuflado apenas o quico lhe enchia a cabeça, o resto, calças e camisa sobravam muito para além da altura breve do seu corpo. Aceitou prontamente a alcunha, imposta como castigo, por querer partilhar sempre uma das minhas latas de salsicha, uma das poucas viandas que se tragavam na ração de combate para além da sardinha portuguesa e da enlatada carne de vaca” Fray Bentos” made in South África.
O Cachicha, maconde e como tal “católico”, não tinha problemas em comer carne de porco. Os outos macuas islamizados dispensavam o pecado por respeito a Alá, embora outro tanto não fizessem em relação à cerveja, quando esta aparecia no pacote. Este pecado do álcool, talvez Alá tolerasse. Talvez, por ser um pecado mais líquido, mais fluido, menos encorpado, mais evaporável. As salsichas eram sólidas, de aspecto fálico e eram mesmo o pecado da carne, da carne do sujo porco.
Era comum entre macuas e macondes a troca de latas de sardinha por latas de salsicha, cambio sempre inflacionado a desfavor dos macuas. A Manutenção Militar do Exército nunca teve em conta a confecção das rações de combate em função da religião destes soldados. Eles como não comiam as pecaminosas salsichas, ou as deitavam fora ou teriam de aceitar o preço de troca imposto pelos macondes que geralmente só abriam mão de uma de sardinha em troca de duas ou até três de salsicha.
O Cachicha gostava de comer. De tudo comia na ração de combate. Seus dentes afiados de maconde davam-lhe todas as vantagens nessa tarefa. E mesmo depois de barganhar aos seus camaradas macuas duas ou três latas de salsicha, por apenas uma de sardinha, quase sempre abeirava-se de mim com o mesmo discurso:
- Siliva, nosso pai, anipe cachicha moja.( Silva dá-me uma lata de salsicha)
Depois de tantas vivências de tantos perigos partilhados, de tantos minutos com estatuto de horas, de tantas esperanças de que o pior não iria acontecer e que o melhor estaria sempre para chegar, eu já entendia a outra língua, para eles mais espontânea, mais corrida, mais natural.
Neste crioulo suaíli-macua-português, eu o Silva que me orgulhava de ser tratado de pai por todos eles, macuas e macondes, acabei por entender: Silva, nosso pai dá-me uma lata de salsicha. Deste saboroso crioulo e do engraçado modo como corrompia a palavra salsicha, e ainda porque o seu original nome maconde se tornava difícil ao meu chamamento, assim mesmo o renomeei: Cachicha.
O Cachicha aceitou. E Cachicha ficou “oficialmente” a ser Cachicha.
. Cachicha, digo-te que hoje eu já não sei se recordo a guerra, ou já recordo as recordações da guerra. Na minha memória há uma linha ténue onde se misturam e confundem as vivências passadas com os pesadelos presentes. Nessa bruma esbatida ainda te revejo camuflado na tua demasiada farda, de G3 aperrada ao peito de olhos e ouvidos sempre em alerta.
Cachicha gostava de ver-te, de abraçar-te, de falar contigo em Suaíli ou português. Sei que a vossa esperança de vida aí em Moçambique é curta, e tu eras bem mais “kokuana” do que eu. Possivelmente já por aí não estás, mas onde quer que te encontres quero deixar-te um abraço e manifestar-te a minha gratidão. Gratidão pelas vezes que me salvaste a vida com os conselhos e avisos de quem sabia de cor cada palmo dessa terra, porque nela nasceste, cresceste e te fizeste soldado, talvez no lado errado da guerra se é que essa guerra teve algum lado certo. Foram os anos onde os jovens do meu e do teu país morriam e matavam por razões que nem eu sentia, nem tu entendias. Bem hajas Grande Cachicha! Tenho “maningue” saudades vossas.
Cachicha gostava de ver-te, de abraçar-te, de falar contigo em Suaíli ou português. Sei que a vossa esperança de vida aí em Moçambique é curta, e tu eras bem mais “kokuana” do que eu. Possivelmente já por aí não estás, mas onde quer que te encontres quero deixar-te um abraço e manifestar-te a minha gratidão. Gratidão pelas vezes que me salvaste a vida com os conselhos e avisos de quem sabia de cor cada palmo dessa terra, porque nela nasceste, cresceste e te fizeste soldado, talvez no lado errado da guerra se é que essa guerra teve algum lado certo. Foram os anos onde os jovens do meu e do teu país morriam e matavam por razões que nem eu sentia, nem tu entendias. Bem hajas Grande Cachicha! Tenho “maningue” saudades vossas.
Durante a instrução GE no Dondo (Beira) Julho de 1973 |
Manuel Neves Silva Ex Furriel Miliciano de Armas Pesadas
Contos da Guerra Colonial -Cabo Delgado -Moçambique 1972.1974
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