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Lusaka, 7 de Setembro de 1974-Celebração do Acordo |
No dia 7 de Setembro de 1974 o novo Governo português saído do golpe de 25 de Abril reconheceu oficialmente a FRELIMO como única e legítima representante do povo de Moçambique (Bragança, 1986). O acordo assinado na cidade zambiana de Lusaka estabeleceu um governo de transição que devia preparar as condições para a declaração da independência total a 25 de Junho de 1975. O acordo ignorou as mais de duas dezenas de formações políticas (partidos e movimentos) que reclamavam um lugar nas negociações sobre a independência e o futuro do país (Souto, 2011). Enquanto a esmagadora maioria africana e a ala liberal da comunidade europeia celebrava efusivamente os acordos de Lusaka, os colonos conservadores consideraram‑no uma traição do Governo português (Mesquitela, 1977: 79). Numa tentativa desesperada de deslegitimar o acordo, os colonos conservadores enfurecidos ocuparam o Rádio Clube de Moçambique (estação radiofónica nacional) e o aeroporto na capital Lourenço Marques, autoproclamando‑se Movimento de Moçambique Livre (MML). Durante os quatro dias que se seguiram à tomada do Rádio Clube, de 7 a 10 de Setembro, Lourenço Marques foi assomada por uma onda de violência que reclamou “largas centenas de mortos”
2 Embora muito tenha sido escrito sobre os acontecimentos de 7 de Setembro, sabemos ainda muito pouco sobre a forma como a população africana de Lourenço Marques reagiu à insurreição colona. Grande parte dos estudos que se debruçam sobre o período de transição para a independência de Moçambique, entre memórias autobiográficas, monografias e artigos, oferecem quatro perspectivas sobre o 7 de Setembro. Uma é a perspectiva dos insurrectos que, em reacção aos Acordos de Lusaka, decidiram tomar de assalto o Rádio Clube ).A segunda é a perspectiva da liderança da FRELIMO que, estando ainda em Lusaka, sentiu‑se traída perante os acontecimentos de Lourenço Marques e as suas possíveis implicações para os termos de transferência de poderes então assinados na capital zambiana A terceira perspectiva é a do Exército colonial português que, estando dividido entre a oposição e o apoio aos insurrectos, acabou chamando para si a responsabilidade de pôr termo à insurreição . Por fim, a quarta perspectiva diz respeito ao sector colonial progressista, que desde princípios da década de 70 vinha assumindo uma posição cada vez mais anticolonial e, depois do 25 de Abril, passou para uma posição claramente independentista e pró‑FRELIM
Lourenço Marques, 7 de Setembro de 1974 Manifestantes na varanda do Rádio Clube |
6 No entanto, a forma como os militantes clandestinos da FRELIMO se organizaram para retomar a rádio a partir da Mafalala e a rede de contactos que se estendia a vários bairros do chamado “caniço” ainda não foram objecto de análise. Tomando como ponto de partida a resistência organizada a partir da Mafalala, este artigo explora o imaginário político que animou as elites africanas da cidade capital e as impeliu a formar um movimento de contra‑insurreição. Defendo que a militância clandestina a favor da FRELIMO em Lourenço Marques não significa que tivesse havido uma comunhão no imaginário político entre os revolucionários da Frente de Libertação e as elites africanas da capital. Nas condições especificamente distintas do meio urbano da capital colonial moçambicana floresceu entre estas elites um imaginário político marcado por um nacionalismo moderado. Embora muitos militantes clandestinos da FRELIMO em Lourenço Marques vissem o seu trabalho político como parte da luta de libertação encabeçada pela Frente de Libertação, quase todos desconheciam os alicerces ideológicos que se vinham consolidando na Frente, que desde 1969‑70 passara de um movimento puramente nacionalista para uma verdadeira frente revolucionária de orientação marxista . Nos últimos anos da guerra, a FRELIMO passou a assumir posições cada vez mais exclusivistas e vanguardistas, que haviam de se confirmar e consolidar a partir dos primeiros anos da independência Parte da tensão que veio a existir entre a FRELIMO e algumas elites africanas de Lourenço Marques logo após a tomada de posse do governo de transição deveu‑se ao descompasso ideológico que a distância e muitas outras barreiras criaram entre os que lutavam de armas no norte do país e os que mobilizavam militantes e fundos de forma clandestina no Sul. A heterogénea composição do grupo Galo da Mafalala é um claro indicador de que, por inerência das circunstâncias, desenvolveram‑se entre as elites africanas de Lourenço Marques formas de ver e pensar o futuro de Moçambique distintas da FRELIMO
8 O nível de desenvolvimento de Lourenço Marques em relação ao resto do país possibilitou a existência de uma pequena elite africana urbana. A bifurcada cidade capital era dividida entre o moderno e ordenado cimento (ou xilunguine), exclusivamente reservado à população europeia, e o “caniço”, labiríntico, sem saneamento, e de construções precárias onde se apinhava a maioria africana como reserva de mão‑de‑obra barata para o cimento. Entre 1960 e 1970 o número de habitantes nos subúrbios de Lourenço Marques passou de cerca de 123 000 para 360 000. Era aqui que morava a pequena elite africana. De facto, o que os distinguia da maioria era um certo nível escolar e uma formação profissional que lhes garantia posições subalternas nos serviços da administração colonial, como professores nas escolas indígenas, intérpretes, enfermeiros, escriturários, guarda‑livros, entre outros.Uma parte deles havia adquirido o estatuto de assimilado como uma estratégia para escapar dos impedimentos de promoção social a que estava voltada a maioria da população considerada indígena, sobretudo o acesso à educação ). Foi entre esta pequena elite africana (assimilados e não assimilados, negros e mestiços), que emergiu e cristalizou‑se o sentimento anticolonial e nacionalista entre finais da década 50 e princípios da década 60. E seria desta elite que sairia grande parte dos jovens nacionalistas que se juntaram à FRELIMO em Dar‑es‑Salaam em sucessivas vagas de fugas clandestinas a partir de 1962‑63
Luta clandestina e o imaginário político da elite africana de Lourenço Marques
9 Embora Lourenço Marques tenha sido palco de intensa actividade e contestação política desde a geração de O Brado Africano dos Albasini até aos jovens do Núcleo dos Estudantes Secundários Africanos de Moçambique, a visita de Eduardo Mondlane em 1961 galvanizou grande parte da elite africana, sobretudo a juventude estudantil da cintura Lourenço Marques‑Gaza. Pode argumentar‑se que grande parte da actividade clandestina de cariz marcadamente nacionalista começou nessa altura, e intensificou‑se depois da fundação da FRELIMO um ano depois. No bairro da Mafalala e arredores, Amaral Matos e Nuno Caliano da Silva foram alguns dos primeiros militantes clandestinos da FRELIMO. Quando a FRELIMO decidiu criar a IV Região Militar, a fim de lançar as bases para o desencadeamento da luta armada no sul de Moçambique, Amaral Matos e Nuno Caliano, juntamente com José Craveirinha, Malangatana Valente, Luís Bernardo Honwana, Abner Sansão Muthemba, entre outros, desempenharam um importante trabalho de mobilização e propaganda a fim de angariar fundos, conquistar simpatizantes e potenciais militantes. Matias Mboa refere nas suas memórias que quando foi enviado a Lourenço Marques em 1964 como chefe do Comando Operacional da IV Região Militar, em coordenação com Joel Maduna Xinana, comissário político da IV Região, o seu trabalho consistia em consciencialização política, distribuição de panfletos sobre a FRELIMO e formação de núcleos políticos10 No entanto, num depoimento de 1991, Amaral Matos reconhecia que os chefes das células clandestinas na cidade não se encontravam com frequência, podendo ter intervalos de meses entre esporádicos encontros. De facto, um dos primeiros aspectos que salta à vista nos depoimentos dos combatentes da clandestinidade é a dificuldade que havia em manter as linhas de comunicação com Dar‑es‑Salaam. O cerco montado pela PIDE fazia do trabalho de mobilização na capital e em toda a região sul da colónia um verdadeiro calvário. A situação ficou ainda mais difícil depois das massivas prisões de finais de 1964 e princípios de 1965, das quais resultou o desmantelamento da IV Região. As prisões continuaram a verificar‑se regularmente até 1970‑72, o que deixou uma grande fissura entre a frente nacionalista sedeada na Tanzânia e os militantes clandestinos de Lourenço Marques Depois das prisões em Lourenço Marques e do “sequestro” dos 75 “refugiados moçambicanos” na Suazilândia, todos recambiados para as várias cadeias da PIDE (em particular a penitenciária da Machava), houve um grande refreamento na fuga de jovens para se juntarem à FRELIMO. Estes golpes, que resultaram na quebra parcial dos contactos entre o sul de Moçambique e a FRELIMO, aconteceram numa altura em que a Frente de Libertação ainda não tinha amadurecido ideologicamente e se encontrava a braços com a conflituante coexistência de várias tendências ideológicas e nacionalistas, que culminaram com a grande crise interna de 1968. Os líderes da luta clandestina em Lourenço Marques, quase na sua totalidade presos entre 1964 e 1965, e em sucessivas vagas até 1970‑72, não acompanharam as lutas ideológicas dentro da FRELIMO. Muito menos o crucial processo de “radicalização do movimento a partir de 1968, da qual nasceu o projecto
11 Enquanto a FRELIMO se consolidava como uma frente de orientação marxista de cariz revolucionário, em Lourenço Marques o imaginário político dos nacionalistas clandestinos e das elites africanas que continuavam a ganhar consciência política foi tomando características próprias. A distância entre Dar‑es‑Salaam e Lourenço Marques, ferozmente imposta e guarnecida pela PIDE, era muito grande. Duas importantes arenas condicionaram e enformaram o imaginário político das elites africanas da capital: a cadeia da Machava e a interacção cada vez maior entre as elites africanas e o grupo progressista de intelectuais europeus antifascistas, designados Democratas de Moçambique.
12 Muitos antigos presos políticos que passaram pela penitenciária da Machava consideram a cadeia a sua “escola nacionalista.” Do contacto com outros presos politicamente mais maduros e militantes de primeira linha da Frente de Libertação, muitos presos vieram a conhecer a FRELIMO e os objectivos da sua luta. O exemplo do enfermeiro Gonçalves Chachuaio é um caso ilustrativo. Condenado a 6 anos de prisão na penitenciária da Machava em Dezembro de 1965, Chachuaio envolveu‑se ali com questões políticas pela primeira vez. Partilhou a cela com vários nacionalistas presos. Foi a partir desses contactos que Chachuaio conheceu os estatutos e o programa da FRELIMO, viu pela primeira vez as cores da bandeira do partido e ouviu os hinos da luta. De facto, a penitenciária, enquanto espaço de violência por excelência, era também uma importante arena de consciencialização e actividade política.6 Nas palavras de um outro preso político, Amós Mahanjane, foi grande a actividade de consciencialização política entre os prisioneiros: “aqueles que entraram e que não tinham nada a ver com política, incluindo religiosos, se tornaram políticos”
13Durante o período de cárcere, com raras excepções, os prisioneiros perderam o rasto da evolução da luta armada e as transformações por que passou a Frente de Libertação. Todos os antigos presos políticos da Machava que entrevistei foram unânimes em afirmar que durante a sua prisão não tinham meios de saber notícias sobre a evolução da FRELIMO.7 Os presos que foram soltos antes de 1974 não voltaram a desempenhar qualquer actividade política até ao golpe de 25 de Abril. Como afirmou Rui Nogar, solto em 1968, “outra actividade não tivemos, até porque não havia orientações muito claras em relação à luta. A Frelimo que lutava estava ainda muito distante” (Chabal, 1994: 177). Abner Sansão Muthemba, solto em 1969, reforça: “durante os três anos passados sob vigilância fora da cadeia não podíamos sair da cidade sem autorização da polícia nem sequer chegar, por exemplo, ao Bairro da Machava. Todas as quartas‑feiras eu devia apresentar‑me à PIDE” (Mussanhane, 2012: 204). Muitos eram evitados pelos amigos e vizinhos, por medo de serem implicados e importunados pela PIDE, como conta Albino Magaia: “depois de sairmos da cadeia, houve pais que aconselharam os filhos a não contactar comigo porque era perigoso. Os vizinhos também afastaram‑se, tinham medo de mim” (ibidem: 97). Os que conseguiram singrar nos empregos ou nos estudos (alguns com a ajuda da própria PIDE) descobriram que embora a situação fosse difícil, começavam a abrir‑se algumas brechas no sistema colonial que davam algumas possibilidades materiais e sociais nunca antes sonhadas para os africanos. Quase ninguém que havia sido preso e solto depois de 1965 conseguiu fugir para se juntar à FRELIMO.
15 A interacção entre os Democratas de Moçambique e as elites africanas de Lourenço Marques intensificou‑se durante o período da repressão da PIDE. Um dos momentos mais importantes dessa aliança foi o julgamento em Março de 1966 dos militantes da FRELIMO que haviam sido presos entre 1964 e 1965, no âmbito da frustrada tentativa de montar a IV Região. Apesar de a maioria ter sido condenada pelo tribunal militar, a actuação dos advogados que se bateram pela sua defesa constituiu um ato notável de desafio à ordem colonial (Souto, 2007: 372). Os Democratas viam na defesa daqueles militantes um ato de afirmação da sua posição política antifascista. Para as elites africanas, a aliança com os europeus liberais era um importante escape às limitações impostas pela PIDE e pela subjugação racial própria da sociedade colonial, não apenas para actividades políticas mas também para a criatividade cultural e artística.
16 Nos momentos conturbados, mas também excitantes da actividade política entre finais dos anos 50 e princípios de 60, houve grandes amizades entre algumas elites africanas e europeus progressistas, com profundas implicações na formação do pensamento político em ambas as partes. Por exemplo, pessoas como Luís Bernardo Honwana, Albino Magaia e Malangatana Valente mantiveram fortes laços de amizade com progressistas como Pancho Guedes, Bertina Lopes, Virgílio de Lemos, Rui Nogar, entre outros. Este constituía, em grande parte, o mesmo ciclo de amizades que se estendia até ao bairro da Mafalala onde residiam Amaral Matos e Nuno Caliano (líderes do grupo Galo).
17 É preciso enfatizar que, do ponto de vista formal, não houve uma aliança política entre os Democratas enquanto grupo de oposição e os nacionalistas da clandestinidade enquanto militantes da FRELIMO. Como alerta Amélia Souto, a repressão da PIDE e a sua infiltração nas células clandestinas tinha “tornado extremamente difícil qualquer contacto político directo com eles por membros fora do grupo” (ibidem: 367). Rui Baltazar, membro dos Democratas, foi um dos únicos que conseguiu participar no primeiro encontro com os elementos da FRELIMO aquando da sua tentativa de penetração no Sul, devido à grande amizade com alguns elementos nacionalistas, nomeadamente Rui Nogar (ibidem: 368). A aliança entre europeus progressistas e as elites africanas deu‑se mais ao nível das relações e contactos pessoais, bem como na percepção mútua de que todos estavam no mesmo lado da trincheira contra o regime colonial‑fascista. Foi esta aliança que definiu a natureza do imaginário político que inspirou e sustentou o grupo Galo em Setembro de 1974. A liderança do Galo vislumbrava um Moçambique independente no qual africanos e europeus haviam de juntar forças na construção de um país novo. E essa independência não significava um corte radical com Portugal, mas a reconfiguração das relações entre o novo país e o antigo poder colonial. Para melhor entendermos este posicionamento, é importante examinar detalhadamente o imaginário político dos Democratas e a forma como ele influenciou o pensamento político das elites africanas logo depois do 25 de Abril, altura em que todos os grupos começaram a expor publicamente os seus ideais políticos.
§
14 Muitos dos pri
O 25 de Abril e a efervescência política em Lourenço Marques
18Muitos colonos celebraram efusivamente a
queda de Marcelo Caetano, pois o fim do fascismo significava o fim de meio
século de ditadura em que boa parte das liberdades civis se encontravam
suprimidas. Mas era uma celebração ambígua, pois a grande maioria dos colonos
devia a sua posição social e os privilégios da sua condição de cidadãos de
primeira ao regime colonial.10 Mas o que mais aterrorizava a maioria dos
colonos, em particular os conservadores, era a ideia de um “preto” vir a
governar Moçambique. A ideia de que a FRELIMO era um bando de terroristas
estava enraizada na consciência de muitos, resultado de uma sistemática
propaganda colonial e do silêncio sobre a natureza da guerra. O suposto
“comunismo” dos “turras” era outra causa de grande assombração (Rita‑Ferreira,
1988; Thomaz e Nascimento, 2012).
19Para
a maioria africana o significado do golpe era pouco claro.11 Foi preciso uma intensa actividade de
mobilização e esclarecimento levada a cabo por simpatizantes da FRELIMO para a
maioria africana compreender a real dimensão da situação política da colónia
(Mboa, 2009: 52). Para as elites africanas o golpe era uma clara oportunidade
para se lançarem na luta pela autonomia de Moçambique. Foram justamente as
elites africanas que criaram os primeiros movimentos políticos e assumiram
publicamente um posicionamento em relação ao futuro do país, como o caso do
Grupo Unido de Moçambique (GUMO), liderado por Máximo Dias e Joana Simeão.12 Da leitura dos jornais da época ressalta a
emergência de múltiplos grupos e movimentos políticos pelo país, a partir de
Maio de 1974, especialmente em Lourenço Marques, na Beira e em Nampula.
20No fervor das exaltações políticas do pós‑25 de Abril
que passaram a dominar Lourenço Marques e Beira, e à medida que iam decorrendo
as conversações entre o Governo português e a FRELIMO, a aliança entre os
Democratas e os vários nacionalistas, militantes e simpatizantes da FRELIMO
tornou‑se formal e aberta. Milagre Mazuze, ex‑preso político, lembra que com a
abertura política pós‑25 de Abril, “reuníamos em casa dos militantes com os
democratas de Moçambique; eles diziam que democrata é Frelimo” (Mussanhane,
2012: 615). Estrategicamente, o Movimento dos Democratas de Moçambique (MDM)
assumiu o controlo de quase toda a imprensa, incluindo o Rádio Clube.
21A
16 de Maio, uma delegação do grupo dos ex‑presos políticos, líderes da luta
clandestina em Lourenço Marques, fez uma importante viagem a Dar‑es‑Salaam para
se encontrar com a direcção da FRELIMO. Segundo Fernando Couto, a viagem teria
sido feita a pedido do general Costa Gomes que queria que aquele grupo
convencesse a FRELIMO a aceitar a paz e o cessar‑fogo imediato. A delegação
incluía Rui Nogar, José Craveirinha, Matias Mboa, Josefate Machel, Malangatana
Valente e Rogério Djawana. Porém, a viagem não correu sem dissabores. Em Dar‑es‑Salaam
A delegação foi
recebida por Joaquim Chissano no aeroporto de Dar‑es‑Salam, sendo “efusivamente
abraçados”. Já na sede da FRELIMO a recepção será bem mais fria. Eram vistos
como mensageiros do novo poder em Portugal, vindos da “zona ocupada” e
portadores de mensagens e intenções pouco claras. Logo à chegada, na capital
tanzaniana, um representante da FRELIMO revelou à imprensa que a sua
organização estava preparada para “ouvir o que os antigos prisioneiros
políticos tinham para dizer, mas que eles não se poderiam considerar como
representantes da FRELIMO
A Delegação de ex-presos políticos, na companhia de dirigentes da Frelimoo em dar-Es-Salam |
22As declarações do representante da FRELIMO em Dar‑es‑Salaam
são uma clara indicação de que a Frente de Libertação que os ex‑presos
políticos haviam conhecido em princípios dos anos 60 já não era a mesma. As
intensas batalhas internas pelo poder, as dissidências e os desafios da luta
armada haviam endurecido a liderança da Frente. Mas mais importante ainda, o
facto de a Frente não ter o controlo directo dos espaços urbanos, onde a luta
armada nunca havia chegado, reforçou ainda mais a desconfiança em relação a
todos os movimentos políticos oriundos das cidades. Na
verdade, a FRELIMO assumiu até recentemente uma posição exclusivista de que
apenas os que lutaram de armas contra o regime colonial são os verdadeiros
nacionalistas e legítimos representantes do povo de Moçambique . Matias Mboa sublinha a ansiedade e a incerteza que assomou os ex‑presos
políticos na véspera do encontro com a FRELIMO em Dar‑es‑Salaam. E lamenta o
fim da amizade que um dia o ligou a Samora Machel, com quem fugira em 1963 para
a Tanzânia
23A 5 de Junho, um segundo grupo seguiu para Dar‑es‑Salaam.
O grupo regressou a Moçambique com instruções sobre a necessidade de realizar
campanhas de esclarecimento às populações e divulgar o programa da FRELIMO.
Matias Mboa propôs e dirigiu a criação da primeira sede nacional do Partido
FRELIMO, que foi construída no antigo bar Vasco da Gama, na Avenida Angola . Foi através destes grupos de esclarecimento que jovens como Aurélio Le
Bon, Pedro Bule, Betinho Chissano, Joel Libombo, Chico Seita, Miguel da Mata,
Quina Lima, entre outros, passaram a conhecer a FRELIMO e engajaram‑se na sua
popularização. Apesar de terem trajectórias diferentes – uns estudantes do
liceu, outros militares no Exército colonial – todos vieram a assumir um
importante papel na formação do Galo.
24No entanto, um exame dos discursos dos Democratas e
das elites africanas permite captar um pensamento político moderado. Um
pensamento em que se imaginava um Moçambique independente que mantivesse fortes
ligações económicas, culturais, e até políticas com Portugal. Imaginava‑se a
FRELIMO no poder, mas em estreita cooperação com os elementos mais
progressistas da comunidade europeia. A mais clara visão política de um
Moçambique independente formulada pelos Democratas veio da pena de António de
Almeida Santos, proeminente líder do grupo dos Democratas de Moçambique. Numa
longa “Carta aberta aos Moçambicanos”, Almeida Santos dirigiu‑se aos seus
compatriotas “de origem europeia” com o intuito de esclarecê‑los sobre a
situação política de Moçambique e indicar as possíveis alternativas que a
comunidade branca tinha: “coexistir na base do estatuto de convivência
multirracial que tiver sido negociado, partir, ou deixar‑se cair na tentação de
um movimento de resistência tipo rodesiano. A primeira alternativa era a sua favorita, sendo que
as duas últimas eram, na sua opinião, uma “rematada loucura.” Desacreditando as
várias formações políticas que emergiam em Moçambique, às quais considerava
“embriões de partidos que carecem de sentido”, Almeida Santos urgia os seus
compatriotas a aceitarem um governo de maioria dirigido pela FRELIMO. Para ele
era totalmente inútil fazer um plano de autodeterminação que não visasse a
transferência de poderes à FRELIMO. Mas seria um poder partilhado. Lê‑se nas
entrelinhas da carta que haveria espaço para uma participação da comunidade
branca (certamente os liberais) na constituição desse novo governo, e a
preservação dos “equilíbrios” culturais, económicos, e governativos do regime
anterior. Desconhecedor do projecto de transformação social que a FRELIMO já
vinha experimentando nas chamadas “zonas libertadas” e que seria uma das bases
da sua política exclusivista e vanguardista,14 Almeida Santos dizia, com convicção, que “não me
parece que o primeiro governo negro possa vir a estar interessado em
desmantelar os equilíbrios étnicos, económicos e directivos da época
precedente. Se o fizesse, ele, que tivera o consenso do mundo, num ápice
colheria o seu repúdio (ibidem).
25Esta mensagem, que resfriava os anseios da comunidade
colona em relação à natureza do governo independente de Moçambique, era também
um alerta à liderança da FRELIMO sobre as consequências que haviam de advir da
possibilidade de um governo exclusivista que não integrasse outras forças
políticas e económicas. Alguns Democratas partilhavam a esperança de uma
solução federativa, que melhor possibilitasse a “preservação dos equilíbrios da
época precedente” (ibidem), ou como diziam os conservadores “um Moçambique que
se mantenha fiel às raízes portuguesas, na alma e na cultura” (Mesquitela,
1977: 116).
26Na altura em que escreveu a carta Almeida Santos ainda
não estava a cargo da comissão de descolonização, que poucos meses depois havia
de assinar os termos de transferência de poder à FRELIMO. Em Lusaka não houve
sequer espaço para colocar a possibilidade de federação. Nem sequer o longo
período de transição, o qual se esperava que fosse de 3 a 5 anos. Na carta,
Almeida Santos dizia que “só por impensável inabilidade se cogitaria de uma
passagem do testemunho político dissociada da necessária gradação e adaptação
aos novos equilíbrios sucedâneos.” E concluía que “tudo se há‑de fazer com a
urgência possível, mas também com a demora necessária”.
Ao fim, fez‑se tudo com a necessária urgência e com a possível rapidez, pois a
transição durou apenas 9 meses. Victor Crespo, o almirante que assumiu o cargo
de alto‑comissário no governo de transição, também confessou com amargura anos
mais tarde que a transição durou muito pouco tempo
27Embora Almeida Santos não representasse a diversidade
de posições dentro do MDM, a sua palavra era carregada de muito peso dado o
grande capital social que ele tinha entre europeus progressistas e elites
africanas. Pedro Bule, militante do Galo no bairro do Infulene, lembra a grande
influência que Almeida Santos tinha entre os jovens da sua geração nos
subúrbios da capital:
Almeida Santos teve um papel preponderante na própria pacificação, um papel fundamental. [...] Nós tínhamos um conceito de FRELIMO, que o Almeida Santos incutiu‑nos, que afinal de contas muitos brancos também estavam do nosso lado. [...] A gente via a postura dos Democratas, sobretudo quando se agudizou o movimento da formação dos partidos políticos reaccionários.
António Almeida Santos |
28A carta de Almeida Santos teve ressonância entre as
elites africanas que também partilhavam a visão de um Moçambique plurirracial
que mantivesse os “equilíbrios da época precedente”, ao mesmo tempo que abria
mais as oportunidades sociais para a maioria empobrecida. Domingos Arouca, o
primeiro africano de Moçambique a graduar‑se em Direito, ex‑preso político e um
dos mais respeitados intelectuais africanos entre a elite africana de Lourenço
Marques, também publicou uma série de artigos nos jornais para acalmar os
ânimos políticos que agitavam o país. A mensagem dos seus artigos, entre apelos à
sociedade em geral assim como para a liderança da FRELIMO, não fugia muito da
de Almeida Santos. Defendia a entrega do poder à FRELIMO sem delongas, porque
esta representava a vontade do povo. Mas também apelava à FRELIMO para que
fosse paciente para com aqueles que ainda não estavam seguros com a ideia de um
governo de maioria africana. No dia 7 de Setembro, antes do início dos
tumultos, Domingos Arouca afirmava:
Agora é a própria Frelimo que entre nós tem a palavra, a ela cabe aconselhar e dirigir. Neste momento em que nos sentimos todos irmãos é altura exacta de fazermos promessas pelo futuro. Evitar a violência a todo o transe, tentar compreender as ideias dos que se encontram ainda desajustados e não alcançaram ainda totalmente o que significa viver num país em que muitas Não podemos ordens e valores se modificaram por completo e tendem ainda a modificar‑se mais. impor a eles, de rajada, os nossos credos políticos, porque isso seria negar o significado mais intrínseco do conceito de democracia. Mas podemos tentar o diálogo franco e aberto em que todas as dúvidas e desconfianças encontrem respostas honestas e capazes.
29Domingos Arouca queria certamente instar os colonos,
sobretudo os conservadores que já abandonavam o país, a confiar na FRELIMO. Mas
ao mesmo tempo queria assegurar que a FRELIMO em que ele acreditava havia de
conduzir o país pelos caminhos projectados pelos ideais de convivência
multirracial, inclusão participativa, tolerância, e progresso para todos.
Afinal eram estes os ideais que tanto popularizaram a FRELIMO entre as elites
africanas e europeus progressistas. Os primeiros nacionalistas urbanos que cedo
se aperceberam da radicalização da FRELIMO e da sua tendência marxista tiveram
que conter a sua decepção. No regresso da sua última visita a Dar‑es‑Salaam, o
líder do trabalho de esclarecimento político e criação de células da FRELIMO na
região sul do país, Matias Mboa, teve uma delicada conversa com o seu colega
Ângelo Chichava sobre a escolha do socialismo como modelo político e económico.
Estava assustado com o socialismo, que para si era “o mesmo que dizer comunismo
30Os temores de Matias Mboa viriam a confirmar‑se logo
depois da proclamação da independência. Mas naquele momento, nas vésperas do
Acordo de Lusaka, ainda não se vislumbrava a colisão entre a visão moderada das
elites africanas urbanas e dos Democratas com o exclusivismo da Frente de
Libertação. Trabalhando ombro a ombro, as elites africanas e os europeus
progressistas criaram as condições para a implantação da FRELIMO no sul de
Moçambique. E travaram uma intensa batalha contra o reduto colonial extremista,
do qual foram vítimas de perseguição e atentados de morte.
31A 23 de Junho, o advogado Pereira Leite, do MDM, saiu
ileso num atentado bombista ao seu carro. Cinco dias depois, o Self (a
cantina dos estudantes universitários) foi vandalizado pelos extremistas da
Associação Moçambicana Armada, que tentava destruir a bandeira da FRELIMO ali
hasteada). Os jornais Tribuna, Notícias e Tempo também
foram vítimas de uma série de ataques bombistas. O terrorismo urbano dos
extremistas paramilitares, sobretudo a perseguição dos membros do MDM, da LEMA
e dos líderes do trabalho de esclarecimento, recrudesceu depois da realização,
a 4 de Agosto, de um comício em apoio à FRELIMO na Praça de Touros. E foi neste clima tenso que se iniciou a última
etapa das negociações entre o Governo português e a FRELIMO, em inícios de
Setembro em Lusaka. Procurando apoiar a FRELIMO, um segundo comício foi
organizado no Estádio Salazar (hoje Estádio da Machava).
Manifestação no Estádio Aalazar, a favor da FRELIMO |
32Ao saberem do grande comício, os Dragões da Morte
dirigiram‑se ao estádio. Certamente pretendiam abrir fogo contra a multidão,
como viriam a fazer nos subúrbios horas depois. Os manifestantes dispersaram‑se
ao saber que os “reaccionários” estavam a caminho.Alguns
dos principais líderes do MDM e da LEMA não mais puderam voltar para as suas
casas no cimento. Muitos refugiaram‑se no “caniço”, em particular na Mafalala.
António Sumbana, Ângelo Chichava, Albino Magaia, entre outros ex‑presos
políticos que mantinham uma ligação directa com a FRELIMO, também foram
ameaçados de morte e tiveram que fugir. A
casa de Sumbana, que servia de sede aos militantes da FRELIMO, foi vandalizada
e muito material de propaganda destruído.Matias
Mboa encontrava‑se já em Lusaka. Os
militantes que mantinham directa comunicação com a FRELIMO e recebiam
orientações a partir de Dar‑es‑Salaam haviam abandonado Lourenço Marques nas
vésperas do 7 de Setembro. Embora Amaral Matos e Nuno Caliano fizessem parte da
liderança dos militantes da FRELIMO, não comunicavam directamente com a
FRELIMO. Mas por terem permanecido na cidade em ebulição, acabaram assumindo a
responsabilidade de acolher os europeus que fugiam dos terroristas e dirigiram
as estratégias de defesa dos subúrbios contra as investidas chacinadoras dos
extremistas paramilitares. Foi nesse contexto que emergiu o grupo Galo da
Mafalala.
33Revoltada com a tomada do Rádio Clube, que cheirava a golpe contra a FRELIMO, Gabriela Valério foi ter com o namorado, Aurélio Le Bon, nas primeiras horas do dia 8, trazendo duas facas. Entregou uma ao Le Bon, instando‑o a “fazer alguma coisa.” Ambos decidiram ir ter com os líderes dos grupos de esclarecimento, Matias Mboa (na Matola) e António Sumbana (no Xipamanine). Não os encontrando, resolveram ir a Mafalala, onde haviam participado de algumas reuniões na casa de Nuno Caliano. Aqui encontraram um grupo de cerca de 10 pessoas a discutir sobre os recentes acontecimentos. Entre os presentes, Aurélio Le Bon e Teresa Caliano recordam‑se de Amaral Matos, Orlando Machel (irmão de Samora Machel), Alberto (Betinho) Chissano (irmão de Joaquim Chissano), Quina Lima e Miguel da Mata. Todos lamentavam a falta de orientações da FRELIMO perante a situação e a ausência dos principais líderes. Preocupava‑os acima de tudo a necessidade de proteger os subúrbios dos ataques dos colonos extremistas, bem como a necessidade de conter a possível ira da população africana. Para Gabriela, Le Bon, na qualidade de Comando, podia ajudar o grupo “a pensar estratégias de reacção com alguma perspectiva militar, algo como protecção e vigilância sobretudo dos bairros.”
34Assim nasceu o grupo Galo da Mafalala, que transformou
a casa do casal Caliano em Base Galo. No entanto, importa fazer uma análise dos
condicionalismos que deram ao grupo Galo a composição que ele teve. Acima
examinei o contexto da emergência do imaginário político das elites africanas,
que no grupo Galo eram representadas sobretudo por Amaral Matos (que assumiu a
liderança do grupo), por Nuno Caliano, e por uma série de jovens estudantes
(africanos e europeus) que assumiram papéis importantes no grupo. Contudo, uma
componente importante do grupo Galo foi a participação de jovens militares do
Exército português. Foram eles que, sob coordenação de Aurélio Le Bon, ajudaram
a organizar os aspectos militares do grupo Galo.
35Le Bon havia regressado a Lourenço Marques logo após o
25 de Abril, vindo de Tete, onde havia servido como Comando no Exército
colonial de 1971 a 1974. Foi na guerra que Le Bon, um mestiço de Marracuene,
soube pela primeira vez da existência da FRELIMO e do significado da sua luta. O seu caso é muito comum entre os milhares de
africanos recrutados para o Exército colonial. Muitos foram à guerra sem sequer
saber quem era o inimigo. No máximo sabiam que iam combater uns “turras” que
estavam a destabilizar o norte da província ultramarina. Mas isso não os fez simples colaboradores do
sistema colonial, do qual eles eram também vítimas. Foi no Exército colonial,
no campo de batalha, que jovens como Le Bon, Pedro Bombe e Vasco Sono
despertaram para a natureza política do conflito. Foi na guerra que eles viram
pela primeira vez a bandeira e os símbolos da FRELIMO. Alguns chegaram a furtivamente
ouvir em onda‑curta a Voz
da Revolução emitida pela guerrilha a partir da
Tanzânia.
36Para a compreensão do contexto do surgimento e a
composição do Galo, há dois elementos da contra‑insurgência portuguesa que
importa explicar.Primeiro, a contra‑insurgência portuguesa resultou numa
massiva militarização da sociedade, sobretudo através do grande recrutamento
para o serviço militar e a existência de uma significante parcela da população
de Moçambique (europeia e africana) com posse e capacidade de manejar armas de
fogo. Embora as principais cidades no centro‑sul
de Moçambique tenham estado para além do alcance da guerrilha, muitos
citadinos, incluindo africanos, foram mobilizados a servir na Organização
Provincial de Voluntários e Defesa Civil (OPVDC), uma espécie de milícia
colonial. Nestas unidades paramilitares as pessoas eram instruídas a manejar
armas de fogo e a fazer operações de caça ao homem e vigilância contra supostos
terroristas. Nos tumultuosos dias que se seguiram ao 25 de
Abril, as cidades de Moçambique conheciam um elevado nível de militarização,
pois muitos civis tinham em sua posse armas de fogo. A situação piorou com o
retorno, sobretudo para Lourenço Marques e Beira, das várias unidades militares
vindas dos palcos de guerra. E a posse de armamento, quer por parte dos membros
da OPVDC, quer dos soldados, não definia claramente a sua posição política.
Muitos dos que simpatizavam e apoiavam a FRELIMO juntaram‑se ao grupo Galo,
levando as próprias armas consigo. Os que viam os Acordos de Lusaka como uma
traição juntaram‑se aos insurrectos do Rádio Clube.
Manifestação em Lourenço Marquespró independência |
37Segundo, a contra‑insurgência exacerbou a segregação
dos subúrbios, em particular na capital. Os subúrbios de Lourenço Marques eram
tidos pela PIDE como sendo as maiores fontes de apoio à FRELIMO, em termos de
capital humano e financeiro. Para além do policiamento cerrado instalado
nestas áreas, onde a PIDE tinha milhares de informadores secretos e onde
havia constantes rusgas policiais, a mobilidade dos africanos na cidade de cimento
tornou‑se cada vez mais difícil. Por exemplo, em 1968 o comandante‑chefe do
Exército sugeriu a instalação de um arame farpado para separar os subúrbios da
cidade de cimento com o propósito de defender a cidade da subversão política
que crescia na chamada “cintura negra.”A PIDE se opôs à sugestão, pois acreditava que
ela punha em risco outras estratégias em curso naquelas áreas que visavam
recuperar as mentes e os corações dos nativos. Não obstante, a alienação do
“caniço” em relação ao impressionante desenvolvimento do cimento piorou
consideravelmente até princípios da década de 1970, ao mesmo tempo que
aumentava a consciencialização política Depois de servir o
Exército colonial, muitos africanos recrutados em Lourenço Marques regressavam
para os mesmos bairros suburbanos empobrecidos. A diferença é que eles
regressavam transformados pela experiência da guerra. Os rumores que alguns
teriam ouvido antes de rumar ao norte eram agora realidade. Em certos casos,
alguns soldados regressavam para os mesmos bairros onde figuras proeminentes da
FRELIMO haviam vivido e ainda tinham lá família, como é o caso do bairro da
Mafalala onde os parentes de Samora Machel, de Joaquim Chissano e de Armando
Guebuza viviam. Isto facilitou a integração destes elementos desmobilizados da
tropa colonial no movimento do Galo que se bateu contra as investidas
chacinadoras que as unidades paramilitares dos Dragões da Morte e da AMA
(Amigos de Moçambique Armados) fizeram nos subúrbios durante os tumultos do 7
de Setembro. Foi justamente a sua experiência militar que conferiu ao Galo a
capacidade de organização e resistência dos bairros suburbanos contra as
investidas dos grupos extremistas.
O grupo Galo e a resistência dos subúrbios
38Aurélio Le Bon lembra que depois de ser apresentado
como Comando por Gabriela Ventura, o grupo gizou a estratégia de protecção dos
bairros suburbanos, que consistia em formar unidades de protecção em cada
bairro e controlar as principais entradas. Juntaram os muitos jovens que se encontravam
agrupados na principal ruela de entrada ao bairro da , entre eles o
musculado e famoso Isaías Tembe, que se preparavam para uma acção contra os
insurrectos do Rádio Clube. Através daqueles jovens foi possível passar a
palavra a outros bairros, que rapidamente organizaram os respectivos grupos de
patrulha. Muitos dos jovens que faziam parte dos grupos de esclarecimentos nos
respectivos bairros assumiram a liderança das unidades de protecção. Por
exemplo, Pedro Bule e Chico Seita dirigiram as unidades de Infuleni. Dinis
Muhai trabalhou em Xipamanine. Uma das principais prioridades destas unidades
era conter os ânimos populares e evitar o saque às cantinas que pertenciam a
europeus e asiáticos nas zonas suburbanas. Pretendiam também evitar que a
população africana respondesse com violência aos altos de provocação dos
colonos extremistas. As unidades também deviam estar atentas a qualquer
movimentação dos extremistas, mantendo a Base Galo informada. Betinho Chissano,
a quem coube a tarefa de coordenar e recolher as informações sobre os vários
bairros e unidades de protecção, recorda:
Eu não saía muito. Era o homem da informação. Trabalhava com o Luís Soares. O Luís Soares é que saía com a Gabriela. Como eles eram todos brancos, iam para todos os lados e não eram desconfiados. E eu é que era o centro de informação. Foi na base desse trabalho de disseminação de informação e de mobilização que nós conseguimos entrar nos Quartéis. Em Boane tínhamos o capitão Aurélio Jeremias. Era o nosso homem no Quartel de Boane. Portanto, tínhamos o Quartel connosco. Os soldados negros em Boane estavam prontos, com armas para entrar a nosso favor caso fosse necessário. Na carreira de Tiro nós tínhamos um focal point cujo nome já não me lembro. De tal modo que começamos a receber armamento mais moderno, como bazucas, morteiros, G5, FN. Tudo isso ia para o Manuel Falcão. Essa era a nossa organização. Esse era o nosso trabalho.
Isaías Tembe |
39Como ilustra o depoimento de Betinho Chissano, que é
corroborado por outras fontes, o grupo Galo conseguiu angariar uma considerável
quantidade de armamento vindo dos quartéis da cidade. Na caótica situação em
que se encontrava o Exército colonial, muitos soldados e recrutas que apoiavam
a FRELIMO facilitaram a saída de armamento para a Base Galo. Apesar do grande
aparato de protecção que cobria a Base Galo, o armamento chegava à base sem
dificuldades porque muitos dos militares que a levavam eram conhecidos nos
bairros suburbanos, onde moravam. Joel Libombo, na altura ao serviço do
Exército colonial como Comando, lembra:
Todas aquelas zonas ficaram a saber que haveria um grupo de militares da Tropa Especial. E citavam os nomes de uns de nós que éramos filhos de lá do bairro, que eventualmente passaríamos por lá e que nos deixassem passar. O outro aspecto em que contribuímos sobremaneira foi na captura de armamento desses grupos a quem desarmávamos e levávamos para a base da Mafalala. Levamos muito material.
40Para evitarem a infiltração de agentes do inimigo, sobretudo a entrada das caravanas dos colonos extremistas nos subúrbios, o grupo Galo criou senhas e contra‑senhas de entrada e saída dos bairros. De acordo com vários depoimentos, as senhas mudavam constantemente. No final do dia 8, uma importante decisão foi tomada pela Base Galo, e transmitida a todas as unidades de protecção dos bairros. Todos os bairros deviam observar uma “greve silenciosa.” Os trabalhadores estavam proibidos de rumar ao trabalho no dia seguinte. Segundo Le Bon, a decisão visava evitar qualquer contacto entre africanos e brancos, bem como retirar dos colonos a força de trabalho da qual tanto dependiamNa manhã do dia 9 (segunda‑feira), muitos trabalhadores africanos foram obrigados a regressar a casa pelas brigadas do movimento Galo. A ausência da habitual força de trabalho deve ter alertado os colonos de que algo maior devia estar a ser organizado no interior do “caniço.” O resultado foi catastrófico. Foi justamente nesse dia, 9 de Setembro, que os Dragões da Morte e colonos civis armados de caçadeiras empreenderam um dos mais inconsequentes e brutais ataques aos chamados subúrbios, habitados essencialmente por africanos. Entraram nos subúrbios de táxis e abriram fogo indiscriminadamente contra africanos indefesos. É incerto o número de vítimas deste ataque e incertas as suas reais motivações. É provável que tenha sido uma demonstração de poder para compelir as pessoas a voltarem ao trabalho. Na sua narrativa, Clotilde Mesquitela avança que a direcção do MML não sabia da origem do ataque nem dos seus actores A ser verdade, isto sugere que os líderes políticos da insurreição no Rádio Clube não tinham controlo das suas facções armadas. O MML era, como escreve Ribeiro Cardoso, “tudo ao sabor do momento, sem qualquer organização ou liderança visíveis.” . Os Dragões da Morte, que apoiavam e protegiam os que estavam na estação da rádio, assumiram sempre uma atitude anti‑FRELIMO muito mais radical, e exibiam um racismo mais cru. Pedro Bule relata a forma como viu os ataques dos Dragões da Morte e de colonos civis nos subúrbios:
Clotilde Mesquitela |
Eles começaram com tiroteios. Foi no bairro do Jardim onde vi os primeiros tiros, quando ia para casa, no Infulene. Nessa altura as coisas estavam tão complicadas que a gente já não ia à escola. [...] Repara no conceito que os colonos tinham de nós: um povo pacífico, seus empregados, seus moleques, obedientes, pacatos, patetas. Então eles achavam que podiam fazer de nós o que quisessem. Agora, não sei se eles vieram aos bairros aos tiros porque nós, nos nossos bairros, erguemos as bandeiras da FRELIMO e isso lhes causava irritação. Eles não enfrentavam grupos concentrados. Apanhavam um cidadão qualquer e mandavam tiros de pressão de ar, caçadeiras, e feriram muitas pessoas.
41Nos
subúrbios, onde muitas casas eram feitas de caniço e “madeira e zinco”, as
balas perfuravam as paredes com facilidade e vitimavam mortalmente gente
indefesa que procurava abrigar‑se dos ataques. O caos estava instalado. O grupo
de coordenação na Base Galo emitiu uma segunda ordem. Era preciso barricar
todas as entradas dos subúrbios, incluindo a ligação Lourenço Marques‑Matola.
Nenhum carro devia entrar nos bairros sem ser revistado. Pedro Bule recorda o efeito imediato desta
decisão:
Bloqueamos a Avenida de Angola. Bloqueamos a Maquinag. Quando se sai da auto‑estrada, ali era o nosso limite. No Infulene tem aquela estrada que vem do Estádio da Machava e aquilo tem entradas. Então fizemos barricadas ali. […] A ordem era não deixar portugueses entrarem nos bairros. Até aí estava tudo tranquilo. Mas a agressão continuou.
Pedro Bule, no lado direito ao centro com roupa castanha |
42De facto, os ataques dos extremistas continuaram,
tornando o trabalho do grupo Galo de conter a ira popular ainda mais difícil.
Para além dos ataques, os membros do MML continuavam a incitar ao ataque os
elementos da FRELIMO, a partir dos microfones do Rádio Clube. Ché Mafuiane, que
se encontrava entre a população enraivecida de Chamanculo, com
catanas, paus, pedras, ferros e matámos muitos. Parece sanguinário dizer isto
hoje, mas estou aqui a retratar um momento real. À medida que a “massa de gente” enraivecida
pelos ataques dos extremistas foi crescendo nos subúrbios, progredindo em
direcção à cidade de cimento, foi deixando um manto de destruição à sua
passagem. As descrições de como alguns colonos foram mortos, em casa, nas
cantinas, ou tentando fugir para a África do Sul não deixam de ser chocantes.
Pedro Bule lembra um desses actos de revolta:
Vinha um carro e, como a gente tinha aquelas barricadas ali, não passava. Para ser queimado não demorava 30 segundos. Mas não era queimado em pé. Quando o carro chegava rodeávamo‑lo, depois levantávamos, virávamos para o ar com os seus passageiros. Queimávamos e toda a gente carbonizava lá dentro. Era muita fúria. Esta estrada para o aeroporto aqui na Avenida de Angola, eram cadáveres, não eram brinquedos, eram cadáveres mesmo. Eu vi uma senhora que estava a andar e, de repente, vi um indivíduo com uma catana a cortá‑la. Em pouco tempo a branca havia ficado sem seios. Vi gente a ser queimada. Não foi pouca gente. De repente ficou clara a relação entre nós e os brancos. Os brancos que estavam connosco não sofreram isso porque a gente os conhecia..
José Manuel Gomes Santos, o popular locutor que incitava a revolta no Rádio Clube |
A retomada do Rádio Clube e o fim da insurreição
colona
43Inicialmente o grupo Galo considerou uma operação militar desenhada por Le Bon que consistia em assaltar a estação da rádio com morteiros e cortar a fonte de electricidade de todo o prédio. Segundo Le Bon, esta operação teve que ser cancelada porque os insurrectos tomaram conhecimento e reforçaram a guarda. Miguel da Mata, indicado para sabotar a linha de fornecimento da electricidade, ouviu o seu nome pela rádio, em casa da irmã, por onde passara a caminho do local da acção. Através de agentes infiltrados no grupo Galo, os insurrectos haviam sido alertados sobre a operação, o que obrigou Le Bon a esconder Miguel da Mata.
44Na manhã do dia 10, quarto dia da insurreição, ficou
claro para o grupo Galo, para o Exército português, bem como para o MML que era
eminente a chegada da população africana na zona baixa da cidade. O então
comandante do AB‑8 (aeródromo‑base 8 anexo ao aeroporto de Lourenço Marques),
Tenente‑Coronel Jorge Ribeiro Cardoso, recorda o terror que teve quando
sobrevoou a cidade capital nessa manhã:
No dia 10 sobrevoei os negros a avançar para a cidade do cimento. Foi de arrepiar: o que se via era milhares de negros a caminhar por todas as estradas que levavam às entradas da Lourenço Marques dos brancos. Pareciam multidões de formigas, aos milhares, a avançar em direcção à cidade. Não se via o chão. Assustador. De lá de cima é que se tinha uma ideia de conjunto do que estava prestes a acontecer.
45Embora já tivesse recebido indicações de Lisboa para repor a ordem na cidade, o Comando do Exército português em Lourenço Marques não sabia como tomar a rádio. A delicada decisão de invadir a rádio estava nas mãos do Coronel Melo Egídio, Chefe do Estado‑Maior do Comando Territorial Sul e do Comando Operacional de Lourenço Marques. Segundo Ribeiro Cardoso, reinava incerteza e indecisão no quartel‑general da capital. De facto, “a prioridade da chefia militar era encontrar maneira de silenciar o RCM [Rádio Clube], mas estava‑se num beco sem saída porque se queria a todo o custo evitar o que chamavam banho de sangue” . Nessa mesma manhã do dia 10, de Nampula, onde se encontrava o Comandante‑Geral do Exército, General Orlando Barbosa, duas companhias de Comandos haviam sido despachadas para a capital para repor a ordem. A caminho estava também o primeiro grupo de guerrilheiros da FRELIMO que vinha fazer parte da comissão militar conjunta. As duas companhias de Comandos chegaram no mesmo dia à capital. Os guerrilheiros da FRELIMO só chegariam no dia seguinte.
Coronel Melo Egídio |
46Desconhecendo o impasse do Exército português, Quina Lima, um dos membros da liderança do Galo, decidiu ir ao quartel‑general, que fica a alguns minutos de caminhada a partir de Mafalala. Queria falar com o comandante do Exército para o convencer a falar com o grupo da Mafalala. Só com muita insistência é que Quina Lima foi recebido pelo Coronel Melo Egídio. Lima revelou ao chefe militar a existência de uma organização de resistência baseada no bairro da Mafalala que possuía uma senha capaz de parar a multidão e evitar que ela chegasse ao Rádio Clube. Mas apenas a recuperação da rádio permitiria o anúncio da senha e faria com que a multidão recuasse. Lima revelou ainda a capacidade militar do grupo da Mafalala, e alertou que o grupo já estava a equacionar um ataque à rádio com recurso a armas pesadas em sua posse (como morteiros). Preocupado com um possível ataque vindo da Mafalala, para além da eminente chegada das populações à baixa, Melo Egídio pediu a Lima que chamasse os seus companheiros.
47Na Base Galo, Lima teve primeiro que desculpar‑se por
ter quebrado o protocolo e ter ido ao quartel‑general por iniciativa própria
sem ter discutido com o grupo. Sob chefia de Amaral Matos, a liderança do Galo
seguiu para o quartel‑general. Aurélio Le Bon recorda como foi criada a senha
que havia de ser levada à rádio caso a operação desse certo:
Dentro da viatura e prontos para partir, o Betinho Chissano sugeriu que deixássemos orientações para que o comité passasse nas próximas reuniões às outras células. “Pelo menos uma senha que todos fiquem a saber caso tudo corra bem e haja a oportunidade de se difundir pela Rádio.” Amaral Matos concordou e decidimos criar uma senha. “Galo, Galo”, respondeu o Betinho. [...] “Amanheceu!” Sugeri. “Agora sim, faz sentido. A senha a ser enviada a todos os comités de coordenação e resistência está aprovada: GALO. GALO. AMANHECEU. Vamos embora e desejem‑nos sorte e bom trabalho a todos. Sentenciou o chefe Amaral.
48Assim surgiu a senha que deu o nome ao grupo da Mafalala. Chegados ao quartel‑general, os líderes do Galo foram ouvidos por Melo Egídio. Entre os presentes, Melo Egídio reconheceu Aurélio Le Bon, que fora seu “tropa” quando era comandante da Zona Operacional de Tete (ZOT). Le Bon confirmou a existência da organização sedeada na Mafalala e acrescentou que muitos dos seus colegas africanos do batalhão de Comandos faziam parte da resistência. Ainda fez menção à posse de armamento pesado e que alguns dos seus antigos colegas de tropa estavam dispostos a apoiar as populações africanas em caso de fogo aberto vindo dos colonos conservadores.Convencido, Melo Egídio decidiu lançar o assalto à rádio. Nessa altura já tinha o aval do General Orlando Barbosa, que entretanto havia chegado a Lourenço Marques com duas companhias de pára‑quedistas. Melo Egídio apontou Le Bon para dirigir a operação e ordenou que lhe dessem um fardamento de alferes. A ideia era que Le Bon seguisse para o Rádio Clube acompanhado por uma brigada de pára‑quedistas, e assim que fosse tomada a rádio assumisse os microfones. Entretanto, os seus companheiros da Mafalala deviam permanecer no quartel.
Aurélio LeBon no Quartel General em Lourenço Marques |
49Entretanto, o desgaste que o MML sofria, e
a não‑adesão do Exército e do Governo de Portugal à sua causa eram um sinal
claro que a sua “revolução” havia chegado ao fim. Através do coronel Cunha
Tavares (comandante da PSP), Gonçalo Mesquitela, um dos líderes da insurreição,
mantinha conversações com o quartel‑general. Entretanto os aeroportos já haviam
sido recuperados pelo Exército. Dentro da cabine da rádio os líderes do MML já
viviam o medo da eminente invasão, e preparavam‑se para entregar a rádio,
enquanto lá fora as vozes embargadas dos milhares de colonos desesperados
entoavam canções da pátria amada e içavam a bandeira das cinco quinas. Passavam
já quatro dias e a “revolução” não tinha mais força. Com alguma dificuldade, a
brigada de pára‑quedistas que acompanhava Le Bon conseguiu abrir caminho até à
cabine da rádio, no segundo andar, sem resistência. Dentro da cabine já se
estava à espera de um tal representante da FRELIMO que havia de acalmar as
populações. Esta entrada no Rádio Clube é descrita por Mesquitela nos seguintes
termos:
O coronel
Tavares regressa, entretanto, e traz consigo um representante da Frelimo que
fora buscar ao Quartel‑General, e que vem fardado de alferes do Exército
Português (se o não era)… Explica aos presentes na cabine que esse
representante da Frelimo vai falar aos camaradas porque, assim, terminarão
imediatamente os massacres que se estão a dar em muitos pontos da cidade.
Segundo diz o alferes, utilizará uma senha previamente combinada com todos os
elementos da Frelimo, que será o sinal para pararem. Confirma assim o que o
comité da Revolução tinha suspeitado. Tudo estava combinado entre a Frelimo e
as Forças Armadas.
Coronel Tavares, chefe da Polícia em Lourenço Marques ao chegar ao Rádio clube |
50A
clandestinidade da actuação do grupo Galo cimentou a ideia, entre os
insurrectos do Rádio Clube, de que era a FRELIMO quem estava a orquestrar a
resistência nos subúrbios. Mas a FRELIMO ainda não tinha chegado à cidade
capital. Apenas no dia seguinte, a 11 de Setembro, é que os primeiros
guerrilheiros da FRELIMO, chefiados por Alberto Chipande, haviam de chegar a
Lourenço Marques. Até então o grupo Galo actuou por iniciativa própria, sem
orientação directa da FRELIMO. Como refere Chico Seita,
havia uma série
de grupos. A FRELIMO um dia vai ter que reconhecer que de fato houve gente
anónima que fez uma mobilização terrível. Quer dizer, é diferente ter alguém da
FRELIMO que veio de Dar‑es‑Saalam. Nós não tínhamos nada disso. Ali no Infulene
não conheci ninguém da FRELIMO. Éramos nós apenas.
A chegada da Frelimo a Lourenço Marques |
51A
entrada de Le Bon no Rádio Clube foi muito facilitada pela sua camuflagem, como
militar português, que lhe garantiu as necessárias credenciais. Mas tal
disfarce não havia de durar muito tempo. A situação dentro da cabine era
bastante tensa e podia explodir a qualquer momento. Como Le Bon recorda,
“coloquei‑me junto de uma G‑3 que estava encostada na parede para me defender
caso algo corresse mal.” Ricardo Saavedra e Clotilde
Mesquitela oferecem com detalhe o discurso, interrompido de
música de quando em vez, que Le Bon proferiu quando assumiu os microfones:
O alferes, com uma voz perfeitamente controlada, começa a sua alocução.
“Galo, galo, galo amanheceu. Peço a todos os camaradas que se dirijam
ordeiramente e com a maior calma possível para todos os pontos da cidade, a fim
de controlarem as massas que se dirigem para o centro da cidade… Galo, galo,
galo amanheceu. Galo amanheceu. [...] Calma, honraria, um desejo intenso de
construir Moçambique, de acordo com o programa assinado no dia sete de Setembro
em Lusaka, passa a ser a palavra de ordem para o povo todo de Moçambique, a
partir deste momento…O Rádio Clube de Moçambique foi entregue às forças
policiais que o colocaram sob controlo das Forças Armadas, a quem compete
garantir a paz ao povo de Moçambique, até à entrada em exercício, em breve, do
novo governo para Moçambique, cuja constituição ficou estabelecida em Lusaka.
Viva o Presidente de Portugal. Viva António Spínola. Viva Samora Machel.
Atenção, camaradas. Galo, galo amanheceu. Foi esta a senha combinada por todos
os camaradas. Dêem a vossa ajuda. Viva o Presidente Samora Machel. Viva o
Presidente António Spínola.
52Os vivas a Samora Machel e a credibilização dos acordos de Lusaka acabaram com o disfarce de Le Bon. O Coronel Cunha Tavares regressou à cabine da rádio aos gritos, “fomos traídos! Fomos traídos! A senha do Galo, galo amanheceu é a ordem de ataque. Nos sítios indicados nestas mensagens já estão a ser massacradas todas as pessoas. Será impossível detê‑los” . De imediato, um dos jovens insurrectos, “ao ouvir isto, dispara o seu revólver, mas tão nervoso estava que não acertou no frelimo” . Le Bon recorda que conseguiu escapar pulando pela janela e correndo para a sede da polícia que fica a um bloco da estação da rádio.No entanto, a essa altura, a operação não podia ser mais interrompida. Na verdade, o que alarmara o Coronel Tavares eram as notícias que chegavam dando conta de que as populações enfurecidas se aproximavam da estação da rádio e que tinham deixado um manto de destruição e morte pelo caminho. O quartel-general reforçou as ordens e um grupo de pára-quedistas foi enviado para tomar a rádio à força, enquanto Le Bon regressava pela segunda vez ao Rádio Clube, para repetir o apelo.
53De novo na cabine Le Bon assumiu o comando dos microfones e anunciou que o “golpe” tinha acabado. Nessa altura toda a liderança do MML já havia abandonado a Rádio. Fora da estação da rádio as tropas dispersaram as largas centenas de manifestantes pró‑MML que ainda se mantinham no local. Le Bon continuou ao comando dos microfones enquanto esperava que locutores profissionais chegassem à estação. “Depois de acalmar as populações, não sabia o que fazer com o microfone. Tentei dizer mensagens de paz e independência, mas não conhecia as palavras de mobilização e canções da FRELIMO. Entretive as pessoas lendo o Acordo de Lusaka que tinha sido publicado no Diário de Notícias.”
54Um dos aspectos importantes desta história é a forma como o discurso de Le Bon conseguiu parar a marcha da população africana em direcção ao Rádio Clube. Há poucos dados sobre este ponto em concreto. Certamente a senha Galo, galo amanheceu que os líderes do grupo de resistência da Mafalala deixaram com o responsável pela informação, Betinho Chissano, foi rapidamente espalhada entre os vários núcleos de protecção dos bairros, que também se encontravam com a massa popular que se dirigia à baixa da cidade. Algumas pessoas tinham aparelhos de rádio portáteis entre a multidão, e assim que ouviram a senha e o discurso de Le Bon aperceberam‑se de que o “golpe” tinha acabado, como afirma um dos dirigentes dos núcleos de protecção dos bairros, Dinis Muhai:
Avançamos com o grupo para a Praça 21 de Outubro, que antes era Praça João Albasini. Foi onde parámos quando o Aurélio Le Bon grita o Galo Amanheceu na Rádio Clube. Tínhamos os nossos rádios a escutar. Nós tínhamos o Fernando Sumbana e o António Sumbana que faziam a conexão com a Base Galo na Mafalala. Então pronto, terminou.
55Quando
o primeiro contingente da FRELIMO chegou à cidade, no dia 11 de Setembro, Le
Bon ainda estava de uniforme e a situação tinha começado a voltar à
normalidade, embora muito tenuemente. Foram justamente os líderes do grupo Galo
que receberam Alberto Chipande e Bonifácio Gruveta, os responsáveis do primeiro
contingente de guerrilheiros da FRELIMO que vinha integrar a Comissão Militar
Mista preconizada no Acordo de Lusaka.
56Este artigo parte da assunção de que o processo histórico que culminou com a descolonização e independência de Moçambique foi mais complexo e multifacetado e envolveu muito mais actores cujas posições políticas não cabem na simples oposição binária imposta pela “narrativa de libertação” que domina a historiografia de Moçambique contemporâneo . No período conturbado da transição marcado pelos tumultos de 7 de Setembro, as fronteiras entre nacionalista e colonialista, revolucionário e reaccionário, militar e civil, herói e traidor (que definem e animam a narrativa de libertação) eram muito porosas. Os mecanismos de mobilização e a actuação do grupo Galo da Mafalala devem ser vistos não como simples extensão do nacionalismo revolucionário da FRELIMO, mas como resultado do agenciamento das elites africanas de Lourenço Marques, animadas por um imaginário político próprio e mais moderado. As tensões entre este imaginário político e o exclusivismo revolucionário da liderança da FRELIMO vieram à superfície logo depois da proclamação da independência nacional. Por terem actuado sempre na “zona do inimigo” (o espaço urbano), as elites africanas que militaram na clandestinidade foram vistas pela FRELIMO com desconfiança. A sua integração nas fileiras do partido de vanguarda só seria permissível depois de uma triagem (corajosos vs. vacilantes, heróis vs. traidores, militantes vs. comprometidos) e de um processo de purificação através da reeducação política e moral. O próximo projecto, continuação deste, procurará examinar as dinâmicas da tensa (e muitas vezes violenta) colisão entre a visão política moderada das elites africanas urbanas e o exclusivismo revolucionário da FRELIMO no processo de construção do Estado‑nação em Moçambique independente.
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